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Da crença maranhense à crise portuguesa: atriz fala sobre O Touro e As 1001 Noites

02/11/15 às 12:12 Atualizado em 13/10/19 as 23:18
Da crença maranhense à crise portuguesa: atriz fala sobre O Touro e As 1001 Noites

De um lado, um filme rodado por uma equipe de apenas seis pessoas no litoral maranhense; do outro, um épico de mais de seis horas que tem como premissa falar sobre a crise de Portugal. Incluídos na programação da 39ª Mostra de São Paulo, O Touro, de Larissa Figueiredo, e As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, são projetos muito diferentes, mas que guardam algumas relações entre si, a começar pela presença da atriz luso-brasileira Joana de Verona – protagonista do trabalho de Larissa, ela aparece na obra de Miguel em dois episódios do Volume 2: O Desolado.

De modos distintos, os trabalhos exigiram da atriz uma grande imersão. Em O Touro, Joana interpreta uma personagem de mesmo nome que chega à Ilha dos Lençóis, no Maranhão, para se inteirar da crença local de que o rei português Dom Sebastião não teria morrido em batalha no século XVI, mas, sim, fugido e criado um reino encantado sediado no local.

Única atriz no filme, Joana não teve acesso ao roteiro e era informada a cada dia sobre as cenas que iria fazer, que incluíam conversas com moradores locais para os quais esta interpretação peculiar do sebastianismo é uma realidade.

Já em As Mil e Uma Noites, o comprometimento veio de outro modo: convidada a participar do filme de Miguel Gomes, Joana ficou um ano à disposição dos produtores, que poderiam chamá-la a qualquer momento para as gravações. Isso porque as histórias do filme partiram de acontecimentos reais ocorridos em Portugal, que depois foram sendo ficcionalizados por uma equipe de roteiristas.

Foi avisado aos atores que não havia garantia de que eles apareceriam no corte final, mas os episódios nos quais Joana de Verona participou acabaram entrando no Volume 2: O Desolado. No primeiro, As Lágrimas da Juíza, ela faz o papel de uma jovem que acaba de perder a virgindade e que tem uma conversa nonsense com a mãe. Já em Os Donos de Dixie a atriz interpreta o papel de uma ex-dependente que tem sua vida modificada pelo cachorro de seus estranhos vizinhos.

Tanto no filme de Larissa Figueiredo quanto na trilogia de Miguel Gomes as fronteiras entre o imaginário e o real são borradas de diversas formas, o que leva a outra relação entre os trabalhos: Larissa foi aluna de Miguel na Haute École d’art et design, na Suíça, e aponta o português como uma de suas influências cinematográficas.

Em entrevista por e-mail ao Cine Festivais, Joana de Verona falou sobre a sua experiência de trabalho em O Touro e As Mil e Uma Noites.

 

Cine Festivais: Você nasceu no Maranhão e nunca havia retornado ao local antes das filmagens de O Touro/O Rei. Em que atividade seus pais trabalhavam aqui no Brasil na época em que você nasceu? Havia um desejo em você de conhecer este local já antes do convite da Larissa? Quais impressões do Maranhão você levou para Portugal?

Joana de Verona: Minha mãe é professora e meu pai, economista. Naquela época eles moravam no Brasil e estiveram no Maranhão por causa de um negócio do meu pai.

Eu queria muito conhecer o lugar onde nasci, pensar sobre identidade, voltar às origens, fazer um mapeamento dos lugares onde a minha família morava e que lugares frequentavam.

Quando a Larissa (Figueiredo) me convidou fiquei muito contente por conseguir conhecer São Luís através do filme dela. Tive a sorte de conseguir ir a uma praia de pescadores para a qual minha mãe costumava ir quando estava grávida de mim. As impressões foram muito boas, mas preciso voltar para ficar mais tempo.

 

CF: Além desta questão pessoal, quais outros fatores a levaram a aceitar este papel?

JV: Quis fazer este filme por várias razões. Quando fizemos um primeiro Skype, a Larissa estava na Capadócia e eu estava em Berlim passando uma temporada por causa da filmagem de outro trabalho.

Gostei da ideia, da questão antropológica, quis muito conhecer aquela ilha e as pessoas que tinham aquelas crenças. Queria descobrir aquele universo, como a minha personagem (que no fundo sou eu) descobre.

