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Espiar pelas cortinas, reinventar-se à mesa: uma conversa com Ana Johann

01/02/21 às 16:05 Atualizado em 10/02/22 as 15:25
Espiar pelas cortinas, reinventar-se à mesa: uma conversa com Ana Johann

Pelo seu primeiro longa-metragem de ficção, A Mesma Parte de um Homem, a diretora Ana Johann recebeu no último sábado (30), dentro da programação da 24ª Mostra de Tiradentes, o Prêmio Helena Ignez, que é oferecido pelo Júri Oficial a um destaque feminino atuante em qualquer função criativa nos filmes das Mostras Aurora e Foco.

Desde 2012, ano em que ganhou o Prêmio Especial do Júri no 45° Festival de Brasília pelo longa documental Um Filme para Dirceu, Ana vem trabalhando no roteiro de sua estreia na ficção. Escrito em parceria com Alana Rodrigues, A Mesma Parte de um Homem é centrado na figura de Renata (Clarissa Kiste), uma mulher que vive no campo com seu marido e uma filha adolescente. Inicialmente, ela concebe o medo como um sentimento corriqueiro, mas ao passar por algumas situações, começa a encontrar o desejo e a pulsação da vida, sobretudo a partir da chegada inesperada de Lui (Irandhir Santos).

O desenvolvimento narrativo do filme carrega traços conscientes e inconscientes da infância da roteirista e diretora em uma vila rural no Sul do Brasil. “Eu sempre fui muito observadora, e vivia numa casa de madeira onde não tinha corredores. As portas dos quartos já saíam na cozinha, e a gente tinha cortinas separando a sala e a cozinha. Então quando eu era pequena espiei muitas cenas dessa cortina, daquele lugar que o adulto acha que ninguém tá vendo e que ninguém tá escutando, mas eu estava lá atenta”, recorda.

Em conversa com o Cine Festivais, Ana Johann comentou a respeito da centralidade que a mesa e a comida exercem em seu filme, apontou referências que nortearam o projeto e detalhou alguns pontos-chave de seu processo criativo.

Cine Festivais: Queria começar te perguntando a respeito de um motivo recorrente em A Mesma Parte de um Homem, que é a imagem da mesa. Ao longo do filme são vários os modos de enquadrar os personagens ali sentados, e isso vai pontuando algumas mudanças de relações ocorridas ao longo da projeção. Como que essa preocupação foi trabalhada ao longo do seu processo criativo como roteirista e diretora?

Ana Johann: Realmente eu trago essa casa também como um personagem, um lugar de onde é difícil fugir… Essa casa é quase como um corpo. E também penso que estou trabalhando muito um inventário familiar, e dentro desse inventário e dessa relação de ficção familiar acho que a cozinha tem um lugar importante. É a mesa onde as pessoas fazem as refeições, contam histórias, trocam olhares, trocam ameaças… sutilmente, né? E ali realmente eu construo quase uma dança das cadeiras. Uma amiga veio me falar: “eu quase fiz um ‘uhul’ quando a Renata sentou no lugar do marido.” (risos) Então eu tenho ali essas pessoas que também vão trocando de lugares. Porque o filme fala desses papéis, dessa troca de lugares, de subverter, de inverter. Existe esse lugar bem da tradição, do homem sentar na ponta da mesa, de ser o ‘chefe da casa’. E aí tem essa cena quando o Lui senta no lugar dela e a Renata vê que pode ocupar outro espaço…

Ainda tendo em vista todas essas cenas que ocorrem na cozinha, você falou no debate que “o gozo faz você lembrar de quem você é”. E eu acho que essa ideia do gozo, do prazer, de alguma maneira também está colocada no filme a partir da comida. A comida traz essas sensações, evoca memórias, e isso aparece em A Mesma Parte de um Homem sobretudo naquela cena em que os personagens começam a fabular sobre viagens, sobre o passado, e me parece que além desse desejo encarnado nas cenas de sexo entre a Renata e o Lui, a comida também é um elemento muito sedutor. Através da comida a gente tem memórias, a gente se relaciona…

