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Mato Seco em Chamas, de Adirley Queirós e Joana Pimenta

13/04/23 às 18:35
Mato Seco em Chamas, de Adirley Queirós e Joana Pimenta

Petróleo do futuro: o olhar e a invenção de Mato Seco em Chamas

Escrever sobre Mato Seco em Chamas é mergulhar fundo nas nossas fraturas e ao mesmo tempo nas suas maiores possibilidades de fabulação. Um filme é sempre maior do que o que se pode falar sobre ele, sobretudo um filme deste tamanho. Contudo, é a partir desta impossibilidade que este texto se move. Em primeiro lugar, é preciso dizer que Adirley Queirós é o cineasta brasileiro mais importante da última década. É preciso afirmar isso, porque Queirós olha para o poder da beira, do exato lugar onde ele ainda pode ser visto, mas já vira teatro. Como em Era Uma Vez Brasília (2017), em que acompanhamos o golpe jurídico-midiático do impeachment de Dilma Rousseff através do áudio das falas de seus personagens, a metros de distância do Palácio do Planalto, ao lado do protagonista em uma cadeira de rodas. Este ponto de vista não poderia vir de outro lugar que não fosse a margem de Brasília, terra fabulada desde a sua fundação pelos homens do poder, que Queirós sempre explode com o seu olhar petroleiro.

Mas Mato Seco em Chamas é um encontro de olhares. E, se Adirley Queirós olha o Brasil a partir de Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, Joana Pimenta, cineasta e pesquisadora portuguesa que assina a codireção, olha de um lugar um pouco mais distante. E talvez por isso se aproxime tanto pra ver. Da sua experiência com o grupo Sensory Ethnography Lab, da Universidade de Harvard, onde hoje atua como diretora interina, ela traz um olhar intenso e prolongado sobre este território, seus éthos, personagens e paisagens. Em Era Uma vez Brasilia (2017), longa-metragem anterior de Adirley Queirós, Pimenta estabeleceu com sua fotografia a atmosfera lúgubre do golpe de 2016. Em Mato Seco em Chamas, a cineasta entranha o olhar nas contradições brasileiras, penetrando, por exemplo, de forma desconcertante nos cultos evangélicos em uma cena vertiginosa de adoração religiosa na qual experimentamos o arrebatamento catártico de uma comunidade evangélica quase em tempo real de culto. Também experimentamos a contradição das maravilhas da nossa sexualidade exuberante e desgovernada dentro de um ônibus, mesmo veículo que carregará a austeridade punitivista de um sistema marginalizador dessas mesmas personagens. E são as dores e as delícias deste desgoverno que une e desagrega, dentro do qual as petroleiras são aprisionadas e libertas em suas forças de vida e de expressão, que Mato Seco em Chamas queima na tela. 

Toda filmografia pregressa de Queirós já documentava e fabulava sobre o território de Ceilândia e a sua contraposição ao centro de poder representado por Brasília, mas Mato Seco em Chamas ecoa nossas lutas mais urgentes: as reformas agrária e urbana, o encarceramento em massa e a disputa político-econômica em torno do principal commodity da contemporaneidade: o petróleo. O filme começa com fogo. Muito fogo. A encenação evoca um faroeste. Montados em seus cavalos de ferro, em paisagem inóspita, os personagens guardam em silêncio algum segredo daquele lugar. Logo se apresenta uma organização econômica chefiada por mulheres que tem sua atividade na extração de petróleo e no refinamento e distribuição da gasolina para um grupo de motoboys. A tomada dos meios de produção se dá nesta atividade, mas outra tomada dos meios está por trás desta: a do cinema. Cineasta da periferia, Adirley Queirós chama para o seu cinema marginal, e para os personagens que documenta e inventa, a narrativa da história em curso de um país.

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Chitara (Joana Darc) e Lea (Lea Alves) vivem em um cenário pós apocalíptico. Ou seria no Brasil de 2022? Não importa. A sua organização social e econômica independe de um centro regulamentador. Não é um poder paralelo porque não existe um poder estabelecido, a não ser como instância punitiva de encarceramento. É um território em chamas. Suas urgências, desejos e cinesia são definidas por uma autoridade imanente dos seus corpos, dos seus elãs vitais. O petróleo, que as personagens exploram como atividade econômica e de poder, é também o líquido inflamável que corre nas suas veias. O hibridismo do cinema de Adirley Queirós, que extrai das realidades precárias dos seus personagens periféricos a força das suas ficções, atinge seu clímax. A violência represada, a sexualidade e a irmandade das personagens são vetores do seu poder de invenção. Queirós e Pimenta são cirúrgicos ao desvelarem uma força de fabulação, revolução e criação de mundo intrínseca a uma realidade de sobrevivência.

