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Sobre complexidades e pontos cegos: uma conversa com Gabriel e Maurílio Martins

05/08/19 às 17:46 Atualizado em 14/11/19 as 12:05
Sobre complexidades e pontos cegos: uma conversa com Gabriel e Maurílio Martins

Os curtas-metragens Contagem (2010) e Dona Sônia pediu uma arma para seu vizinho Alcides (2011) foram filmados no início da trajetória da produtora mineira Filmes de Plástico. A reação de espectadores que viam nas duas obras universos muito semelhantes foi o estopim para o surgimento do projeto do longa-metragem No Coração do Mundo, que começou a ser filmado em 2016 e chegou aos cinemas brasileiros no começo deste mês, depois de ter passado por festivais como o de Roterdã, na Holanda.

“Nesse tempo entre a ideia do projeto e a realização nós passamos por um processo bem forte de questionar porque a gente havia criado alguns personagens como homens, e foi um exercício fascinante porque percebemos que isso estava muito mais atrelado a um vício de escrita do que a um pensamento outro”, conta Maurílio Martins, que dirige o filme ao lado de Gabriel Martins (sem relação de parentesco).

Além do núcleo de personagens que já estavam nos curtas-metragens, constituído principalmente por Ana (Kelly Crifer), Marcos (Léo Pyrata), Rose (Bárbara Colen) e Miro (Robert Frank), surgiram outras figuras fundamentais, como Selma (Grace Passô) e Brenda (MC Carol). Nesse filme mosaico passado em Contagem – especialmente nos bairros Jardim Laguna e Milanez, onde os diretores foram criados – as relações interpessoais e com o lugar são o pano de fundo da obra, que traz uma gama de personagens femininas fortes e complexas.

“Tem uma ideia de mobilidade e imobilidade que foi muito falada no processo de montagem e, principalmente, no lançamento do filme. As leituras mais feitas e mais faladas, principalmente por mulheres, foram de como as personagens femininas estavam se movendo e os personagens masculinos estavam letárgicos, parados, inclusive fisicamente. Isso é uma coisa que no roteiro era muito menos proposital do que parece”, diz Gabriel.

Na conversa a seguir, os diretores falaram longamente sobre o processo de realização de No Coração do Mundo.

Cine Festivais: Pensando no contexto do cinema brasileiro independente, vejo que no trabalho do Kleber Mendonça Filho essa relação dos longas com os curtas do início de carreira também existe, só que no caso dele me parece uma coisa mais ligada a imagens específicas, como a masturbação na máquina de lavar (que aparece em Eletrodoméstica e O Som ao Redor). Vi uma palestra em que o Kleber comentou a respeito de um dos finais que pensou para Aquarius, e seria basicamente uma repetição de um curta que ele fez em 1994, Paz a Esta Casa. Tendo isso em vista, queria começar perguntando a respeito do desejo de vocês por retornar ao universo desses dois curtas (Contagem e Dona Sônia Pediu Uma Arma Para Seu Vizinho Alcides). Qual foi a principal motivação para isso? Os personagens? Imagens específicas que eles evocavam?

Gabriel Martins: Acho que os personagens foram um primeiro motivador. A gente gostava muito deles e achava que dava para explorar mais características dentro de um longa – não só pelo tempo de tela, mas por toda organização que um longa envolve. Os dois curtas foram rodados no segundo ano em que a Filmes de Plástico existia oficialmente, e de lá para cá a gente foi fazendo um monte de coisa, tivemos mais ideias, conhecemos mais atrizes e atores que a gente gosta muito e que acabaram entrando para a “família”… Quando a gente chegou pra fazer No Coração do Mundo já tínhamos experimentado gêneros diferentes, narrativas diferentes, e deu uma vontade de falar do bairro (Jardim Laguna, em Contagem). E ao pensar o bairro na verdade a gente está pensando num conjunto de subjetividades dessas pessoas que moram ali. Havia muitas outras histórias que poderiam estar nesse roteiro, porque aquele microcosmo é um mundo de infinitas possibilidades, de infinitos gêneros…

Maurílio Martins: Falando especificamente dos curtas, eles foram rodados em 2010, o Dona Sônia… em abril e o Contagem dois meses depois. Ambos os filmes gozavam de uma certa liberdade porque estávamos filmando perto de casa, com pessoas que a gente conhecia, então não precisávamos pedir autorização para fechar a rua, por exemplo; a gente mesmo ia lá e fechava. Os personagens criados para esses dois curtas se incorporaram àquele lugar, e só quando os filmes começaram a circular que a gente foi entendendo que eles se comunicavam, não era uma coisa que a gente tinha em mente quando filmamos. O Selton Mello viu os nossos filmes e falou que tinha muita vontade que a gente fizesse algo parecido com o que havia nos curtas. Depois um sueco amigo da Stine [ex-companheira de Maurílio] assistiu a um DVD com nossos curtas, viu esses dois na sequência e falou: “nossa, parece um mesmo filme, um mesmo lugar. Fiquei com vontade de ver mais histórias dali…”

