O clássico A Viagem da Hiena, dirigido pelo senegalês Djibril Diop Mambéty, foi exibido para a equipe e utilizado como inspiração pelos portugueses Filipa Reis e João Miller Guerra na realização de Djon África, primeira incursão ficcional da dupla depois de uma reconhecida carreira em documentários. Por isso veio bem a calhar a escolha do filme para abrir o 7º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, que nesta edição organizou uma mostra retrospectiva de Mambéty (juntamente a trabalhos do francês Jean Rouch).
“Foi um filme que de alguma forma nos tocou e inspirou para realizar Djon África, sobretudo para nos soltarmos, acho eu, de uma rigidez que o roteiro poderia trazer para o filme. Foi uma maneira de nós influenciarmos a equipe a se soltar desse roteiro”, explica Filipa Reis se referindo ao longa-metragem de 1973.
Djon África será distribuído no Brasil no segundo semestre, pela Vitrine Filmes. O longa é protagonizado por Miguel Moreira, morador de Lisboa que já havia participado de outros filmes de Filipa e João que possuíam uma chave mais ligada ao cinema documental. Na história ele interpreta um personagem homônimo que vai a Cabo Verde pela primeira vez em busca do pai que nunca conheceu.
O personagem é “alguém que vai à procura do pai e que gradualmente vai perdendo a sua capa de fanfarrão, percebendo que está cada vez mais perdido, cada vez mais sozinho, e talvez até cada vez mais um turista”, como define João.
Em conversa com o Cine Festivais durante o 7º Olhar de Cinema, Filipa Reis e João Miller Guerra falaram sobre a realização do filme.
Cine Festivais: Para começar a conversar, gostaria de saber a importância de estrear o filme no Brasil aqui no Olhar de Cinema e também perguntar sobre a influência que Djibril Diop Mambéty e Jean Rouch, que estão sendo homenageados pelo festival, têm para o cinema que vocês realizam.
Filipa Reis: Nós já havíamos tido um filme (Cama de Gato) exibido em competição no Olhar de Cinema, em 2013, mas naquela vez não pudemos vir, então de alguma forma foi uma maneira de retornar a um lugar por onde o nosso cinema já tinha passado. Também foi uma oportunidade de estrear Djon África no Brasil, que foi um dos países que coproduziu o filme, além de ser uma devolução da energia que alguns brasileiros colocaram no trabalho.
Sobre a segunda pergunta, posso falar que Touki Bouki (A Viagem da Hiena), dirigido por Mambéty, foi um filme que passamos para nossa equipe enquanto estivemos filmando em Cabo Verde. Ele de alguma forma nos tocou e inspirou para realizar Djon África, sobretudo para nos soltarmos, acho eu, de uma rigidez que o roteiro poderia trazer para o filme. Foi uma maneira de nós influenciarmos a equipe a se soltar desse roteiro.
Pensando na trajetória premiada de vocês nos documentários e na estreia em longas ficcionais, relacionei esse percurso com o da Marília Rocha. Vocês a conhecem?
FR: Conhecemos bem. A Marília fez parte da viagem conosco, esteve em Cabo Verde nos visitando quando estávamos fazendo Djon África.
Bacana. Em uma entrevista que fiz com a Marília sobre A Cidade Onde Envelheço ela disse que “o mais importante era trazer uma instabilidade do processo documental para um filme de ficção”. Como essa frase faz sentido para vocês?
FR: Bom, a “instabilidade” é quase uma palavra de ordem em Cabo Verde. Nós fomos fazer nossa primeira obra de ficção num local onde tudo era instável, onde nada é como você combina. Então eu acho que mais do que a questão do processo documental havia o local onde nós estávamos a trabalhar, que por si só trazia esta instabilidade. E diria que no nosso caso a questão foi conseguir nos soltar da rigidez que o roteiro nos estava a impor, porque sabíamos que havia zonas no roteiro em que dava para o documentário entrar, para o filme se soltar.
