A película nunca deixou de habitar a experiência de cinema da dupla de cineastas Gustavo Jahn e Melissa Dullius. Os rolos que dão à luz os seis segmentos do longa-metragem Oráculo são parte de um processo artesanal que inclui muitas vezes o uso de filme já vencido, guardado em geladeiras em Berlim (cidade onde moram) ou outras localidades. “A gente não vive mais essa época de: ‘ah, vamos filmar uma paleta leitosa, vamos usar tal filme’. Não é essa realidade, né? E mesmo se fosse, a gente não tem o conhecimento e uma formação como câmera para fazer este tipo de escolhas, então tudo acontece um tanto por acaso”, comenta Melissa.
O interesse pela técnica reverbera na proposta experimental já presente em outros trabalhos do duo, como o curta Éternau (2006) e o longa Muito Romântico (2016), e que em Oráculo se desenvolve a partir de planos heterogêneos (uma garota tocando violão em seu quarto, um homem que caminha sobre uma ponte e outro que se relaciona circularmente com o mar) que têm como maior ligação a finitude da película.
“Eu não entendo muito de fenomenologia, mas acho que talvez essa coisa de buscar a transcendência através da matéria tenha um pouco a ver com isso. Tudo importa, né? O vento, o ator, a atriz, a personagem, a pedra, o mar, o rolo de filme, a câmera… todo mundo tá atuando junto pra criar aquela imagem. E talvez isso seja uma ideia de visão mística, ou de transcendência, de botar tanto valor na matéria e deixar a matéria trabalhar, e aí algum tipo de poesia, algum tipo de mistério, alguma coisa vai ser revelada”, diz Gustavo.
Na entrevista a seguir, concedida ao Cine Festivais após a exibição de Oráculo na edição online da 24ª Mostra de Tiradentes, Gustavo Jahn e Melissa Dullius comentam este peculiar processo de realização.
Juliana Costa: O cinema de vocês sempre dialogou com o mágico, o mistério, e quase sempre existe essa relação com o outro mundo a partir de portais, talismãs, xamãs. Em Oráculo, o mistério parece estar cada vez mais neste mundo, na simples presença dos corpos nos espaços. Como é pra vocês essa relação do cinema, da câmera, do registro do real, com o desconhecido?
Melissa Dullius: Eu poderia começar falando do título. Qualquer título carrega uma responsabilidade, né? Um título é uma promessa. Sinopses são promessas que a gente dá, e eu acho que o Oráculo tem a ver um pouco com esse método de como ele foi feito, um pouco remoto, um pouco a distância. E essa coisa de o Gustavo falar: “vai ser assim”, e lançar a pergunta… não que um seja o oráculo e o outro a pergunta, mas a pergunta vai e ela volta, aí ela ecoa e vai de novo.
Naquela sinopse curta a gente fala que é a voz tanto da pergunta quanto da resposta. Então é sobre quebrar um pouco isso: um oráculo não vai falar do futuro, ele vai falar só sobre o agora. É um filme no qual você coloca sua intenção, e você recebe. Essa é a ideia: o oráculo como uma contemplação. Não tem uma chave de leitura, mas tem essa promessa do momento do encontro.
Gustavo Jahn: Sobre corpos no espaço, né? A Ju colocou desse jeito e perguntaram lá no debate em Tiradentes o que vinha primeiro, se eram os personagens ou se era o espaço. E a gente respondeu um pouco à queima-roupa, de uma maneira bem objetiva, que foram os personagens que vieram antes e apontaram os espaços. Depois eu fiquei pensando nisso, e na verdade são coisas inseparáveis. Os personagens só existem naqueles espaços. A partir do momento que eles são filmados, não importa mais se foi a Liz (Alice Bennaton) que escolheu o quarto dela para filmar, se foi o fato de que a Luana (Luana Raiter) estava em Barcelona… eles só existem naquele espaço e eles têm o mesmo valor. E aí levando isso um pouco mais adiante, ligando com a questão da materialidade das coisas… eu não entendo muito de fenomenologia, mas acho que talvez essa coisa de buscar a transcendência através da matéria tenha um pouco a ver com isso. Tudo importa, né? O vento, o ator, a atriz, a personagem, a pedra, o mar, o rolo de filme, a câmera… todo mundo tá atuando junto pra criar aquela imagem. E talvez isso seja uma ideia de visão mística, ou de transcendência, de botar tanto valor na matéria e deixar a matéria trabalhar, e aí algum tipo de poesia, algum tipo de mistério, alguma coisa vai ser revelada.