Sim, perfeito! Eu tenho essa origem de ascendência alemã. Nasci em uma vila rural no Sul, e de certa forma a minha família permaneceu nesse lugar… então meio que eles repetem gestos que talvez na Alemanha não sejam mais assim. Eles têm uma coisa ancestral relacionada ao guardar. Estocar comida, fazer o ‘rancho’ do mês, mesmo não necessitando mais disso, porque tem uma relação muito grande com a falta. E a batata é isso, né? Tem essa relação da guerra, de as pessoas guardarem comida, esconderem em algum lugar, e o filme traz vários vestígios dessa origem minha. Num pano da cozinha que está escrito em alemão; no spätzle que ela cita, mas não sabe a pronúncia correta, e ele corrige… A batata é quase que um objeto que eu vou desenvolvendo, porque primeiro ela está no prato e não é comida quando o marido desaparece. Depois essa batata é dada pro cachorro. E depois ela ressurge como uma memória da salada de maionese tão tradicional na cultura alemã. Então tem toda essa relação. Por isso que não por acaso o Lui fala da Alemanha, e não da Polônia ou de outro lugar.

E pelo modo como você situa os personagens no primeiro momento do filme, fico pensando como não havia prazer tanto no sexo quanto na comida. A única cena de sexo da Renata com o primeiro marido é absolutamente mecânica, na qual o prazer é exclusivamente masculino. E também não há prazer ao cozinhar e ao servir quando isso surge como um lugar social imposto, né?

Sim, justamente porque aí vira uma obrigação. Tem total também essa relação que você fala do prazer de comer e da relação com o sexo. Tem a cena que você cita, na qual ela está ali para o desejo do marido, e no plano seguinte a Renata está amassando um pão quase como ela é amassada. De um jeito tão objeto… E realmente tem esse lugar do medo, da apatia, e à medida que o desejo passa a florescer começa a entrar luz nessa casa, a Renata começa a ficar diferente, a relação de cozinhar e todo o resto muda. Porque realmente o problema não é cozinhar para os outros, e sim servir os outros o tempo todo, né? E foi isso que as mulheres das nossas famílias sempre fizeram. Elas sempre cuidaram de todos, mas isso virou uma obrigação e um lugar difícil. Eu por exemplo adoro cozinhar, e agora durante a pandemia tive que cozinhar muito, praticamente todos os dias. E aí eu parei de gostar de cozinhar, porque parei de ter prazer, virou uma obrigação. Isso me lembrou as mulheres da minha família – a maioria não gosta de cozinhar justamente por causa disso.

Você acha que essas relações com a cozinha que estamos comentando aqui vieram muito do seu período de infância por viver numa vila rural?

Tem um outro longa meu que já está com o roteiro praticamente pronto, chamado Dias que Palpitam no Escuro, em que eu trago muito essa relação da cozinha… Porque tem coisas que a gente cria e a gente não para pra pensar, né? Então agora eu vou pensar com você. (risos) Na minha família a gente não tinha muito a questão do lazer. Até tinha sala, mas era uma TV para sete pessoas. Era muito difícil ocupar aquela sala. Por isso sempre quando a gente conversava, se reunia, era sempre na cozinha. Tem muito essa relação.

Eu sempre fui muito observadora, e vivia numa casa de madeira onde não tinha corredores. As portas dos quartos já saíam na cozinha, e a gente tinha cortinas separando a sala e a cozinha. Então quando eu era pequena espiei muitas cenas dessa cortina, daquele lugar que o adulto acha que ninguém tá vendo e que ninguém tá escutando, mas eu estava lá atenta. Esse meu segundo longa inclusive nasce de uma cena que eu espiei da cozinha. Então com você me perguntando agora, eu acho que é por aí…

Você citou essa situação em que uma criança espia por uma cortina e ouve e vê coisas que os pais não percebem. Queria partir daí para chegar à personagem da Luana, que penso que rompe com determinadas expectativas e limites. É um filme que está falando muito sobre determinados lugares sociais, e acho que muitas vezes a Luana se coloca no meio do caminho dessas representações, inclusive já na primeira cena, quando vai caçar com o pai, e também mais para o final, quando ela vai caçar com o “novo pai”. Há esse lugar um tanto quanto andrógino dela, né? Ela é chamada pelo nome feminino, mas há algo tanto fisicamente quanto na expectativa que se coloca sobre ela que faz com que esses lugares tidos como feminino/masculino fiquem um tanto nublados…

