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Filmes já muito falados (Cobertura do VI Cine Jardim)

25/08/21 às 10:31 Atualizado em 09/10/21 as 22:24
Filmes já muito falados (Cobertura do VI Cine Jardim)

Do mundo fora da bolha dos festivais e do cinema independente brasileiro, formado por pessoas que fazem cara de interrogação e/ou indiferença quando se deparam com a expressão Filmes de Plástico, muitas vezes ouvi a seguinte pergunta quando contava que tinha um site sobre festivais de cinema: “mas você viaja para todos?” Diante da imensidão do circuito de festivais brasileiros, que em 2018 ultrapassava os 350 eventos, a pergunta tinha um quê de nonsense, mas hoje penso que ela foi ressignificada. Com a migração das programações para o formato online, tornou-se possível, na teoria, viajar para todos eles.

Nos tempos pré-pandemia, a figura do crítico inédito era facilmente encontrável. Chamo assim aquele sujeito que, não importa o contexto, o tamanho, o perfil de público, a identidade e a cidade do festival, exigia sempre uma programação inédita (para ele, é claro), e logo chiava quando via que o filme exibido no festival que frequentara na semana anterior, em outra região do País, seria projetado novamente.

Nos festivais presenciais, a depender de sua proposta e do contexto da cidade, fazia sentido apresentar para o público local filmes nunca exibidos ali. Na época dos festivais online, esse ponto foi minimizado pelo fato de os filmes estarem disponíveis para todo o território brasileiro. Com isso, a defesa do ineditismo ganha um ponto a seu favor – e falo aqui não do ineditismo centralizador dos festivais competitivos, mas de um ineditismo difusor que priorize trabalhos com circulação ainda restrita. Uma pesquisa interessante nesse aspecto seria verificar o quanto da característica local permanece em cada festival, ou se eventos distintos tendem a ter um público homogeneizado no contexto virtual.

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Trago essas divagações a partir da minha relação com dois trabalhos presentes na Mostra Competitiva de Curtas do VI Cine Jardim: Baile, de Cíntia Dommit Bittar, e Ilhas de Calor, de Ulisses Arthur. Ambos são filmes já muito falados e premiados no circuito de festivais brasileiro. Se com o trabalho de Ulisses minha relação já era de proximidade, por tê-lo assistido muitas vezes em festivais e também em preparações de aulas e curadorias, com o curta de Cíntia a relação foi de ineditismo, visto que o havia perdido em algumas outras ocasiões nas quais poderia tê-lo acessado.

O filme de Cíntia, que retrata um núcleo familiar composto por três gerações de mulheres negras, é permeado pelas noções de ordinário e extraordinário. Nesse dia comum na vida de Andrea (Emilly de Jesus), o que deixa marcas são dois pequenos gestos de insubordinação. Em um deles, a desobediência está ligada ao uso da câmera digital sem o consentimento da mãe, que complementa a renda fazendo fotografias 3×4. A presença da bisavó diante da câmera, e o seu gesto final de rememoração, traz à tona uma espessura subjetiva antes inalcançável e se relaciona de maneira sutil com o tema da ausência histórica de fotografias de famílias negras no Brasil – algo central em curtas como Travessia, de Safira Moreira.

O segundo gesto de insubordinação a ser destacado se dá quando Andrea, em visita escolar à Assembleia Legislativa de Santa Catarina, cola com chiclete uma foto dela mesma no espaço “nobre” que traz quadros e mais quadros dos presidentes anteriores da Casa, todos eles homens brancos. É uma ação que se associa (de um modo peculiar, é verdade) àquilo que Carol Almeida (2020) aponta como um cinema brasileiro de levantes, com:

“Imagens que tenham a força de uma desobediência que, em si, não pode ser testemunhada. Ela só é vista por alguém que a toma como força expressiva de uma condição humana e, neste caso especificamente, por uma linguagem cinematográfica que toma o gesto para si própria, amplificando não apenas a ação insubordinada, como o resultado dela: os riscos no espaço.”

Em Baile, o gesto da criança substitui o risco pelo grude – um microlevante pegajoso, de ataque silencioso ao status quo de gênero, raça e classe. Mundos distintos que se diferenciam até mesmo pela janela de exibição, que do 3×4 das fotos caseiras se transforma por instantes no scope dos homens do poder, enfatizando pela linguagem cinematográfica o quão distintos são aqueles universos.

Já em Ilhas de Calor, essas diferentes ordenações se fazem presente pelas disposições espaciais presentes na escola. Há por um lado a rigidez que oprime, o viés conteudista associado a uma hierarquia nítida, reverberada no modo como as cadeiras são colocadas na sala com vistas a delimitar a relação professor-aluno. No campo oposto está a criatividade de um desenho, a mistura do tesão com o lúdico, de quem pisa nas cadeiras ou as empilha de modo a criar uma outra partilha, circular, horizontal.

A roda da conversa entre amigos ou da aula do professor mais descolado se baseia na confiança mútua. Não à toa, quando ela é rompida por conta de um coração partido e de uma bicicleta furtada, o movimento de câmera emula a circularidade, mas se interrompe por um microlevante: a pedra que é atirada em direção a quem quebrou esse elo de confiança, e que espalha estilhaços entre nós, espectadores.

Tanto Andrea, em Baile, quanto Fabricio, em Ilhas de Calor, dão a letra: “É melhor trocar esses olhos e aprender a me ver”.

Referência

ALMEIDA, Ana Caroline de. Riscos visíveis e invisíveis em um cinema brasileiro de levantes. Significação: Revista de Cultura Audiovisual, v. 47, n. 53, p. 48-69, 2020. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/160514#f1>

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