A própria questão de filmar só um rolo é muito mais que uma espécie de ato heroico de “vamos filmar de uma vez só para ver o que acontece”. Aquele rolo que a gente escolheu, que foi achado numa geladeira, talvez num LaborBerlim, tinha o nome da pessoa a quem pertenceu antes. Aquele rolo especificamente também tá trabalhando no momento em que está rodando. Então tudo que tá envolvido… e são poucos elementos, né? Tudo está envolvido, a natureza… enfim. Então eu acho que é um filme que tenta comunicar, dialogar, com essa questão dos materiais, através da matéria.
Que não é muito diferente… hoje eu tava trabalhando em um projeto que a gente tem com uma artista amiga nossa, e ela faz uma citação de Straub (Jean-Marie Straub) e Huillet (Danièle Huillet) na qual eles falam de uma coisa bem parecida, de uma maneira bem simples na verdade. Eles estão falando daquele filme History Lessons, que só tem planos-sequência dentro de um carro, cruzando Roma, e Straub fala que tão importante quanto o rapaz dirigindo é o transeunte que tá cruzando a rua, é a luz que tá mudando, é o passarinho que tá cruzando… tá tudo jogando junto. É por aí, é mais ou menos por esse caminho.
Adriano Garrett: Aproveitando essa primeira pergunta, me vem muito o plano final do filme, porque parece que ele traz de algum modo uma ideia de circularidade. Pensando o filme como esses elementos individuais, que estão ali dispostos nesse mesmo longa-metragem, me parece que esse último plano evoca um certo recomeço também. E eu fico pensando muito nessa questão do nevoeiro, e como a partir de alguns recursos técnicos, que não estão ligados à movimentação de câmera, esse regime de visibilidade se modifica ao longo desse último plano. E o cinema está sempre lidando com essa ideia, com a opacidade e a transparência, e isso de múltiplas formas. Se a gente for pensar em teóricos como Ismael Xavier ou até em outras produções de pensamento, como Édouard Glissant. Atualmente estou lendo um livro que se chama “Dentro do Nevoeiro”, que fala sobre arquitetura, justamente sobre o que se dá a ver e o que não é mostrado. A própria conversa que a gente está tendo aqui muitas vezes pode ser armazenada em uma espécie de nuvem, enfim… Acho que essa ideia do nevoeiro está muito presente, o que se mostra e o que não se mostra, e essa última cena evoca muito isso, então queria que vocês falassem a respeito.
Melissa: Vou contornar um pouquinho, Adriano, e começar pela montagem do filme. Eu e o Gustavo montamos filmes juntos há 20 anos, antes de sermos uma dupla. Na montagem a gente tem uma liberdade incrível porque a gente não filma um roteiro muito amarrado. No caso desse filme foi muito especial a montagem porque a gente poderia cortar um pouco do início e do final [do plano] e mudar a ordem, né? Mas isso não é pouco e não é fácil também, porque cada vez tu tem que assistir ao filme todo. E por isso que eu acho bem interessante que você fale [do último plano]. De fato é uma esperança deixar a montanha no final, mas eu preciso falar em relação aos outros planos. Se a gente começasse com a montanha… nenhum dos planos é uma pista pra todo filme, né? Não é fácil nem começar, nem terminar… e nem o meio. Mas o meio eu sabia, o plano do meio era muito certo, mas o resto ficou rodando, rodando, rodando, e no final teve ainda uma última tentativa do Gustavo de fazer uma certa inversão, mas eu estava bem certa que a gente terminava ali.