A Luana já estava descrita no roteiro como andrógina. Isso estava escrito, mas à medida que você vai fazendo acaba esquecendo de certas coisas. Mais do que isso estar numa descrição, o importante eram as ações, né? É uma menina que está meio que agênero. Ela tem essa delicadeza, mas ao mesmo tempo ela caça, ela mata. E a gente pensou muito nessa personagem como um contraponto à mãe. Eu penso sempre em gerações diferentes. A Renata realmente é um tipo de mulher difícil. Para mim era difícil lidar com algumas situações, por exemplo colocar aquele tipo de sexo que tem na primeira cena com o marido. Eu pensei: “nem eu quero ver isso nos filmes, como é que eu mostro isso?” Mas para mim era importante porque se eu não mostro aquela cena, outras talvez não tivessem tanto sentido. Então pensei que teria que mostrar como essa mulher vive, para depois mostrar o que vai acontecendo com ela. E a Renata é uma pessoa toda medrosa, que tem esse imaginário construído dessa necessidade de um homem, enquanto a Luana não, ela é da geração das adolescentes de agora, ela fala “vamos sair daqui”, “decide o que você quer fazer, tá tudo bem”. Então para mim era muito importante trabalhar esse contraste.

E aí no processo a Clarissa (Clarissa Kiste) foi uma indicação do produtor (Antônio Junior), porque ela tinha feito Ferrugem, e foi algo meio instintivo, na mesma hora em que vi Ferrugem falei “essa é a Renata”. O Iran (Irandhir Santos) surgiu no meio de outros nomes, o Otavio (Otavio Linhares) também não foi através de testes, e pra gente encontrar a Luana ficamos três meses fazendo um longo processo de testes. Pra começar você não acha uma adolescente atriz, né? Para mim atriz, ator é alguém que realmente levou anos se formando. Então eu já sabia que teria que trabalhar com meninas que não tinham experiência, e aí primeiro fiz uma divulgação de procura através de vídeos, e recebemos cerca de 200. Porque aí eu já ia examinando o sotaque, a personalidade… porque eu tava lidando com uma personagem do mato. Então, dependendo, eu olhando pra pessoa já via quem não iria conseguir chegar.

E aí fomos fazendo vários testes, até que a gente ficou entre a Laís (Laís Cristina) e umas duas ou três outras meninas. A Laís já fazia teatro, e eu tinha receio que na gravação ela ficasse num estado do teatro, e conversando ela entendeu muito rapidamente o que era cinema. E ela surpreendeu incrivelmente. Você não duvida que ela é de lá, né? E conhecendo a Laís, a fala dela, o corpo dela, a postura é totalmente outra. Então ela realmente é uma grande atriz, encarou aquilo como um trabalho, mergulhou naquilo. E inclusive ela é vegetariana. (risos) E essa foi uma conversa que eu tive com ela, porque a Luana era uma menina que caçava, que comia carne. E aí sabendo disso eu conversei com ela se realmente queria fazer o filme ou não, mas ela… ela é atriz, né? Então a Laís falou: “não, eu vou fazer. A Luana não é vegetariana” E realmente é um achado essa menina. Espero que ela tenha muitos outros trabalhos.

Você falou que a Luana serve como contraponto à personagem da mãe e como alguns limites muito respeitados pela mãe não fazem sentido para ela, ou para a geração dela. E aí fico pensando também na questão do tempo e do espaço no filme, e na contraposição entre o mundo interno e o mundo externo. Tem aquele momento em que a personagem da Clarissa Kiste vai até a estrada, só que ela olha e volta. Em alguma medida havia ali uma oportunidade de escape, representada pela estrada, e a reação ali é do retornar. Isso com relação ao espaço. E quanto ao tempo, é um filme que em alguma medida cria um certo nevoeiro temporal, de a gente não saber muito bem num primeiro momento se é um filme do presente, se é um filme do passado, ou se essas noções cartesianas de tempo não fazem sentido para aquele universo… Queria que você comentasse sobre esses dois aspectos.

O roteiro era muito mais longo. Esse é meu primeiro longa-metragem, então é sempre um desafio e um aprendizado, inclusive para o próximo eu estou encurtando bastante esse prólogo. E aí havia realmente mais situações nesse início que depois eu cortei porque preferi que… é que o filme vai nascendo muitas vezes, né? E aí ele nasce na montagem de novo, com o material que você tem, e olhando para esse material eu queria que essa mulher realmente não saísse de casa. Ela só sai de casa nesse momento, quando vai até essa estrada. O marido morreu mas não se explica muito, justamente porque eu queria trazer também essa ambiguidade; não explicar totalmente e deixar espaço para o espectador mesmo. E o que eu estou percebendo agora é que as pessoas podem ter várias leituras dessa “mesma parte de um homem”, do que é isso. De uma certa forma o roteiro estava mais explicado, tinha uma certa explicação, e depois achei muito mais interessante confundir as coisas.