Então o projeto do No Coração do Mundo surgiu aí, em meados de 2012, já com esse nome, e partiu desse princípio de junção de universos, do meu com o do Gabriel, dos curtas com o longa. Ele surge menos de um desejo de querer prolongar esses curtas, e mais de uma urgência que os próprios filmes cobraram para si. E aí vale frisar também que o longa nunca ficou refém desses curtas. Entre 2012 e 2016, ano em que o filme foi rodado, a gente trilhou outros caminhos; quando nós fomos filmá-lo eu já tinha feito Quinze e Constelações, o Gabriel já tinha feito Mundo Incrível RemixRapsódia para um Homem NegroNada… Então essa ideia inicial de transposição tinha ficado para trás; o longa é completamente independente do curta.

Havia uma preocupação com relação à linha do tempo do No Coração do Mundo em comparação aos curtas?

Gabriel: De início sim. No Coração do Mundo foi escrito para ser um prequel do Contagem, só que depois essa lógica deixou de ser uma pressão ou algo ao qual a gente tivesse o tempo todo que estar remetendo narrativamente; nós quisemos nos libertar um pouco disso. Até porque o filme está falando de várias outras coisas, então achamos que ele não precisava dessa obrigação de estar atrelado aos curtas.

Queria que vocês falassem um pouco do processo de escrita dos novos personagens e do exercício de repensar aqueles que já existiam, tendo em vista uma pretensão que o Gabito já comentou em outras conversas que tivemos de ir contra automatismos na construção dos personagens. Com relação a isso achei curioso que a casa em que acontece um roubo no filme esteja localizada no ponto cego de um condomínio de luxo; fiquei pensando que talvez essa ida contra automatismos combata uma perpetuação de pontos cegos dentro desse “condomínio” do audiovisual brasileiro…

Gabriel: Muito bom… Genial. (risos)

Como que isso passou pela construção desses personagens?

Gabriel: Como uma reflexão constante, na verdade, porque a gente sempre tá pensando o que é o cinema brasileiro, o que a gente tá sentindo falta de ver, o que a gente tá vendo e não tá gostando. Eu e o Maurílio sempre estamos vendo muitos filmes, estamos criando expectativa sobre muitos filmes, e também… Não pensando como uma coisa muito consciente de um projeto nosso, do que que tem que ser, mas pensando muito como um espectador, de filmar o que a gente quer ver, ou filmar de uma forma que a gente gostaria de estar vendo mais.

Entrando mais caso a caso nos personagens do filme, acho que o Marcos, a Ana e o João mantiveram uma essência próxima daquela que tinham no Contagem no que se refere à forma como eles se relacionam entre si e como lidam com o mundo. No curta a gente não sabia qual era a profissão da Ana, e aí quando a gente começa a desenvolver No Coração do Mundo começa a se tornar muito importante a profissão de cada personagem, porque o filme é sobre isso também.

A Babi (Bárbara Colen), por exemplo, tem uma personagem, a Rose, que no curta passa muito rapidamente. No Contagem ela usa uma camisa de um supermercado, então já tinha uma ideia de ela ser essa personagem “correria”, mas quando a gente começa a desdobrar… No primeiro tratamento de No Coração do Mundo a gente entendeu que tínhamos desenvolvido muito pouco a Rose, e então passamos a nos interessar muito sobre o que ela poderia falar sobre trabalho, e aí nisso abre uma outra esfera, que é o salão de beleza. A partir disso, pensamos em como ela seria fisicamente. A gente já não estava mais com o pensamento do Contagem, que era de filmar a Babi meio com o cabelo dela. A Rose no longa tem um aplique, tem um vestuário, tem um jeito que é diferente do da Babi. Há toda uma construção de personagem ali, que passa inclusive por pensar na marca do salão de beleza, no colete do salão. A gente queria que existissem muitas camadas, o longa permitia isso.

O próprio Robert (Frank), que faz o Miro, muda radicalmente o visual dele. A gente cortou o cabelo dele, tapou todas as tatuagens com maquiagem. Então quando a gente vai transpor esse universo dos curtas para o longa inevitavelmente o aprofundamento vai trazendo novos desafios, e também um entendimento da importância de cada um.

