Pensando na brincadeira “estátua”, na qual uma pessoa deve ficar paralisada enquanto um colega tenta lhe provocar para que saia dessa posição, a diretora Gabriela Amaral Almeida enxergou uma potência imagética. “Sempre me ocorreu imaginativamente o que aconteceria se você não saísse mais desse estado”, conta. Desse ponto de partida nasceu o roteiro de Estátua!, curta-metragem apresentado na mostra competitiva do 47º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Protagonista do filme, a atriz Maeve Jinkings faz a personagem de uma babá que está no sexto mês de gravidez e começa a trabalhar na casa de uma família de mãe solteira e sua filha (Cecília Toledo) um tanto carente. O trabalho mergulha nos medos e carências dessas pessoas, do ponto de vista da babá.
A diretora Gabriela Amaral Almeida já havia dialogado com gêneros como o suspense e a fantasia em trabalhos como Náufragos (2010), seu primeiro curta, que trata da morte de uma forma “meio sobrenatural, meio cômica”, como ela mesma define; e Uma Primavera (2011) que conta o desespero de uma mãe que perde a filha em um parque.
No 1º semestre de 2014, Gabriela foi selecionada para os laboratórios Sundance de roteiro e de direção com vistas ao seu primeiro longa-metragem. Com o nome de A Sombra do Pai, ele será sobre uma menina que tenta trazer a mãe de volta do mundo dos mortos, pois está com dificuldade para se aproximar do pai.
O Cine Festivais conversou com Gabriela sobre as principais opções cinematográficas e tópicos temáticos envolvidos na feitura de Estátua!. Confira abaixo os melhores momentos da entrevista.
Cine Festivais: Como surgiu a ideia para Estátua! e como foi o processo de criação do curta?
Gabriela Almeida: Escrevi Estátua! há muito tempo, em 2010, na mesma época em que eu filmei Náufragos [primeiro curta-metragem da diretora]. Inscrevi num edital e não foi aprovado. Há dois anos, encontrei com a Lara Lima (produtora), ela topou e produziu belamente. Estátua! nasceu da minha necessidade de falar dessas coisas através do gênero horror. Há uma imagem da brincadeira “estátua”, muito forte para mim, que é quando você fica paralisada e a pessoa tenta te provocar fazendo mímicas, cócegas, etc. Sempre me ocorreu imaginativamente o que aconteceria se você não saísse mais desse estado. Então é um filme sobre o medo, sobre a falta de ação, algo que me interessa muito. E isso é tangenciado pela questão da mulher e do que se esperar do corpo feminino.
CF: Nos últimos anos, surgiram diretores brasileiros que trabalham com o cinema de gênero, como Marco Dutra (montador de Estátua!), Juliana Rojas e Kléber Mendonça. Ainda assim, você vê seu trabalho com o suspense e com o terror psicológico como uma exceção em meio à produção cinematográfica brasileira?
GA: Eu trabalhei com horror antes mesmo de fazer filmes. Estudei Stephen King na graduação (Comunicação na Universidade Federal da Bahia) e no mestrado. É uma zona que sempre me interessou, tanto academicamente quanto pessoalmente. Depois fui para Cuba fazer cinema, mas sempre tive vontade de trabalhar com o gênero da perspectiva de um cinema sobre a minha realidade. O horror se expressa a depender da cultura. Alegoriza-se o mito de maneiras diferentes, de modo a trabalhar as questões caras à cada sociedade.
No Brasil, o horror fica bastante rico a partir do momento em que temos condições de tornar alegóricos alguns conflitos sociais nossos. Estátua! traz uma relação de gato e rato que seria muito comum numa chave naturalista. É normal vermos babás tiranizadas por crianças, jovens de classe média que são perversamente controladores. Outra questão era o que acontece com uma mulher quando a maternidade não é o idílio que se prometia para ela? Acho que o Kléber, o Marco e a Juliana trabalham com questões sociais bastante atuais, usando o horror para torná-las potentes na ficção. Essa é minha zona de interesse.
CF: Você já se envolveu com o horror em outros curtas, mas essa foi sua principal incursão no gênero…
GA: Sim. Eu sempre trabalho com suspense ou fantasia de alguma forma. Mas Estátua! é um filme de horror por excelência, por lidar com a possibilidade concreta do sobrenatural na vida dos personagens. Atormentada com as questões da gravidez e de seu relacionamento, Isabel projeta em Joana os medos que tem. Ela torna a menina um monstro, e é através dessa perspectiva que olhamos. Então, formalmente, é um filme de horror completo, lida com todos os elementos “necessários” para caracterizar esse gênero.