Por isso que eu acho que o filme tem muitas emoções e tal, mas no final a gente pode não ter uma figura humana ali. Eu acho que isso é importante para entrar nessa materialidade que o Gustavo falou. Se tem gente, a gente tende a se identificar. Com a montanha menos, talvez. Tomara que cada vez mais a gente se identifique com as pedras e as montanhas e menos com as pessoas. Porque nem sempre vale a pena, né? (risos) O ser humano vai sair do centro. E aí sobre essa coisa atmosférica o Gustavo pode contar algo das filmagens. Como ele falou, cada plano foi rodado só uma vez, e só tinha um rolo…
Gustavo: Essa cena da montanha foi a única que eu fui pra filmar, a gente não rodou e voltou uma segunda vez. A gente eu digo porque estávamos eu e uma pessoa que eu conheço desde pequeno, e ele queria filmar a montanha, mas não sabia direito qual montanha. Sabia mais ou menos o ângulo, tinha uma cadeia de montanhas, mas não sabia qual. E aí a gente foi pela manhã e acho que a minha ideia era filmar em um barco… A gente foi remando em um barco, mas tremia muito, e fomos até uma ilha pequena. Quando chegamos a luz já estava muito alta, e eu fiquei meio assim: “cara, eu acho que não vai rolar hoje, acho que a gente tem que voltar algum outro dia pra filmar”. E aí voltamos. Chegamos nessa ilhazinha de noite mesmo, ficamos esperando com a câmera montada, para filmar no amanhecer. Não era muito a ideia pegar o amanhecer, mas como na primeira vez a luz estava alta…
E essa vontade de filmar a montanha estava lá desde o começo. E acho que, como a Melissa falou, a escolha de botar ela no final… os personagens eles não se comunicam, né? Eles estão ilhados. O que eles compartilham é realmente esse tempo que cada plano tem, que é mais ou menos similar, um pouco diferente, mas isso eles compartilham. E a montanha no final talvez seja uma vontade, um movimento, no sentido de uma narrativa, de que esse tempo também está ali, mas de uma outra forma, porque não é uma pessoa, não é um personagem, não é humano, então a gente consegue se relacionar de uma outra forma. E parece que enquanto espectador, se eu consigo fazer esse movimento, daí esse tempo que está em cada um naquele momento meio que transborda pra tudo dentro do filme.
Melissa: E sendo um pouco autorreferente – mas é porque quem faz um filme quase sempre deixa uma pista pro próximo, ou faz no mesmo filme, esses clichês -, a gente tem um filme chamado A Máquina do Tempo, com Juarez Nunes, o mesmo ator de Oráculo, que também passou em Tiradentes e termina com o Juarez olhando pra montanha, pra essa montanha. Então a gente sempre fala que queria filmar a montanha.
Juliana: E agora a montanha olhando pro Juarez (em Oráculo) é o contraplano…
Melissa: Aquela coisa, a gente começa a digredir… Alguém falou, não sei se é verdade, que os indígenas no Brasil em geral não subiam em montanhas, não subiam nos morros, e o Itacurubi tem uma coisa que ninguém subia naquele morro. Então também tem isso, o interdito: “Deixa lá, não vai lá em cima”.
Gustavo: Na verdade é o Cambirela… Mas não era pra ter sido o Cambirela. Em Florianópolis tem um fenômeno em vários lugares, mas depende da época do ano, que se a gente olha para as montanhas parece que elas são translúcidas, parece que elas não têm profundidade. Tem em vários lugares isso na verdade, mas sempre me chamou muita atenção lá… E eu desejo um pouco retratar isso: uma coisa que é quase como um desenho, um papel. E acabou virando outra coisa, virou no processo aquela coisa do amanhecer e tal, virou mais esse bloco e as mudanças que acontecem durante esse tempo, que é um barato descobrir, e isso a gente só viu na montagem, na câmera ali não vimos.