E no caso dos personagens novos? A Selma surge a partir da Grace Passô, ou o contrário?

Maurílio: Quando a gente escreveu a primeira versão do roteiro o personagem era um homem, chamava Amarildo. Ele já surge com características que a gente queria, de um certo brilho próprio, de alguém que era condutor de situações, que tinha uma força muito grande, e que era esse personagem nômade, que havia deixado uma filha para trás por necessidade. Mas aí nesse tempo entre a ideia do projeto e a realização nós passamos por um processo bem forte de questionar porque a gente havia criado alguns personagens como homens, e foi um exercício fascinante porque percebemos que isso estava muito mais atrelado a um vício de escrita do que a um pensamento outro. Quando a Grace incorpora essa personagem eu acho que ela explode, se expande e vira essa coisa incrível, que tem um impacto muito maior.

O mesmo ocorreu com o personagem do Léo, e aí foi por um infortúnio. Nós escrevemos ele para um amigo meu de infância, e ele estava preso à época das filmagens e não conseguiu sair. Então o Gabito veio com a ideia muito forte de a gente trabalhar com a MC Carol, e aí também modificamos o gênero e mantivemos características do personagem que eram oriundas do Léo, que é uma figura real que continua sendo um grande amigo, um grande parceiro nosso. E com a entrada da MC Carol a Brenda surge com essa força que é exponencialmente ampliada.

Então eu acho que são caminhos que andam juntos: a nossa investigação do porquê de alguns personagens surgirem automaticamente como homens e a feliz escolha dessas atrizes para representar essas mulheres.

Eu lembro que na conversa que tivemos sobre Constelações você disse como a mudança para a Dinamarca havia influenciado a sua relação com Contagem. Queria que você falasse sobre como isso refletiu na realização de No Coração do Mundo e no modo como você olha hoje para o filme. 

Maurílio: É engraçado que o projeto surge quando eu havia acabado de mudar para a Dinamarca. Essa história que eu contei do sueco que viu os dois curtas e comentou sobre a semelhança daqueles universos aconteceu lá.

Morar nesse Estado de Bem-Estar Social quase utópico fez com que o meu olhar se tornasse ainda mais carinhoso com o lugar onde eu nasci e cresci, e isso influencia diretamente no projeto. Essa vivência externa me fez entender ainda mais quem são essas pessoas que me formam, o que é esse bairro, o que é essa região para mim. O tempo que eu morei lá me fez ter ainda mais vontade de filmar esse lugar, tanto que daí em diante os projetos se tornaram ainda mais fortes.

Eu rodei No Coração do Mundo ainda morando na Dinamarca, vim para fazer o filme. Então isso tinha uma carga ainda maior. Quando você me entrevistou em Brasília eu tinha acabado de rodar o filme e estava voltando para a Dinamarca. Morei lá ainda por mais alguns meses e vim embora em definitivo no início de 2017. Isso eu acho que só serviu pra decantar coisas que eu tinha visto a vida inteira e que ainda não entendia plenamente. Morar fora serviu pra isso. E hoje eu sigo com esse desejo imenso de seguir retratando esse bairro, esse lugar. Ele se amplia e se fortifica a partir dessa minha vivência fora. Como você falou um dia, essa ponte Contagem-Copenhague.

E no seu caso, Gabito? Em 2010 vocês estavam inaugurando um imaginário cinematográfico de Contagem. Desde então você fez muitas coisas, trilhou vários caminhos em diferentes funções. Como que essa sua relação com o bairro foi se modificando nesse período?

Gabriel: Eu acho que tem uma experiência que vem de pegar muitas coisas diferentes, fazer filmes diferentes, fazer projetos que talvez não remetam tão diretamente às primeiras coisas que a gente fez. Acho que tecnicamente esses projetos também vão agregando outras coisas. Por exemplo, no ano em que a gente fez No Coração do Mundo, em janeiro já tínhamos rodado o Nada, e foi a primeira vez que a gente usou steadycam na produtora, e isso me ajudou a entender como aquilo ali funcionava de fato, como eu poderia usar, o que influenciou totalmente a decupagem do No Coração do Mundo.