Por exemplo, tenho uma cena em que realmente os policiais vão procurar pelo Lui, e na montagem eu resolvi tirar porque já não me interessava. Era muito mais interessante pensar quem está vestindo qual papel e quem está mentindo do que eu dar tantas certezas assim. Então eu realmente misturo um pouco esse tempo e esse espaço no início, o que pra mim tem a ver com essa configuração do medo da personagem, que é uma sensação que deixa as pessoas confusas.

A Mesma Parte de um Homem começa como um filme de caça e mantém um pouco desse tom de ameaça, de tocaia ao longo de boa parte. Através disso penso que ele dialoga com alguns gêneros cinematográficos como o suspense e o horror. Como que você, que é uma estudiosa do roteiro – tem mestrado sobre o tema, pensou essa relação do filme com os gêneros cinematográficos nos diferentes momentos da criação?

Interessante essa pergunta. Enquanto você falava eu estava pensando em várias coisas que também tem relação com a minha infância. Por exemplo – eu até escrevi um pouco sobre isso -, acho que há uma educação para a violência e não para a nudez; as pessoas estão muito mais preparadas para verem corpos mutilados do que para ver o prazer. E eu mesma tenho um horror a ver coisas muito explícitas, essa mutilação, esse sangue. Mas ao mesmo tempo eu lido bem com o horror psicológico. De uma certa forma acho que isso vem da minha infância, porque esse lugar em que eu morava era isso. Eu vivia em uma casa de vila rural com a minha mãe e meus irmãos e nem sempre meu pai estava em casa. Quando isso ocorria minha mãe fazia todo um ritual de olhar embaixo da cama, revistar guarda-roupa e fazer a gente dormir no único cômodo de alvenaria que tinha na casa. E era um horror quando a gente escutava o cachorro latindo. Então acho que antes do roteiro propriamente dito, esse foi um ensino de tensão que eu já tenho muito impresso nas minhas células. De perceber muito esses elementos da tensão, e aí depois no roteiro a gente foi jogando com isso, com esses ritmos… Eu não conseguiria ver esse filme sem os animais e sem a caça porque também tem muito a ver com esse lugar da minha infância, e também tem a ver com a natureza. A minha leitura é de um filme circular. Ele começa na floresta e no fim a resposta vem da floresta, e isso que leva à decisão final.

E eu nunca pensei muito… assim, pra mim ele é um drama, os filmes que eu mais gosto são dramas existencialistas, e eu nunca pensei em dialogar com filme de terror/horror, mas acho que o interessante são essas impressões que estão no nosso próprio corpo. Eu estudei várias cineastas mulheres porque queria fazer uma pesquisa extensa e encontrei uma cineasta que, claro, o cinema dela é muito diferente, mas que entendo que estou em diálogo, que é a Andrea Arnold, a britânica. Ela tem um jeito muito particular de filmar mulheres, filmar sensações e tensões, e ela fala muito das mulheres, dos animais, só que as mulheres estão na cidade, então é um outro contexto. Quando conheci por exemplo o Fish Tank, dirigido por ela, me apaixonei. Foi uma referência para o A Mesma Parte de um Homem, embora sejam trabalhos muito diferentes, mas pra mim é mais esse diálogo com essa sensação, com a tensão que ela cria, a relação da câmera com os corpos…

Você citou essa relação com os animais, e vejo no filme duas vertentes de diálogo com essa temática da natureza. A primeira seria o mundo animal, e tem um motivo recorrente que é a aparição do sapo tanto solto na natureza quanto preso em um pote de vidro. E a segunda seria a questão dos lugares humanos tido como naturais, que se relaciona sobretudo com a questão da sociedade patriarcal. Para além dessa noção da experiência vinda da sua infância, já citada por você, como que foi a construção desses elementos ao longo do processo criativo?

Eu tenho um trabalho como roteirista, sou professora, pesquisadora… Então eu tenho um trabalho de processo, de rigor. Ao mesmo tempo eu trabalho muito na intuição e na razão, pensando que as ferramentas dramatúrgicas são importantes, mas em certos processos. Às vezes até brinco com os alunos: “não adianta você começar uma ideia e querer formatar ela numa jornada do herói, mas se em algum momento você vir que a história que você está escrevendo se insere numa jornada do herói/da heroína, aí você pode pensar naquilo”. E de uma certa forma é isso que eu faço: trabalhar de uma forma muito intuitiva, mas claro depois analisar um pouco, e também não totalmente, porque acho que tem coisas nos filmes que a gente não vai dar conta de tudo.