Juliana: Acho que vocês já estão falando um pouco sobre essa materialidade da película e as condições de produção, o quanto isso acabou compondo – não só interferindo, mas compondo mesmo – o filme, a narrativa e as imagens, né? E como isso abre o filme para um certo improviso, um improviso incrível, não descuidado. Porque eu acho que todo o filme é muito controlado, né? Para um lado bom, ele é muito cuidado e controlado, não é solto. Mas acho que tem um elemento de improviso interessante, e até destaco um deles pra dar como exemplo: aquele na cena da rocha, da entidade, quando a câmera está buscando o enquadramento junto com a gente. Eu gosto muito disso, quando a gente tá participando junto com a câmera, com aquela escolha, “um pouquinho mais pra cima, um pouquinho mais pra trás”. Acho que isso acontece bastante no Cinema Marginal também, não é à toa que o filme é dedicado à Helena Ignez, enfim. Eu queria que vocês falassem um pouco disso, dessas condições de produção, o quanto isso compõe junto com o filme.
Melissa: Eu pensei uma coisa que não sei se tem tanto a ver, mas não tive a chance de falar, e ninguém comentou isso e eu acho interessante, que são por exemplo as objetivas, né? Essa nossa câmera é a primeira câmera com um motor, que filma todo o rolo, mas ela é uma câmera de TV russa, que filmava a 25 quadros [por segundo]. Agora a gente modificou ela, e ela tem até um dimer [regulador de luminosidade]. E a gente adora, né, os limites. É ótimo que o nome desse primeiro filme experimental brasileiro se chame Limite [Mário Peixoto, 1931], porque é só o que nós temos: limites. Mas no bom sentido mesmo – pareceu irônico, mas é de verdade. Então o plano da ponte não levava tanto tempo para atravessar a ponte, a ponte não é tão grande. O plano é filmado então a quarenta e oito [quadros por segundo], né?
Gustavo: Isso mesmo.
Melissa: E ninguém comentou isso. Não sei se não aparece, mas é filmado a quarenta e oito quadros por segundo pra que a ação leve aquele tempo. E o som direto também foi estendido, ele vira quase música. Então a Ju falou sobre esse plano, que não apenas a gente tá buscando, mas ele tá… dando zoom, é uma lente zoom, que tem até uma certa deformação… dá para abrir, dá para enquadrar, então tem uma corrigidinha que fica assim… Eu acho que a gente gosta de aceitar essa humanidade da pessoa atrás da câmera. Mas era isso, eu queria colocar essa coisa material que às vezes parece meio nerd da câmera…
Gustavo: Me encaminharam uma mensagem de alguém se perguntando se esse plano da ponte tinha um looping digital, porque ela ficou um pouco… confusa, mas no bom sentido. Acho que vem do slow-motion, porque ele é sutil.
Melissa: E ele caminha, tem aquela calma, e tal. E ninguém comenta sobre esses truques… que não é truque, mas não tem tempo real. Eu falei pra alguém que “tempo real” é uma expressão que pode ser abolida. O que é “tempo real”? Não tem mais.
Adriano: Aproveitando essa deixa do tempo real, eu fico pensando muito nas diferenças entre o uso do plano-sequência no cinema digital e no cinema em película. No catálogo vocês deram uma entrevista que citava, por exemplo, que os planos-sequência que vocês fazem tem muito dessa coisa de fazer escolhas na própria cena, como a própria Ju citou, e vocês colocam essa ideia da hesitação também. Eu acho que em muitos planos-sequência ao longo da história do cinema, mas pensando sobretudo com o digital – que é essa tecnologia que possibilita uma filmagem maior, que não tem essa finitude muito bem definida que a película traz… Eu vejo muitos planos-sequência que buscam a ideia da precisão, e é uma precisão que eu vejo quase como anódina mesmo. Dou o exemplo de Roma, do Afonso Cuarón, que é um filme que eu não gosto, e tem esse plano-sequência de extrema precisão, de uma cena no mar, enfim. Comparando, eu acho que não há exatamente um choque entre os filmes porque são filmes completamente diferentes, mas são filmes em que as intencionalidades e as possibilidades de encarar o plano-sequência são muito diferentes – muda muito na proposta de vocês, sobretudo por trabalhar em película. Então queria que vocês comentassem isso.