A mesma coisa a gente pode falar do Constelações, que é um filme com muitas cenas de carro, é um filme que usou plataforma, que é uma coisa que a Filmes de Plástico nunca tinha usado também, e que voltamos a usar em No Coração do Mundo. Então a gente vai agregando não só ideias novas; vamos pegando também essas ferramentas que nos possibilitam levar a narrativa para outros lugares. A cada trabalho a gente foi agregando uma técnica nova, uma possibilidade visual nova para o nosso repertório, até chegar ao No Coração do Mundo, que é um filme que tem steadycam, tem travellings longuíssimos, tem grua, grip, coisas que não estão ali gratuitamente e que nos permitiram contar a história e fazer certos planos que anos atrás a gente talvez não teria tanta segurança para fazer. Talvez até poderíamos tentar fazer, mas não teríamos tanta segurança, ou talvez não teríamos acesso.

A partir do momento que a gente faz um projeto com steadycam, aquilo ali me dá uma certa segurança. Eu sei quanto tempo demora para montar. Eu sei o que eu consigo e o que eu não consigo fazer com isso, porque é uma coisa que às vezes você só entende quando pega e faz.

Então a gente veio de uma série de experiências que fizeram com que o processo de decupagem do No Coração do Mundo fosse muito divertido, porque ali fomos conseguindo aliar melhor a técnica/prática com as intenções conceituais. Claro que a gente também bateu cabeça em uma ou outra coisa durante o processo, mas a gente tinha um entendimento melhor de como funcionava e onde a gente conseguia chegar.

Foi nossa primeira experiência realmente grande com um trabalho muito ostensivo de som: a primeira vez que a gente realmente mixou, fez foley de tudo… São um monte de coisas que a gente vai entendendo a cada filme, e quando chegamos no próximo projeto sempre tem uma camada a mais, um lugar que a gente acha que o filme consegue chegar um pouco mais longe.

No Contagem a trama principal do filme é um assassinato de um pai. No Nada, você me disse em entrevista que via o final como uma morte simbólica do pai, de uma sociedade patriarcal que precisa morrer em algum momento. Pensando No Coração do Mundo, o filme também fala muito de questões de gênero e de uma certa ressignificação necessária aos dias de hoje. Queria que você falassem um pouco sobre isso.

Gabriel: Acho que tem uma ideia de mobilidade e imobilidade que foi muito falada no processo de montagem e, principalmente, no lançamento do filme. As leituras mais feitas e mais faladas, principalmente por mulheres, foram de como as mulheres estavam se movendo e os homens estavam letárgicos, parados, inclusive fisicamente.

Isso é uma coisa que no roteiro era muito menos proposital do que parece. É muito menos um projeto de ser um filme para discutir isso, bem menos mesmo do que parece (risos). Vejo como uma consequência natural de como essas personagens foram se desenhando pela escrita e também pelas atrizes, que ganharam muito espaço.

Tem uma expansão grande nas personagens femininas também na forma como se colocam, na forma como falam, às vezes até em volume da voz, que tem a ver com o elenco, né? O Robert (Frank) e o (Léo) Pyrata têm um certo jeito de falar meio baixo mesmo, eles murmuram. Quando você analisa eles ao lado da Selma, por exemplo, há ideias de volume e de presença que são diferentes…

Maurílio: À parte essa questão que já foi falada sobre a troca do gênero de algumas personagens na fase da escrita, o resto foi uma consequência imediata do espaço em que a gente vive. Esses personagens e essas personagens foram se configurando a partir da vivência, e acho que foi na montagem que saltou aos olhos essa ideia de que as personagens femininas tinham uma força muito maior do que os personagens masculinos.

Acho que há sim um questionamento, se não fosse assim não teríamos alterado o gênero de personagens que havíamos criado, mas há também um reflexo… Eu nunca vou usar a palavra representação, é um reflexo de coisas que nos circundam. Essas mulheres fortes estão ali nas nossas vidas, né? Estão ali no bairro. O abandono da paternidade é muito comum na periferia, essa coisa de as casas serem tocadas e geridas por mulheres porque a figura paterna já se foi ou nunca esteve. Mães que criam filhos e filhas junto com a mãe, que também já foi abandonada… Isso é uma característica muito marcante. O Quinze (curta-metragem dirigido por Maurílio) é isso, né? Aquele pai não existe. Eu até falei outro dia que o Quinze era um filme sobre paternidade a partir da ausência dela…

Acho que No Coração do Mundo expande um pouco isso. Tem ali uma fala que eu acho muito forte: “você está ficando igual o seu pai”, que a Dona Fia fala para o Marcos. E a resposta dele também é muito dura: “eu vou acabar saindo de casa que nem ele” Isso pra mim diz mais do que qualquer ação de movimento de corpo. É uma frase que fala sobre esses movimentos na periferia. Ali a mãe dele está colocando produto de limpeza numa garrafa; ela vai sair para vender, para colocar comida dentro de casa…

