Mais uma vez a morte espreita o Velho Continente. É no mínimo comovente ver três intelectuais europeus da gema (Pierre Léon, Rita Azevedo Gomes e Jean Louis Schefer), que também assinam a direção do filme, abrindo este ensaio sobre as ideias de Schefer com as danças da morte medievais. Antes, a imagem do joie de vivre francês: Rita, Pierre e Jean Louis sentindo a brisa e contemplando gatos embaixo de uma árvore firme, saudável, frondosa. Mais adiante, o mesmo suspiro: Rita e Léon, sentados à janela, respiram a Bach defronte a paisagem. É com estas imagens que o filme intercala as teorias de Schefer sobre imagem, pintura, história, Europa, arte, vida. Ilustrando as passagens, trechos de filmes como A Regra do Jogo (1939, Jean Renoir), O Discreto Charme da Burguesia (Luis Buñuel, 1972), e esqueletos dançantes de toda ordem.
Já de saída, Schefer nos dá uma pista: até o século XV, os esqueletos aparecem nas gravuras medievais como títeres manipuláveis; a partir de então, eles que passam a manipular a humanidade. Os esqueletos conduzem a Europa. A morte está livre. A morte dos corpos, materializada na peste negra, ou a morte de um mundo que passa naquele momento por transformações profundas, entre as mais significativas: as Grandes Navegações, que inauguram o que virá a ser um pensamento global; o declínio do sistema feudal e o início da formação dos estados modernos; o desenvolvimento da prensa móvel.
O século XV é ponte entre o mundo medieval e o mundo moderno, ou seja, para todas as crenças e construções de significados que sustentam a nossa realidade atual. Este período de transição se abre na história como uma fenda por onde passam os mortos e os vivos, ou como disse Schefer citando Virgínia Woolf, como o sol que ao nascer separa o céu e a terra e cria, por um instante, uma zona indefinida por onde as figuras humanas, conduzidas pelos esqueletos dançantes, deslizam como atores do teatro Noh.
Não à toa este filme hoje. Parece sedutor arriscarmos um paralelo com a situação da Europa e a ordem mundial do século XXI. Em um primeiro momento, as transformações profundas que vive o Velho Continente, que perdeu definitivamente o status de centro do mundo para os EUA ao longo do século XX, convidam a pensarmos no espectro de morte que assombra a Europa atualmente. Mas fazer esta digressão apressada logo no início do filme pode nos levar a perder parte das melhores deambulações do filósofo-diretor. Citando uma passagem do longa, é como nos atermos na narrativa da superfície, do primeiro plano, e perdermos o volume do fundo, com todos os seus fantasmas e mistérios escondidos.
De Hieronymus Bosch a Jean-Honoré Fragonard, passando por pinturas rupestres, rituais religiosos, uma peça de Bach, Schefer engendra um pensamento vivo, vibrante, que se por um lado algumas vezes se perde em deambulações (e o filósofo as faz com toda elegância), por outro conserva o melhor do pensamento livre: as relações insondáveis, o humor, a paixão. Está aí o grande personagem do filme: o pensamento de Schefer. Não apenas as suas teorias, mas seu modo de pensar, a construção da sua fala, o gesto no momento da epifania, o olhar enviesado para encontrar a melhor palavra, o palavrão dito no momento exato. Estamos diante do registro de um artista em seu momento sublime de criação.
Rita Azevedo e Pierre Léon, de forma generosa, dividem conosco este testemunho. Mas não param por aí. Rita, que já havia nos presenteado com um diálogo entre Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa em A 15ª Pedra (2007), em Danças Macabras, Esqueletos e Outras Fantasias vai além. Aqui a diretora emoldura o gênio de Schefer com quadros que expressam toda a sua devoção pela pintura. Cada plano um assombro de beleza. As perspectivas infinitas, os planos sucessivos, transparências. A paisagem construída por Azevedo Gomes é o eco das análises de imagem de Schefer.
Como esqueletos dançantes que conduzem o artista na fronteira entre a vida e a morte, Rita e Pierre se divertem. Léon, ouvinte atento do mestre em grande parte do filme, não disfarça o prazer de estar naquele lugar, naquele tempo, respirando a vida junto daquelas pessoas. O joie de vivre está impresso em cada plano. Em seu ponto alto, os esqueletos-diretores dançam juntos em frente a um cenário que parece ser uma ruína, ou um sítio arqueológico, enfim, em frente à Europa. Não importa se este mundo inaugurado no século XV, com todas as suas maravilhas e tragédias, está prestes a ruir; vamos conduzi-lo até o final dançando.
*Filme visto na 13ª CineBH