Gustavo: Eu acho que plano-sequência tem mais essa orquestração. A primeira cena [de Oráculo] eu lembro que teve realmente quase uma coisa mais cronométrica, assim: “tem que levantar em tal momento, tem que ir pra essa direção em tal momento…”, porque a gente tinha que acabar a cena antes de o filme acabar. Mas tem menos essa coisa da coreografia, eram mais as “âncoras”, vamos dizer assim. Tinha uma no começo, aí mais ou menos uma no meio, e quando a gente estivesse em dois terços do filme a gente tinha que estar mais ou menos aqui, e no fim estar mais ou menos aqui… mas isso eu ligo com o que a Ju estava falando antes, deixa realmente muito fácil pro improviso, né?
Acho que uma coisa legal de falar é que quem tava na frente da câmera – e aí podemos até pensar na montanha, no céu e nas nuvens – criou muito na hora. Porque realmente a gente só tinha o: “ah, começa aqui, mais ou menos pelo meio tem que estar aqui e no final tem que estar mais ou menos aqui”. E aí tudo isso tem que ser preenchido. E o nosso quadro, o “frame”, né? Não sei se em português tem uma palavra pra dizer sobre esse limite mesmo. No sentido que o limite era o rolo, eram os dez minutos, esse era o tempo desse limite. E aí eu acho que quem estava na frente da câmera, o Juarez, a Alice, a Luana, a Aline, acabou criando muito.
Voltando um pouquinho só, pra fazer a ligação entre a tua pergunta e a da Ju, porque eu queria ter acrescentado que aconteceram coisas bem legais. Na cena da pedra, o fato de a Aline ter essa posição mais mística, com a capa e com a bandeira, a gente não vê o rosto dela, né? Ela se colocou, e a gente tava bem longe um do outro, mas eu acho super bonito assim. É só o cabelo e a bandeira, e foi uma coisa que ela fez, a posição quem fez foi ela, não tinha nem estrutura pra gente repassar, eram mais umas indicações e os atores criaram bastante em cima daquilo.
No quarto da Alice, aquelas luzes que ela escolheu, a gente estava em um espaço fechado, a câmera sem uma proteção de som, então o som alto é da câmera. Essa câmera é um pouco sensível, dependendo de como carrega o rolo, dependendo da própria textura do filme, da película, ela vai soar mais ou menos alta, e aquele dia ela soou bem alta, e acabou rolando quase que uma sincronia com as luzes – parece que o som da câmera é o som das luzes.
Então tem várias coisas que aconteceram, seja pelos atores, pelas atrizes ou pelo espaço, que foram achados ou coisas assim, um pouco mágicas, e que talvez precise de tempo pra essas coisas acontecerem. É um pouco o plano longo que vai permitir que isso aconteça. Eu acho que o plano longo é um convite ao inesperado. A gente pode dizer isso. E claro, podem acontecer as coisas de um jeito ou de outro, se tu faz assim, trabalhando com uma decupagem, pensando um pouco em comparação com a posição, a gente vai muito mais exato ao que a gente quer.
Melissa: Mas aí tem, como o Adriano falou, o fato de ser em película. Não é uma contradição, mas é complexo, porque ao mesmo tempo que tu abre esse tempo da duração pro ator, pra atriz relaxar, só tem um rolo e ela [a câmera] tá “tac tac tac”… e eu não sei, não tô contando o tempo, mas ela realmente não pode relaxar, porque a duração é contada. Mas foi muito legal no debate, eu achei muito bonito a Alice falar, porque foi a primeira vez que ela filmou, a menina que toca violão… Ela falou que o Gustavo tinha conseguido deixar ela… que ela tava muito nervosa, mas que ela sabia que era o que era e ela entendeu que não ia ter “deu errado”, não tinha como. Sempre tem como dar errado, né? Não se fala isso, mas…
Gustavo: Ela falou uma coisa legal, tipo: “Eu tinha que ficar contando antes”, e eu acho que o filme foi um pouco isso, contando o tempo passar e as coisas acontecendo.