E essa personagem é totalmente inspirada em uma pessoa que chegou a fazer figuração no filme, ela tá no plano inicial da festa, que é a dona Dulce, mãe de uma namorada que eu tive lá no bairro, a Gisele. A casa da Fernanda, do Marcos e da dona Fia no filme é a casa da Dona Dulce, lugar que eu frequentei quando namorava com a Gisele. Usar essa casa teve um efeito simbólico, né? A Gláucia (Vandeveld, atriz) fez uma espécie de imersão da personagem com a dona Dulce, que é uma pessoa que criou os filhos sem o pai. Então isso é comum. Naquele mesmo lote em que nós filmamos tem a Aparecida, que também criou as filhas sem o pai. Então é uma característica marcante desse espaço.

Obviamente que na transposição disso para a escrita, quando vamos criar a dona Fia, não há possibilidade de se criar algo distinto dessas figuras em que você se inspira. Elas estão com bastante recorrência nesses lares em que se configura a periferia.

O final traz uma espécie de volta a um mesmo ponto para alguns personagens, com cenas distintas entre um filho e uma mãe/uma filha e um pai. É uma conclusão muito forte, né? A maneira como o filme lida com essas duas formações familiares…

Gabriel: Sim. Até o Heitor [Augusto, crítico de cinema] quando viu o filme falou que achava que tinha um sentimento no final do filme que remetia a uma frase do Nas, rapper americano, que é assim: “Life’s a bitch and then you die / That’s why we get high / ‘Cause you never know when you’re gonna go”, que é um negócio meio triste, do tipo “a vida é foda mesmo, a vida é dura”. Essa atmosfera de que “a vide á dura” é uma coisa que a gente acha interessante, é inclusive um conceito muito recorrente no rap, uma ideia de mobilidade, uma coisa de “não pode dar mole que a vida é dura”.
As pessoas perguntam sempre sobre o lugar do trabalho no filme, e o Maurílio sempre enfatiza a ideia de ser sobre a falta de trabalho. Às vezes é isso, né? São alguns vazios que existem nos personagens, vazios de questões sociais, econômicas, mas também vazios existenciais que estão ali. Acho que esse final pontua um pouco esse sentimento de uma melancolia possível, de uma certa crise.

Maurílio: E por exemplo, se você for naquele praça de Contagem nesse horário, 17h38, se você for lá agora você vai ver aquela cena. Você vai ver vários Marcos sentados ali. E não tô aqui fazendo nenhum juízo de valor, porque eu fui também essa pessoa durante algum tempo, sou às vezes, sigo morando lá; é uma vida muito dura, é uma vida masculina muito dura também. Não estou aqui fazendo nenhuma defesa de nada, só estou tentando analisar a partir dessas agruras humanas. Você está num espaço de privação muito grande, e não é só uma privação econômica. A gente não está falando só de pessoas que são privadas de ter uma roupa melhor ou de ter um carro. Você é privado de fundamentos básicos da vida. Você cresce num espaço em que o aparato público te abandona desde o seu nascimento. Então você é quase um natimorto para esse poder público. Você nasce ali e é um número.

Eu citei antes o Léo, que é uma figura presente na minha vida desde sempre; no meu próximo projeto ele é o protagonista. O Léo deixou de fazer o filme porque estava  preso. E ele só estava preso porque é um homem negro, obeso, com quem a vida foi muito dura. Muito dura. A mãe dele se suicidou. Ele foi criado com a avó paterna. E mesmo dentro dessa vida dura, o Léo talvez seja a figura mais engraçada e mais feliz que eu conheço. E o Léo segue quebrado, sem dinheiro, sem grandes perspectivas. Estou dizendo de uma perspectiva do cotidiano, de “o que eu vou fazer hoje”, porque ele não tem a menor ideia do que vai acontecer no outro dia. Então isso é muito duro.

Essa figura cresceu comigo, em algum momento eu tive um pouco mais de sorte e mudei o meu caminho e consegui alcançar algumas coisas, e ele de certo modo ficou ali.  Acho que o Léo é um exemplo muito grande disso, porque ele deixou de filmar porque estava preso, e estava preso porque a vida já foi muito dura com ele, e naquele momento era ainda mais. Ele estava desempregado e foi obrigado por “n” coisas a dirigir para pessoas que faziam roubo de carga… Julgar essas pessoas é muito fácil. Julgar o Léo é muito fácil, assim como a gente julga esses personagens na maior parte das vezes a partir de uma face. Só que a outra face é esse cara que tenta sobreviver todos os dias. Tem 41 anos de idade e segue num processo de sobrevivência diária.