E a coisa foi deixar que isso acontecesse, ou seja, lidar com a frustração de que estávamos em um local instável e que nada era como havíamos planejado. Porque eu acho que a primeira ficção traz muito isso, né? Você quer muito fazer o que imaginou. Então houve uma altura em Cabo Verde na qual nós pensamos “não vale a pena lutar contra uma coisa que não vai acontecer, nada vai acontecer como estava escrito. Portanto, vamos abraçar essa instabilidade e deixar também que a energia desse lugar e dessas pessoas entre no filme”.
Acho que foi finalmente aí, pelo menos para mim, que eu fiz as pazes com aquilo que estava a acontecer e deixei ir, e acho que isso está muito presente no filme. É uma viagem que vai perdendo cada vez mais o controle, o próprio personagem vai perdendo o controle de sua vida, e acho que nós, como realizadores, deixamos que essa falta de controle invadisse o filme e começamos a curti-la. Tem um momento em que você começa a gostar que nada é como você pensou.
João Miller Guerra: No fundo eu acho que é quando tu deixas de sentir isso como uma maldição e passa a sentir isso como uma bênção. É muito importante esse lado de virada de perceber que não controla tudo, e é bom que saibas que não vai conseguir controlar tudo, quer por uma questão especifica do local, quer porque talvez essa opção de vir do documentário e passar para a ficção tenha provocado essa sensação de que tudo teria que ser controlado, e na verdade não é assim – e ainda bem que não é assim. Escrever um filme não é filmar um filme e filmar um filme não é montar um filme…
FR: Até porque eu acho que nós sempre apreciamos no cinema, de uma forma geral, quando essas fragilidades e essas imprevisibilidades estão nos filmes. Acho ótimo quando se vê que há cenas que têm alguma fragilidade e que estão numa montagem final. Não há nada pior do que um filme que parece todo redondinho, todo perfeitinho. Não tem interesse, não tem humanidade.
Vocês já haviam filmado o Miguel Moreira anteriormente em documentários. Como foi a proposição que fizeram para ele em termos de ideia de atuação?
FR: Nossa relação com o Miguel sempre foi uma relação de amizade, mas também, ao mesmo tempo, uma relação profissional. Sempre que filmávamos sabíamos que ambos estávamos de alguma forma a receber pelos trabalhos que estávamos a fazer. Só que a diferença é que os filmes anteriores retratavam a vida do Miguel mais ou menos tal como ela era, no território que lhe é peculiar (Portugal). Com a ida para Cabo Verde fomos para um território que era desconhecido para o Miguel, que era um território de fantasia, e com um ritmo de trabalho e um período de filmagem bem maior do que em nossos filmes anteriores. Acho que ele sentiu essa mudança.
JMG: Mas correu bem. O Miguel é um amigo, uma pessoa com quem não existe uma relação de estranheza. Ele conhece bastante bem nossa personalidade e nós conhecemos bastante bem a personalidade dele. Acho que isso ajudou muito nesse deslocamento, que de fato houve, de sairmos com ele de um território que lhe é familiar e trazê-lo para uma proposta mais exigente para todos nós.
Pensando um pouco no personagem dele em Djon África, uma cena recorrente são as elipses que mostram o protagonista acordando em um lugar que ele não sabe exatamente qual é. Como isso foi pensado por vocês?
JMG: Essas cenas estavam escritas tal como a gente vê no filme, pelo menos a maior parte delas, e acho que traziam essa intenção de fazer do Miguel alguém que não pertence a Cabo Verde. Ou seja, de estabelecê-lo como alguém que vai à procura do pai e que gradualmente vai perdendo a sua capa de fanfarrão, percebendo que está cada vez mais perdido, cada vez mais sozinho, e talvez até cada vez mais um turista.
Vai ficando evidente ao longo do filme que ele não pertence àquele lugar, e eu acho que as acordadas dele são sempre o reforçar de uma ideia de que ele não controla assim tão bem nem lê assim tão bem as pessoas que atravessam seu caminho. Ele de certa forma pensa que vai ludibriá-las e acaba ele ludibriado.
FR: Mas também há um lado boêmio no filme, de gozar a vida, que eu acho que também está associado a algumas dessas elipses. Essas cenas têm muito a ver com a nossa intenção de fazer um filme que celebra a vida, que celebra a festa.
E em relação à personagem da avó de Miguel? Mesmo com pouco tempo em tela, é bem importante para aquela narrativa.