A gente já vem fazendo uma pesquisa com revelação, e com certeza nesse filme o interesse é muito mais na película enquanto matéria portadora de tempo do que na textura. Vai acontecer inevitavelmente a textura, a cor… mas é que nessa mídia, nesse objeto, tem um tempo específico do rolo e tal.
Juliana: Vocês falaram sobre essa ideia da materialidade, do tempo da película, que é super interessante. Mas pensando na cor, o primeiro cinema, além de não ser silencioso, muitas vezes era colorido, e vocês trabalham com a cor de modo artesanal, contrastando com a padronização da colorização evidenciada sobretudo com digital. Então a gente queria que vocês comentassem um pouquinho sobre o uso da cor nesse filme.
Gustavo: O filme foi filmado todo em negativo colorido e com películas bem diferentes, de estoques bem diferentes, então isso já define bastante a cor. Basicamente, e isso é um dado de produção, mas tem a ver, a gente comprou apenas uma película “nova” pro filme – que não estava vencida -, e foi pra cena da Alice porque ela queria filmar dentro do quarto, com pouca luz. E é uma cena que por curiosidade ficou super granulada e tal, e as outras películas é que eram bem mais velhas… Então de novo, o que definiu um pouco a cor do filme foram essas películas de diferentes épocas, produzidas em lugares diferentes
A cena do meu pai cruzando a ponte, por exemplo, eu me lembro que a ideia era alcançar uma imagem bem, como é que eu vou dizer, erodida. Então peguei a película mais velha que tinha na geladeira, que a lata estava realmente enferrujada, e… saiu limpinho, sabe? (risos) Então tivemos que trabalhar essa erosão no som. Já as duas cenas do Juarez foram uma película que a gente conseguiu de um conhecido, amigo nosso, que não era tão antiga, mas era a mesma, e a correção de cor que a gente fez no digital foi mínima, ela já veio do laboratório bem legal assim, não precisou mudar muito. E também, claro, tentando ter uma unidade dos planos, não pular muito, mas respeitando mesmo essas diferentes naturezas de cada rolo de filme, que são realmente diferentes.
O de Barcelona foi meio que uma sorte, porque também foi uma película achada. A gente pegou e era o filme de tungstênio, que era pra filmar na luz artificial, e na época era o único rolo inteiro, então tinha que ser um rolo inteiro, a gente tava com o que tinha. E a gente usou e ficou super bonito, ficou meio azulado, meio esverdeado… aquela imagem tem uma qualidade que chama atenção. Aconteceu alguma coisa com a cor e eu acho que tem essa mistura em um filme tungstênio, mais envelhecido pelo contato com a luz do sol.
Então se eu for pensar como que a gente gosta de trabalhar a cor entra muito esse acaso de qual o material que a gente tem disponível pra rodar e como é que esse material vai imprimir. E acho que com o tempo, se a gente for pensar lá no Eternau, de 2006, a gente veio numa suavização, eu acho. A Melissa pode falar um pouco mais sobre isso, de gostar realmente de uma paleta que tem tons mais suaves assim.
Melissa: E a gente não vive mais essa época de: “ah, vamos filmar uma paleta leitosa, vamos usar tal filme”. Não é essa realidade, né? E mesmo se fosse, a gente não tem o conhecimento e uma formação como câmera para fazer este tipo de escolhas, então tudo acontece um tanto por acaso. Mas a questão da paleta do filme ter se mostrado como uma revelação assim, sem correção… e não é pra dizer assim, “no filter”, teve muita correção mesmo.
No cartaz eu senti muito isso. Quando fui pensar nele fiz uma descrição de um roteiro com as cores, só que não fui comprar tinta: peguei o que eu tinha de tinta para fazer – e aí os limites sempre trabalham com a gente, né? A partir do que tá ali – mas ele tem uma paleta bem definida, eu acho; foi natural.