Quando eu digo que não havia como se inspirar nessas pessoas e fazer personagens chapados eu penso no Léo, que é muito próximo de nós, está com a gente o tempo inteiro, e é pura felicidade. A empolgação dele com esse filme é um negócio absurdo. Ele ajudou a gente a pregar cartazes, distribuiu panfletos, fala do filme como se o filme fosse dele, e é dele também.

A complexidade da periferia é muito maior do que qualquer filme possa dar conta, do que qualquer texto possa dar conta. E eu falei só dessa parte de um ex-presidiário. Se eu for começar a falar sobre religião… Qualquer pessoa que tenha pisado numa periferia algum dia na vida entende a estrutura social, por exemplo, das igrejas. Vai além de uma discussão de de bom ou mau, é um debate sobre como a ausência do Estado traz a Igreja, e essa igreja é fundamental para a sobrevivência de muita gente porque traz empoderamento.

Várias igrejas no bairro são presididas por homens que são ex-presidiários, E por que eles montam a igreja evangélica? Uma das maiores críticas que eu vejo é: qualquer um pode montar igreja no Brasil. Sim, qualquer um pode montar igrejas, inclusive quem sai da cadeia e não tem nenhuma chance em lugar nenhum. Um ex-presidiário, como diria Mano Brown, é pra sempre um ex-presidiário. Geralmente são homens negros, e esse empoderamento faz com que a família dele se empodere, com que o filhos se empoderem. Então você começa a criar uma relação de poder na periferia que infelizmente a classe média brasileira, principalmente a classe média branca, nunca vai entender.
Não há texto sociológico que dê conta disso, porque isso só vem quando você vive e entende essa estrutura. Uma pessoa como o Léo não arruma emprego não é porque ele não quer. Ele tenta. Ele não consegue porque é isso: essa tatuagem de ex-presidiário vai estar nele pra vida inteira. Ainda que aquilo possa ter sido um deslize momentâneo.

Pensar só numa esfera de bom e mau eu acho que é muito pouco para o que o filme diz. Um personagem como o Beto (Renato Novaes) é muito complexo. O irmão dele, que teve as mesmas oportunidades, traça um caminho diferente, mas ainda assim tem um sentido de proteção.

Esse processo de revisão sobre o papel do machismo – somos todos machistas porque fomos criados numa estrutura machista, e lutamos todos os dias para sermos menos machistas, até a nossa morte – é muito mais complexo. Não dá para colocar essa esfera da periferia somente nessas catalogações que a Academia vem fazendo, ou que essas discussões mais rasas vêm fazendo.

Eu nasci num lar cristão. Minha família é da Congregação Cristã no Brasil, que é uma igreja extremamente rígida. Eu cresci dentro de um lar extremamente rígido. Não tinha televisão na minha casa, nunca pôde ter televisão. Eu falo isso sempre sobre representação: eu não represento nem a minha família. Na verdade sou o oposto deles. Digo isso para tratar dessa complexidade. A minha mãe e as minhas irmãs são mulheres extremamente fortes, e cresceram dentro de uma estrutura que aparentemente coloca a mulher como submissa.

São essas complexidades que eu acho que acabam refletindo no nosso trabalho. A gente tentou de certo modo levar isso para o filme, e eu acho que a gente conseguiu com um resultado bem satisfatório, mas é complicado, sabe? Não dá pra discutir o filme por conceitos mais simplistas, por isso que eu gosto desse choque que o filme provoca e desses questionamentos. A Grace (Passô) quando leu o roteiro pela primeira vez, por exemplo, a primeira coisa que ela falou pra gente é que tinha amado a personagem por conta da complexidade. Ela tinha ficado fascinada porque a personagem não dava nenhuma resposta, gerava muito mais dúvidas, e ela adorava aquilo.

Pensando nessa questão da complexidade, queria que vocês falassem sobre a violência no filme, pensando em dois momentos: o plano fechado em que o Joca aparece assassinado e o plano em que a Dona Sônia encomenda a camisa de homenagem ao filho.

Gabriel: Um lugar comum de alguns estudos é falar que “a violência na periferia é banalizada”, e na verdade ela não é banalizada, né?. Dependendo do lugar ela é recorrente, mas talvez seja mais verdade falar que no centro das cidades as coisas são mais banalizadas… Talvez nem isso também.