CF: Seu filme traz um registro de atuação expressionista. A atriz Maeve Jinkings disse ao Cine Festivais que as referências visuais que você apresentou vinham muito da pintura. Como foi essa construção?
GA: A ideia do que narrar, de como enquadrar e as decisões da mise-en-scène vêm muito do que os personagens estão sentindo. Não que isso seja uma posição teórica, mas meus personagens têm sempre um acesso à consciência do material, ao que é imediato, mas uma dificuldade de acesso ao inconsciente. A Isabel é um exemplo disso. Em toda ação ou em toda a fala do personagem, há sempre algo por trás. E isso me leva a uma dramaturgia física que me interessa muito, uma dramaturgia do corpo, da voz, da entonação, do olhar, algo que escapa do naturalismo justamente porque minha ideia é articular consciente e inconsciente desses personagens. O processo sempre passa por bastante improvisação, e depois tento levar a memória sentimental, física e corporal dessa etapa para as cenas.
Em relação à pintura, eu gosto muito daquele quadro do (Hieronymus) Bosch, O Jardim das Delícias Terrenas, que é um tríptico sobre paraíso, terra e inferno. E a mulher retratada nessa obra tem muito a ver com as questões em torno da construção da mulher na sociedade ocidental; a pecadora, a que se entrega ao prazer. Enquanto ela está vivendo as delícias do paraíso, está sendo punida por isso. Foi uma referência que eu dividi com a Maeve para compor esse personagem.
CF: Na preparação do elenco, como foi orientar uma atuação infantil com tão poucas falas, porém expressiva e com forte subjetividade?
GA: Nunca trabalhei a criança como antagonista, pois a personagem da Cecília Toledo (Joana) só é vilanizada a partir do olhar da Isabel. Joana tem motivações próprias: é uma criança carente e quer se aproximar de uma pessoa. Ela tem essa coisa da tirania – se a babá está ali é para servir a ela -, mas, para a Cecília, especificamente, pedi que ela imaginasse uma situação em que sua mãe não te dá atenção e você acabou de descobrir sua única amiga. Fiz um roteiro só para a Cecília, em que ela era a protagonista. Nos exercícios de improvisação, Cecília tentava encontrar maneiras de demonstrar afeto pela personagem da Maeve (Isabel).
Com a Maeve, trabalhei questões relacionadas ao feminino, ao prazer, à negação do prazer, à construção do corpo e da voz, foi muito bacana. Só uni as duas mais para o fim do processo.
CF: Você escreveu, junto com Marco Dutra, o roteiro de Quando Eu Era Vivo, que também se passa, quase inteiramente, dentro de um apartamento. Qual a importância das sombras e do espaço nos enquadramentos de Estátua!?
GA: No início do curta, a mãe de Joana até avisa: “ela se esconde, espiando os outros”. Minha decupagem vai muito no sentido de compor um jogo entre observador e observado. Acho que o apartamento serve ora como ratoeira, ora como labirinto. Era importante construir esse deslocamento dos personagens dentro do quadro: para onde você foge e o que você consegue enxergar em determinada distância.
CF: Quando o assunto é apartamento, um cineasta sempre lembrado é Roman Polanski e sua Trilogia do Apartamento (Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary e O Inquilino). Em especial, Estátua! guarda diversas relações com O Bebê de Rosemary. Foi uma referência?
GA: Não direta, mas é um dos filmes que eu mais gosto, é uma referência que está em mim. Eu gosto da maneira como o Polanski trabalha as atuações, sempre expressivas e fora da chave do que seria natural. Dentro do horror, ele desloca as nossas expectativas em relação ao gênero no qual estamos imersos.
CF: Na duração reduzida de um curta-metragem, como foi elaborar o arco dramático e como funcionou a percepção subjetiva do tempo por parte da personagem Isabel?
GA: Em curtas, talvez exista uma necessidade de evitar ao máximo o desperdício; não se fascinar por um momento de um personagem ou da jornada, e contentar-se com pequenas mostras do que esses momentos são. Em um longa, você pode trabalhar com uma coleção de situações, enquanto que, no curta, você precisa escolher “a” situação mais efetiva.
No caso de Estátua!, há três momentos significativos: quando ela aceita o desafio, o momento em que se questiona e vê o tamanho do problema e sua reação diante disso. Ela acha que a Joana é especialmente problemática porque, assim, ela escapa do problema dela (o de que toda a criança pode ser um problema). Há uma distensão de tempo muito clara, principalmente no que é observado. São elementos que estão caracterizando a subjetividade da babá de alguma forma. Trata-se de entender quais são os signos que você manipula e o quanto eles permanecem na tela para ir além do significado literal.
* O repórter Adriano Garrett está hospedado em Brasília a convite da organização do festival
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