FR: É ela quem passa a identidade ao Miguel. Ele nunca tinha ido a Cabo Verde e, apesar de tudo, tinha esse fascínio com a África e tinha uma cultura cabo-verdiana que lhe foi passada ano após ano por essa avó. No seu sonambulismo, ela recordava a vida em Cabo Verde e trazia ao Miguel a experiência de sua vida por lá. É uma espécie de projeção de uma identidade africana que o Miguel transporta para os seus 20 e tantos anos de vida, até porque há uma identidade portuguesa, europeia, que lhe é constantemente negada.
Ao mesmo tempo sinto que há um certo escape. Na verdade ele não está a fazer grande coisa em Portugal. Então é uma certa esperança de que apareça qualquer coisa a que ele possa se agarrar. É um personagem que está um bocado no limbo, que não tem grandes perspectivas de vida.
Pensando no contexto da produção portuguesa atual, como vocês sentem em outros filmes do país de vocês essa tentativa de lidar com o passado colonial? Isso é algo que se aprofundou nos últimos anos?
FR: Acho que há alguns cineastas que viveram nas ex-colônias e sempre tiveram vontade de tratar desse tema. Vamos lembrar da Margarida Cardoso, que viveu em Moçambique e sempre fez filmes ligados a essa herança e à vida nas ex-colônias. Nossa geração pós-revolução lidou com esse passado colonial através das pessoas africanas que estão em Portugal. São elas que nos levam para esses países que outrora foram colônias portuguesas. No nosso caso, foram as pessoas cabo-verdianas que vivem em Lisboa que nos levaram até lá.
JMG: A minha avó viveu na África e eu cresci ouvindo as histórias dela de Moçambique. São pessoas que vêm com uma enorme saudade, até pela maneira como traumaticamente são forçadas a regressar, e deixam ali abruptamente uma vida que poderia ter continuado. E eu acho que sim, o cinema português continua a tratar dessa herança da descolonização e do passado colonial e está de alguma forma a perceber que isso não foi tudo um mar de rosas…
FR: Vende-se muito em Portugal a ideia de que os portugueses foram bons colonizadores, e eu acho que isso é um discurso que a nossa geração começa a pôr em causa, mas durante muito tempo era mais fácil aceitar esse discurso do que realmente pensar a nossa identidade e colocar o dedo na ferida.
Agora queria ouvir vocês a respeito do trabalho com os montadores brasileiros Eduardo Serrano e Ricardo Pretti, além da parceria com a Desvia Filmes, de Pernambuco.
FR: Foi claramente uma coprodução por razões artísticas. Conhecemos (Gabriel) Mascaro e Edu(ardo Serrano) no IDFA, em Amsterdã, no ano de 2012. Já ali combinamos que seria bem bacana se pudéssemos vir a trabalhar juntos. Ficamos em contato desde então, nos encontramos em alguns festivais, e quando chegou a hora de fazer o Djon África ficou muito claro que a Rachel (Daisy Ellis), da Desvia, seria nossa parceira. Então mal ganhamos o fundo e sabíamos que queríamos trabalhar com o Eduardo como montador. Acontece que houve um momento em que a pós-produção atrasou, porque engravidamos, e foi aí que entrou o Ricardo Pretti na equipe, também de uma forma super natural.
Sinto que o filme cresceu muito com esses dois elementos na equipe e acho que o aporte artístico que eles trouxeram é muito visível no filme. Nosso cinema e o cinema brasileiro de autor se comunicam muito. Se agora fôssemos filmar outra vez saberíamos um monte de gente brasileira que gostaríamos de chamar para o filme.
E já há em mente a produção de um segundo longa ficcional?
JMG: Há sim. A gente está escrevendo um segundo longa para um edital que vai haver em Portugal. Vai ser bem diferente, não tem nada a ver com esse lugar colonial. É passado no norte de Portugal e será com uma senhora que vive em uma aldeia [povoado] que está em transformação. É uma senhora que decide ficar nesse povoado quando toda gente é empurrada para partir. Será uma ficção que, assim como nossas ficções são, e acho que serão sempre, é muito enraizada nas historias pessoais de quem encontramos.
*O repórter viajou a convite do 7º Olhar de Cinema