Na periferia esse gesto de fazer uma camisa e colocar “saudades eternas” é uma forma de manifestação de luto, de indignação, mas também uma forma de manifestação de uma coletividade. Porque quando ela faz uma camisa não é só pra ela, ela faz uma caixa de camisas que vai distribuir para pessoas próximas. Quando está rolando a “célula” na casa da dona Fia as pessoas estão com a camisa ali, a gente vê que não é só ela que está usando. E essa tragédia é coletiva. Por mais que seja recorrente, e que aquelas pessoas talvez vão ter visto aquilo mais de uma vez na vida, elas vão querer se manifestar de alguma forma.

E tem uma estética da camisa também, que a gente seguiu muito fielmente a partir de camisas que a gente já viu, e que também diz muito. Por isso eu acho muito foda a cena da loja, da Dona Sônia mandando fazer a camisa. Já existir uma forma natural e uma estética pronta para aquilo diz muito também sobre essa ideia de coletividade, de como se deseja passar essa imagem que tem a ver com referências que aquela pessoa tem de vida. É muito dramático, né? Essas camisas são muito dramáticas.

E aí já aliando com a sua outra questão, o filme é dramático, né? A imagem ser um plano fechado do Joca com um tiro na cabeça diz de uma dramaticidade que está ali presente. Principalmente na parte da finalização a gente tem falado que o filme é maximalista, que era uma forma de trazer muitos elementos: é um filme muito sonoro, o volume é alto, tem muitas cores…

Então quando a gente tem esse lugar da camisa ele está reverberando um pouco o que o filme é, que também é nada mais do que uma replicação de uma coisa que existe, que está ali, que a gente viu muitas vezes e que a gente sente que tem esse efeito nas pessoas. É uma coisa que a Dona Sônia faria mesmo, não é uma coisa que a gente inventou pra ela que não tem nada a ver.

E é uma imagem que provavelmente o cinema nunca mostrou, né?

Gabriel: São elementos muito fortes que estão aí e que às vezes, mesmo quando são mostrados, precisam ser muito enfatizados como algo estranho. Mesmo quando se filma com uma intenção de respeitar, se filma um pouco numa perspectiva um pouco do zoológico…

Maurílio: Safári, né?

Gabriel: É. Ou querendo tratar aquilo com uma certa ironia às vezes. Um pouco esse lugar de não conhecer. O Maurílio já falou de como tem se tratado religião no Brasil hoje. Às vezes há um certo desconhecimento, uma falta de entendimento de o quanto aquilo é uma coisa muito maior, muito mais complexa, do que essas coisas significam para as pessoas. Então quando a gente está filmando essa camisa a gente está filmando uma coisa que a gente acha muito bonita, sabe? Uma coisa que a gente acha muito difícil, muito dura, muito complexa. Está filmando uma coisa que tem um significado muito forte, para aquelas pessoas, para a gente, para o filme. É uma parte dessa história, dessa personagem; ela vai se vingar, né? Então tem também um efeito narrativo importante para a história do filme.

E sobre o plano do Joca: há uma discussão sobre a maneira de representar corpos negros violentados, tendo em vista uma certa recorrência dessas imagens nas mídias tradicionais. A decisão de fazer esse plano no filme passa também por essa ideia da complexidade, né? De pensar como cada imagem está sendo colocada, em que contexto…  

Gabriel: Como ela opera naquele todo. Porque a imagem está sempre atrelada a um todo. Eu acho que é por aí, com certeza. É como eu encaro, pelo menos, e como a gente quis fazer.

Um momento que também é pequeno na duração, mas que tem um simbolismo grande, ocorre quando a Selma está entregando as fotos na escola. Tem uma criança que não levou o dinheiro, e ela permite que ele leve a foto para casa. É uma cena em que se fala de produção de imagens, de construção de imaginário, de como aquelas crianças se veem… E pouco antes tem o monólogo da Grace a respeito do que seria o “coração do mundo”, que é feita com a imagem de uma outra tela, o que traz um componente metalinguístico, pensando no que o cinema pode construir em termos de imagens. Queria que vocês falassem desses dois momentos, sobre como eles sintetizam um pouco essas discussões e esses desejos do filme.