Gustavo: Talvez tenha um minimalismo que tem a ver com o filme. Eu lembro de tu falar [para Melissa] já na montagem “ah, o filme não tem amarelo”, não como uma coisa negativa ou mesmo positiva, mas uma observação… O Muito Romântico, quando a gente acabou a montagem, a gente fez um gráfico de cores e viu: “tá, tá meio equilibrado, amarelo, azul, vermelho”. Criamos categorias para as cenas, a gente trabalha um pouco assim mesmo, meio criando um… como é que se chama… um código de cor, e eu me lembro de tu falar isso: “ah, esse filme não tem amarelo…” E eu falei, “mas na cena de Barcelona tem um pouco, olha lá”…
Melissa: Falando de outro plano… e eu sei que tá muito técnico agora, até meio demais talvez, mas o plano inicial é filmado em um printfilm, um filme de cópia, que é um filme que não tem fidelidade nenhuma, é tungstênio e asa 2, então só dá pra filmar no sol, e a gente fez uma dupla exposição na película. Então a gente fez muitos testes, mas é feito na película mesmo, o Gustavo filmou aquele rolo em Floripa – esse foi revelado a mão, o resto não – e a gente fez esses testes. Colocamos o filme de cópia dentro da câmera de truca, e ali tem um tanto de amarelo, né? No debate em Tiradentes o crítico que debateu com a gente, o Rafael Parrode, chamou o plano dos créditos de primeiro plano, e eu gostei muito disso.
Adriano: Queria aproveitar para entrar mais uma vez, e agora mais diretamente, na relação do filme com a performance desses corpos. E, sobretudo, com relação à materialidade da película, a esse metrônomo que vocês colocaram e também ao tempo. Primeiro gostaria que vocês falassem até que ponto vocês queriam levar os ensaios e até que ponto vocês queriam trazer esse acaso dos planos. E, enfim, como era importante para a performance desses atores, desses corpos, a ideia do tempo.
Melissa: Só pra ficar claro, nós falamos do acaso das cores e tal, em todos os planos, mas o primeiro plano, mais curto, da ponte, esse não é por acaso, porque é um filme de cópia, é um filme que se copia negativo nesse filme, e ele é tungstênio asa 2, então ele não tem preto. E a gente sabe disso, a gente já tinha usado ele, e a ideia de fazer a letra do filme amarela foi porque não tinha amarelo no filme. Então ali não foi o acaso, no plano de abertura a gente modulou algumas cores, mas o resto do filme foi bastante ao acaso. Só queria colocar isso, porque eu não sei se tinha ficado claro.
Gustavo: Mas eu achei bonito como você falou, eu nunca tinha pensado nisso. Lembro quase como se fosse colorido, assim, pós-colorido manualmente, legal… mas é químico, uma coloração química.
Sobre o trabalho com os atores e os ensaios… Não tinha uma estrutura pra montar, ficar com as pessoas o dia inteiro, então foi um encontro durante algumas horas do dia. Variou um pouco de cena pra cena, e, claro, com quem que a gente estava trabalhando. A cena com o Juarez, por exemplo – foram duas cenas, a cena inicial no rochedo e depois a cena na beira do mar -, ele já é alguém que a gente trabalha há bastante tempo, que tem um trabalho também teórico, fez o mestrado dele em cima do corpo em cena, da presença, do trabalho do ator enquanto performance, muito mais do que como interpretação. Então já era alguém que meio que o filme foi também na onda dele. A gente não precisava falar como que tinha que ser.
E a cena da praia, por exemplo, não teve ensaio, não tinha como ensaiar aquilo. Era tipo: “Ó, tem dez minutos, tu tem que começar no mar, o mar tem que te trazer pra beira da areia e tu tem que muito lentamente ir se levantando”. A gente acabou fazendo uma escolha por não ter este momento do levantar no corte final, por questões da montagem. Então essa cena na verdade é até mais curta (sem contar o plano inicial, que foi filmado naquele tempo de dois, três minutos). Mas é uma cena que foi muito no improviso mesmo. O Juarez deu o tempo da cena – o rolo deu o tempo do filme, mas ele deu o tempo da ação – e a câmera foi acompanhando o ritmo dele, dessas forças da natureza que também estão acompanhando, as ondas também modularam… Como a gente falou no começo: essas forças que também estão em cena e que também tão atuando.