O cinema de Queirós fica cada vez mais seco e inflamável, junto com a política brasileira. A intervenção urbana de uma campanha eleitoral fictícia que já estava em A Cidade é Uma Só? (2011) reaparece em Mato Seco em Chamas na criação de um Partido do Povo Preso. Somos o país com a terceira maior população carcerária em números absolutos. Sendo sua grande maioria de negros e pobres, o número registra uma política de exclusão social violenta destas camadas da população. Os cineastas e suas personagens expõem o poder político deste dado, fabulando as possibilidades institucionais de uma tomada de poder das classes populares, interferindo de forma concreta no imaginário da comunidade. A campanha ainda acontece em um contexto em que o principal candidato do partido de centro-esquerda está preso sem provas, por motivações políticas. No emaranhado de realidade e ficção, se toda prisão é política, como seria se a política fosse feita a partir da prisão? 

Neste contexto prisional, explosivo, passional, existe Lea. Lea é rosto e paisagem deste mundo documentado e imaginado. Sua figura se entranha e move as imagens e a narrativa a ponto de mover o filme a outro registro. Mato Seco em Chamas se curva à sua história, à sua força intestina, e se permite parar. Por alguns minutos. Ao longo do filme, Lea queima as imagens e os diálogos com sua franqueza, seu humor, sua urgência e vida. Em determinado momento, sua imagem para, se estabiliza. A vemos pelos olhos do Estado. Que imagem é aquela que paralisa o movimento de um vulcão, impedindo a sua erupção na tela? É a imagem que aprisiona Lea nos arquivos fotográficos frios de um relatório policial. Esta sequência se torna ainda mais violenta se pensarmos na cinematografia pregressa de Adirley Queirós, em que a liberdade das subjetividades dos seus personagens se expressa nas suas possibilidades de fabulação e invenção de si mesmos. As imagens documentais no cinema de Queirós nunca foram instâncias de aprisionamento dos seus personagens em possibilidades únicas de existência; ao contrário, são sempre mais um ponto de desvio na multiplicidade de suas formas de habitar o mundo e a tela. Aqui, a imagem estática de Lea nas fotografias institucionais revela não apenas o aprisionamento de um corpo, mas o aprisionamento de uma ficção em devir.

Lea e Chitara conversam

O Estado dá as suas caras também na ideologia violenta dos aparatos de repressão. O lema nacionalista do (hoje) antigo governo de extrema-direita brasileiro é declamado e coreografado um pouco antes de uma intervenção por policiais militares fortemente armados: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Queirós e Pimenta colocam o espectador de cúmplice, dentro do camburão e ao lado dos fervorosos. Este é o Estado que presenciamos e testemunhamos. O inimigo que dorme ao lado. Eles também estão na margem, mas agem como cães de guarda dos palácios do poder. 

Palácios que, assim como em Era Uma Vez Brasília, vemos apenas pelo lado de fora. No filme, também tomado pelas chamas e estilhaçado narrativamente, apenas ouvimos o espetáculo do impeachment que acontece dentro do parlamento, compartilhando a solidão inerte do personagem. Em Mato Seco em Chamas, anos depois, presenciamos in loco a reação dos eleitores do presidente fundamentalista. A sequência é desconcertante. Uma câmera filma em plano-sequência uma manada disforme vestindo a camiseta da seleção brasileira de futebol, gritando e comemorando a eleição de Bolsonaro. Estamos longe do palco, mas dentro da plateia, e as risadas são tiros secos ao léu. Cinema de guerrilha. 

 “O petróleo é de nós”, disse Queirós na apresentação do filme em sua estreia mundial, ocorrida no 72º Festival de Berlim. A frase evoca a campanha “O petróleo é nosso”, realizada nos anos 1950, preparando a criação da Petrobras. Se quando proferidas por políticos e intelectuais que defendiam a soberania nacional da exploração da commodity as palavras clamavam por um nacionalismo institucional, hoje, na releitura de Queirós, elas reivindicam uma apropriação pela periferia da riqueza nacional. O ouro negro que jorra no território falsamente fictício de Mato Seco em Chamas não é do Brasil por direito, mas dos brasileiros que o extraem. 

Nada é mais real que a ficção. Ouvi uma vez da boca de um professor: “O filósofo não sabe se a realidade existe, mas o artista sabe que a arte existe.” É preciso acreditar no filme, disse Adirley Queirós. O filme-intervenção de Queirós e Pimenta extrai do solo de Ceilândia seus personagens mais urgentes e suas imagens mais contundentes. A igreja, a festa, o transporte público, a prisão. A etnografia ficcional de Mato Seco em Chamas olha e inventa o presente e o futuro de um território perfurado, explorado e explosivo, que convulsiona em imagens e desejos.

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