Maurílio: Eu acho que nessa cena da Selma há algumas coisas bem importantes. Uma é a força dessa produção de imagens trabalhadas na periferia. A escolha de ela fotografar escolas não é à toa: qualquer pessoa que tenha estudado em escolas públicas mais sucateadas, e que estudou há mais tempo, tem noção disso, porque essa memória periférica é muito vaga. Há uma produção muito baixa de fotos. Então existiam esses fotógrafos nos anos 80 e 90, principalmente, que eram pessoas que se deslocavam para essas escolas e faziam essas fotos, e eram fotos caras. Por isso boa parte dessas crianças não ficavam com essas fotos, já que a família não tinha condição de pagar. Eu tenho vários amigos que não têm nenhum registro de fotos da infância…

Então naquela cena a Selma está fazendo um negócio, ela quer ganhar dinheiro, mas também cumpre um papel de um registro mais trabalhado daquelas crianças. Tem um fundo da foto mais trabalhado, e nós fizemos questão o tempo inteiro que aquele fundo fosse descolado da realidade daquele lugar. A gente conversava muito com a Rimenna (Procópio, diretora de arte), sobre esse fundo, e quando ela apareceu com aquela imagem foi uma coisa “uau, é isso mesmo que a gente queria”. A gente queria que fosse uma imagem descolada daquela realidade porque há também na cabeça dessas pessoas o imaginário de que essa foto tem que ser incrível, porque ela vai ser paga, é uma foto cara pra situação daquelas pessoas. Então tem essa construção da foto, o estúdio, a iluminação, um papel diferente; a Selma fala do papel… E isso é muito forte. Eu tenho uma foto daquelas que foi paga pelo meu irmão mais velho, minha mãe e meu pai não tinham condição de pagar.

É um negócio tão forte que o pai de uma amiga minha foi fotógrafo no bairro nos anos 80 e 90, e ela me disse que ele ficou com um acúmulo de fotos muito grande dessa época, e que agora está tentando vendê-las, porque naquela época as pessoas não tinham condição. Óbvio que todo mundo queria que essa memória fosse preservada, mas não tinham condições. E agora, como essas pessoas já são adultas, e talvez tenham condição de comprar, o pai da minha amiga está tentando vender para recuperar o investimento que ele fez.

Tudo isso para falar sobre o gesto da Selma… Ela sabe que não vai receber por aquela foto, mas ela entende que aquele menino se posicionou na fila sabendo que o pai ou a mãe dele não tinha pago. Isso é muito duro. E é bonito que você tenha observado essa cena, porque ela parece ser engraçada, né? A gente riu muito no dia, na feitura, mas ela é muito forte e diz sobre muita coisa ali. O garoto se posiciona naquela fila a partir desse desejo de ser retratado, de também fazer parte daquele espaço montado, pensado com uma beleza que é de outro lugar. E aí a Selma, apesar de saber que aquilo significa um prejuízo…

Gabriel: É que ela não é mercenária, né? A gente também vê ali uma cena muito bonita da Selma, porque ela entende a situação… E também essa coisa de dívida é um negócio que é muito triste, mas é uma coisa que no bairro vira piada. O pessoal fica se cobrando… Esse negócio do dinheiro é triste, é duro, mas não precisa ser só isso também. Como o Maurílio deu o exemplo do Léo, é a tristeza e a alegria convivendo o tempo inteiro no bairro. Então essa cena tem humor, tem um elemento triste e tem essa humanidade da Selma, que é uma pessoa muito carinhosa. Ela tem um lado duro, que é demonstrado na maior parte do filme, mas também tem uma relação afetiva com as coisas. Tirar fotos é um trabalho, mas ela também acha as fotos bonitas. Aquilo não é falso pra ela.

Maurílio: E sobre a cena na escola tem um dado curioso, que às vezes eu até esqueço, e quando me dou conta falo “nossa, isso é muito forte”, que é o fato de aquele lugar ser a sala de vídeo da escola em que eu estudei. Ali foi onde eu entendi que queria fazer cinema, naquela sala de vídeo. Óbvio que ali ela tá alterada pela direção de arte, mas é o mesmo lugar em que um professor de História passou Ilha das Flores, e eu tinha 14 anos. E aí coincidiu que a gente fosse rodar o filme lá, e justamente essa cena, que é sobre quereres, sobre querer estar em um outro lugar, almejar um outro lugar… E foi nesse lugar que eu realmente ousei pensar que eu poderia fazer filmes um dia. Acho que eu nunca tinha feito essa relação…

E essa talvez seja a cena que eu e o Gabriel mais tenhamos tido prazer na decupagem…

Gabriel: Foi a que a gente foi mais exigente, né?

Maurílio: Sim. Eu lembro do fascínio que a gente passou a ter já no roteiro pensando em como aquilo poderia dar certo…

Gabriel: E acho que tem esse elemento das crianças. Como é um filme sobre essa coisa “do que está em jogo”, eu acho que tem esse lugar do futuro ali. Pra mim a Selma sair de quadro e entrar uma menina que poderia ser a Selma criança é muito significativo, né? A gente está vendo ali um monte de pessoas que daqui a 20 anos vão ser outras coisas, vão ter se transformado, então eu acho essa atmosfera da cena muito bonita também.

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