Quando filmamos, eu tinha terminado o curso de realização de cinema documental, em Paris, nos Ateliers Varan. Todas as questões que para mim eram importantes e pertinentes no documentário também estavam sendo levantadas n‘O Touro.

Tinha acabado de realizar Chantal, meu curta documentário. Fez-me muito sentido trabalhar em um filme com estas características naquele momento.

E como atriz também quis me colocar nesse lugar do trabalho em que não conheço o roteiro, não sei o que vou encontrar, não sei o que irá ser filmado. Simplesmente é necessário estar no presente com as pessoas da ilha e saber escutar; saber estar no tempo interno daquele lugar.

Foi uma experiência incrível, e essa simplicidade de que falo é, em grande parte das vezes, o mais difícil de se colocar em prática no trabalho de ator.

Interessava-me e interessa muito o misto ficção/realidade, e todos estes elementos estavam presentes n’O Touro.

 

“Gosto de trabalhar com diretores talentosos, exigentes e apaixonados por aquilo que fazem, independentemente se são muito conhecidos ou não.”

 

CF: O fato de você aceitar trabalhar com uma diretora brasileira que até então havia realizado poucos curtas-metragens mostra que, para você, os projetos e as ideias interessam mais do que a fama do diretor? Isto tem sido uma constante na sua carreira como atriz?

JV: A fama do(a) diretor(a) não é de fato o mais importante para mim. Gosto de trabalhar com diretores talentosos, exigentes e apaixonados por aquilo que fazem, independentemente se são muito conhecidos ou não.

Já fiz castings com diretores muito conhecidos e ditos importantes, já tive o privilégio de filmar com mestres, pessoas muito sábias, como o franco-chileno Raúl Ruiz, no cinema, e o franco-alemão Bernard Sobel, no teatro.

Mas e por que não trabalhar com jovens talentos, pessoas com as quais posso aprender, partilhar e criar algo de qualidade juntos?! Isso é o mais importante.

Em Portugal, por exemplo, assim como na França, tem também acontecido isso. É bom crescer com essa geração forte de novos criadores.

 

CF: Você já trabalhou com diversos diretores no cinema. A colaboração com a Larissa em O Touro/O Rei pode ser considerada a mais radical, em termos de preparação e imersão no mundo da personagem? Fale um pouco sobre o seu processo de criação no filme, e se você vê em tela os resultados pretendidos pelo método de atuação?

JV: Não sei se foi meu trabalho mais radical em termos de preparação de personagem, mas todo o processo foi atípico e, por isso mesmo, riquíssimo.

Houve um momento, em conversa com a equipe (de apenas seis pessoas), que falamos da possibilidade de eu escrever um roteiro, a versão d’O Touro que eu tinha na minha cabeça. A conversa foi em tom de brincadeira, nunca cheguei a fazer isso, mas o fascinante daquele processo era ter uma imensa quantidade de material. De todas aquelas horas, poderiam resultar vários filmes diferentes, dependendo das escolhas de montagem.

Eu queria ser surpreendida com o resultado do filme tal como fui surpreendida nas filmagens. Quando filmamos no terreiro de Tambor de Mina eu não pensava que iríamos passar tantas horas ali – cinco horas, salvo engano.

Uma das coisas que mais guardo foi a experiência de acompanhar o (diretor de fotografia) João Castelo Branco filmando de acordo com os impulsos sonoros captados pelo Bruno Vasconcelos. É bom inverter a hierarquia da imagem sobre o som e poder fazer planos com outro tipo de premissa.

Gostei muito do resultado que vi. Foi um processo de muita descoberta, de estudo antropológico. Havia elementos em comum entre nós seis da equipe do filme, o interesse pelas pessoas e o desejo de contar histórias.

Considero-o um objeto etnográfico e fico muito feliz por ter feito parte dele.

 

CF: A Larissa Figueiredo foi aluna do Miguel Gomes na Suíça e o tem como uma de suas principais influências cinematográficas. Você consegue traçar semelhanças entre os cinemas de ambos, levando em consideração a sua experiência na atuação nestes dois trabalhos?

JV: Acho que o imaginário de Miguel Gomes é tão amplo, rico e diversificado, que sim, é normal que possa ser uma influência para a Larissa, ainda mais tendo ela estado em contato, de alguma forma, com o universo dele, uma vez que foi seu professor.