A cena da pedra, essa sim, a gente ensaiou algumas vezes. Talvez tenha sido a cena que deu mais trabalho, porque tinha o Juarez e a Aline em cena, e tinha esse movimento que tinha que descer da pedra e entrar no mar. E aí quanto tempo vai levar pra descer da pedra? Foi uma cena mais tensa, pelo menos pra mim, estando atrás da câmera, de fazer tudo caber naquele tempo. Porque nessa cena ele realmente precisava entrar no mar, pra gente ela não teria sentido se ele não entrasse na água, precisava entrar. Então a gente ensaiou várias vezes, mas mais essa questão dessa coreografia, de ele se levantar… E uma coisa que a gente nunca falou durante a cena, mas que eu acho interessante – cada pessoa lê o filme de uma maneira diferente, e isso é super bonito –, é que pra mim ele não vê aquela outra presença. Tem um contato ali que é muito sutil entre os dois, um olhando na direção do outro, ela sente e ele desce, e então ela causa uma reação nele, ela faz ele conseguir descer da pedra. Mas, pela atuação dele, eu não consigo ver que ele percebe a presença dela, e isso é uma coisa deles, não foi uma coisa que a gente falou sobre durante os ensaios. O que a gente falou foi que em certo momento ele tinha que ir na direção dela, e depois de ir na direção dela, a partir desse momento ele poderia descer da pedra. Aí ele descia, contornava por certo lado, por uma questão de tempo, e aí entrava no mar. A coisa de tirar a camisa, tirar a corrente, veio tudo do Juarez, que é um gesto que eu acho super forte quando ele tira a camisa e tira uma medalhinha que a gente mal vê que ele tem. Então o ensaio foi assim, mais uma coisa de ajeitar realmente esses elementos do relógio, pra fazer caber dentro desse tempo.
Com a Alice foi um pouquinho diferente, talvez por ela ser uma adolescente. Foi a primeira vez que ela estava trabalhando na frente da câmera com filme, então teve mais um trabalho com a Alice. O Juarez eu conheço há muito tempo… a Aline também estudou teatro, eu não conhecia ela muito mas ela fazia parte do mesmo meio, compartilhava algumas amizades, enfim, é uma atriz. Já a Alice teve esse trabalho antes de se aproximar dela. Eu vi ela uma vez quando fui jantar na casa dos pais dela, daí fiquei realmente encantado, ela fez um show lá, cantando, e eu me lembro que na época eu pensei em filmar e eu lembrava muito do Gummo [filme de Harmony Korine], de uma textura do Gummo, de umas cenas meio em um porão…
Então tinha o Juarez, que era esse personagem mítico, preso; o personagem do meu pai, que é um personagem já em um momento da vida de transformação também; e a Alice pra mim vinha como o sol do filme, é a menina que vai se tornar uma artista. Na ficção, né? Se ela vai se tornar ou não é outra coisa. Mas tendo essa força da arte, da poesia, da juventude. E então eu queria trazer ela no filme, mas como se aproximar? Então teve essa coisa que o Pedro e a Luana [pais de Alice] me ajudaram muito, eles são professores de teatro… teve esse cuidado com ela também, de se aproximar e tal. Na hora de filmar a gente ensaiou uma vez, a luz estava caindo… eles tiveram um almoço em família e eu só pude chegar lá pelas duas da tarde. Já tinha comprado essa pilha porque sabia que ia ser uma situação de luz baixa, queria filmar dentro do quarto, não queria abrir a cortina porque se não a gente ia ter aquele retângulo estourando de luz, então tinha que ser com cortina fechada. E aí foi isso, no primeiro ensaio tinha luz, e ela encaixou tudo ali no tempo e rolou também. Mas o que eu me lembro foi de sair com o Pedro e com a Luana pra conhecer a Alice, para conversar, para haver esse trabalho de aproximação pra ela se sentir bem na hora de filmar.
Melissa: O único plano – e eu sempre tenho que fazer essa piadinha – que teve um trabalho mais complicado foi o da montanha (risos) A montanha falou: “Não, não tá a melhor luz, vai ter que voltar amanhã…”.