Os animais eram uma coisa muito presente na minha vida, os cachorros, os sapos. Então o cachorro é um personagem, está sempre circundando, avisando, e está em relação com esse personagem do Lui. Renata e Luana deixam tudo no final, mas o cachorro está ali com elas. E a relação do sapo é interessante pensar, porque eu despejo coisas, vomito coisas, e depois que vou pensar o que aquilo quer dizer. Gosto muito dos arquétipos sobre os animais, tenho um livro que fala desses arquétipos e dessas representações, tem sempre fábulas pros animais, né? E aí eu fui depois ver o que o sapo significava, e o sapo tem uma coisa em relação à água e à própria transformação. E no filme tem toda a questão do sapo enclausurado – quando Renata está fazendo sexo com o marido e é ruim, a Luana está com aquela lanterna no sapo. Depois o sapo está fora. E no fim a filha o liberta e mostra a cidade.

É difícil às vezes falar disso porque também quero deixar para cada um interpretar, mas pra mim o sapo tem uma relação muito direta com a mãe, o tempo todo que ele está circundando tem relação com a mãe, até quando a filha tira esse sapo do vidro e mostra a cidade. E quando a gente gravou o filme a continuísta mesmo falou: “nossa, agora entendi!” Porque os animais estavam lá, os cachorros estavam lá, os sapos estavam lá. Claro que a gente tinha o nosso cast (risos), mas esses animais já habitavam aquele lugar.

Você colocou esse desejo de que a Renata estivesse sempre atrelada à casa, escolha que foi acentuada no processo de montagem. A partir disso fico pensando no momento do filme em que há um plano geral da casa com um nevoeiro. Em alguma medida essa noção de totalidade do espaço nunca nos tinha sido dada anteriormente, ou pelo menos não com essa abertura. E há ali uma contraposição da montagem entre uma chama e um nevoeiro. Aí podemos lembrar também da cena em que se fala sobre neve, e a neve ganha talvez um outro contorno…

Sim, acho que é o que estava pensado nessa decupagem, porque como trago esse lugar de clausura, planos mais fechados, essa personagem que nunca sai e quase que mal conhece o espaço da própria casa, à medida que a Renata vai ficando à vontade ela começa a sair dessa casa e a se relacionar com esse espaço de uma forma diferente. Então esse plano faz muito sentido porque ela está a muitos metros dessa casa, olhando para ela… E com você falando agora fiquei pensando também que é justamente nesse momento em que a Renata sai totalmente dessa casa que ela realmente é encurralada a tomar uma decisão. Tanto que a partir daquela cena que o Lui volta com a filha é que a Renata abre a porta da casa pela primeira vez à noite. Ali ela está também de uma certa forma se libertando dessa casa. Acho que é mais nesse sentido.

Pensando nessa libertação, acho que um desafio na construção do roteiro diz respeito ao quão consciente a personagem está da sua própria localização enquanto pessoa oprimida dentro desse microcosmo social, e aí fico pensando em como é importante que a atuação não traga essa consciência política/social que vem da roteirista, da diretora, de quem está assistindo, né? Isso passou pelo roteiro, pelo processo com a Clarissa Kiste?

Com certeza, porque eu trago uma personagem que não é feminista, né? Mas ao mesmo tempo eu tinha que ter esse contraponto da Luana, e era um ato político do roteiro pensar personagens que estão em determinado papel e o que acontece para essas pessoas despertarem minimamente. Nem sei o que vai acontecer com a Renata, porque ali a situação fica em aberto, eu só sei que a Luana é um outro tipo de mulher. Mas a Renata também passou por algumas coisas e agora está livre. Ela é uma personagem que não é consciente, que vai repetindo esses papéis.

No ano passado eu aproveitei inclusive a pandemia para escrever um primeiro romance, que agora estou reescrevendo, e estava muito pensando nisso, nesse personagem em que de repente desperta uma consciência. Acho que essa questão de pensar em si próprio, de pensar sobre papéis, são muito poucas pessoas que fazem. A maioria simplesmente vive. Vive confuso, vive cheio de dor, mas nem para pra pensar o que está sentindo, né? E enquanto roteirista e cineasta eu acredito muito no poder de representação e invenção, mas a gente está em diálogo com a realidade, então também não me interessa só mostrar mulheres empoderadas, mas mostrar lugares em que elas estão e que lugares elas podem chegar… Subverter esses lugares. Porque eu acho que as mulheres que estão num lugar que já tem controle do seu desejo, do seu corpo e do que fazer no mundo são poucas ainda. Infelizmente.

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