O que vemos em As Mil e Uma Noites é uma paleta tão colorida de ambientes e imaginários, quase como se, no fim dos três volumes, tivéssemos visto dez filmes. É, por isso, normal que o trabalho do Miguel influencie muitas pessoas por razões diferentes.

 

“O Miguel (Gomes) sempre me pareceu muito atento ao que de nós surgia e de que forma isso poderia contaminar o que já estava escrito.”

 

CF: As Mil e Uma Noites é um projeto grande e muito ousado. Como se deu a sua entrada neste projeto? A partir do momento em que você foi chamada para atuar nestes dois segmentos, foi lhe apresentado um roteiro tradicional ou as filmagens foram muito calcadas em improvisações?

JV: A produção do filme falou comigo sobre esta proposta épica de se filmar durante um ano, a partir da situação política, econômica e social real que se vivia, conjugada com um universo ficcional/fantasioso.

Havia roteiro, mas sempre senti que o Miguel não era muito rígido quanto ao que já estava estabelecido. Ele sempre me pareceu muito atento ao que de nós surgia e de que forma isso poderia contaminar o que já estava escrito.

 

CF: Quais foram os desafios específicos para as duas personagens?

JV: Nos três volumes de As Mil e Uma Noites existem momentos de pura beleza, humanidade, dureza, melancolia, sarcasmo, ironia.

O episódio Os Donos de Dixie é uma história pela qual tenho muito carinho. O desafio foi fazer uma composição muito sutil da Vânia, uma personagem de classe baixa, jovem, mas que parece que o futuro não lhe trará grandes melhorias. É como se a presença daquele cão fosse de fato o grande sopro de alegria naquela vida.

Há uma espécie de responsabilização que se sente quando sabemos que os personagens que estamos criando surgiram de pessoas reais. Foi desafiadora a cena com a assistente social, feita por uma atriz não profissional. Eu e o meu colega (Gonçalo Waddington) víamos de que forma a senhora conduzia a cena e a acompanhávamos nessa escuta genuína que é fundamental.

No episódio As Lágrimas da Juíza tive o desafio de fazer a abertura de uma história muito absurda, cômica e inteligente. A conjugação do meu discurso com a situação vivida foi a grande questão: de que forma eu poderia ficar à vontade naquele contexto, sabendo que a conversa entre minha personagem e minha mãe (Luisa Cruz) é surreal?

 

CF: Depois de assistir aos três segmentos de As Mil e Uma Noites, como você avalia essa ideia mais lúdica e não panfletária que o Miguel Gomes escolheu para lidar com a crise?

JV: Creio que o Miguel Gomes lidou com essa questão de acordo com o universo/imaginário dele, e o fez de forma muito inteligente e, sobretudo, abrangente. Encontramos muitos ambientes neste filme, ele tem uma proposta riquíssima.

Senti que para o público estrangeiro, como o de Cannes, este filme é algo bastante exótico e estranho; acredito que para os portugueses ele tem um peso maior.

É um retrato muito amplo, complexo e fora do comum no modo como lida com estas questões socioeconômicas, mas que reflete bem, em vários aspectos, a realidade portuguesa a essa altura.

 

CF: Você pretende voltar a trabalhar com diretores brasileiros? Se sim, já há algum projeto ou nome em mente?

JV: Claro que sim! O cinema brasileiro me fascina muito pela sua diversidade. O Brasil é também o meu país e quero muito descobrir mais sobre o cinema brasileiro.

Há vários diretores brasileiros que admiro muito, e sim, existe a possibilidade de filmar um longa-metragem em 2016 no Brasil, mas ainda é precipitado falar sobre essa questão.

 

>>> Acompanhe a cobertura da 39ª Mostra de São Paulo

>>> Conheça a carreira da diretora Larissa Figueiredo

 

Sessões de As Mil e Uma Noites: Volume 2 – O Desolado na 39ª Mostra de São Paulo

– Dia 02/11 – 19h30 – Espaço Itaú Frei Caneca 3

 

Sessões de As Mil e Uma Noites: Volume 1 – O Inquieto na 39ª Mostra de São Paulo

– Dia 03/11 – 15h50 – Espaço Itaú Augusta

 

Sessões de As Mil e Uma Noites: Volume 3 – O Encantado na 39ª Mostra de São Paulo

– Dia 02/11 – 19h50 – Espaço Itaú Augusta – Anexo

– Dia 03/11 – 16h – Cinesala

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