O trabalho de conclusão de curso na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) rendeu a Samuel Lobo o prêmio de melhor filme na Mostra Foco, seção competitiva de curtas-metragens da Mostra de Cinema de Tiradentes. Noite Escura de São Nunca seguirá sua trajetória por festivais importantes no Cine Ceará, que acontece de 16 a 22 de junho.
Centrado em uma vila no centro do Rio de Janeiro, o filme retrata o cotidiano de uma senhora marcada por um trauma ligado à Ditadura Militar e de duas jovens ativistas que se engajam em manifestações recentes. Temas como os crimes passados e atuais cometidos por agentes do Estado, a violência contra os povos indígenas e a disputa por espaços nas metrópoles permeiam a obra.
Em entrevista por e-mail ao Cine Festivais, o diretor Samuel Lobo falou sobre essas e outras discussões levantadas pelo curta Noite Escura de São Nunca.
Cine Festivais: Anita Leandro, sua orientadora no projeto, é diretora de Retratos de Identificação, um dos filmes recentes mais importantes sobre a Ditadura Militar. Como este filme e a visão de Anita sobre o tema influenciaram Noite Escura de São Nunca? Qual foi a motivação inicial do filme?
Samuel Lobo: Noite Escura de São Nunca foi meu trabalho de conclusão de curso na Escola de Comunicação da UFRJ, e foi orientado pela Anita. Nossas conversas sobre a construção narrativa e os processos de montagem já a partir da elaboração do roteiro me ajudaram muito ao longo da criação. O convite a ela foi feito tanto por seus ensinos preciosos sobre montagem como também por seu envolvimento em narrativas sobre ditaduras militares, e sendo Retratos de Identificação um dos grandes filmes do nosso tempo, foi uma honra tê-la ao nosso lado.
A motivação inicial para o filme veio de uma notícia de jornal sobre Inês Etienne Romeu, militante que foi presa, torturada e violentada de diversas formas durante a ditadura civil-militar, e foi também a única a sair viva dos porões da Casa da Morte, em Petrópolis, um centro clandestino de torturas criado pelo Estado em 1970. Era 2013, protestos nas ruas, os levantes de junho, polícia, violência, repressão, cabeça fervendo, muita coisa acontecendo… Noite Escura de São Nunca surgiu daí.
CF: Gostaria que você comentasse a escolha por realizar todas as cenas em uma vila. As questões políticas e históricas mal resolvidas vão adentrando aquele universo pelas beiradas, e não frontalmente, seja por simbolismos (o diabo, as paredes desgastadas, o gato) ou pela citação de acontecimentos que referenciam o “real histórico” (a morte da irmã na Ditadura, as prisões arbitrárias em protestos recentes)…
SL: A ideia de filmar na vila surgiu do desejo de falar sobre a cidade a partir das nossas casas, já que eu e grande parte da equipe moramos naquele espaço, na tentativa de captar um certo mal-estar que paira sobre a cidade e inseri-lo nas frestas do cotidiano de uma vila no centro do Rio de Janeiro.
Cada casa é um mundo, e comporta a diversidade de suas questões, cores, valores, gostos e traumas. Como a motivação inicial era filmar com meus amigos, foi um movimento natural que o roteiro fosse construído a partir de nossas experiências pessoais, das músicas que ouvimos, de nossas visões de mundo a partir do lugar em que estamos inseridos. A vila é um microcosmo da cidade, ou seja, é atravessada a todo instante por suas contradições, seus mistérios e pela própria história pregressa dos que ali habitam.
CF: O tema da Mostra de Tiradentes este ano foi “Espaços em Conflito”. O que significou para você ter exibido seu filme no CineSesc, a poucos metros da Avenida Paulista, palco dos protestos pró e contra impeachment da presidente Dilma?
SL: Nosso filme é uma afirmação de princípios e conversa com muitos temas que estão sendo discutidos hoje em nossa sociedade. A violência policial, a impunidade dos crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura civil-militar, a resistência pelo afeto diante das adversidades do mundo, a violência contra os povos indígenas, a disputa por espaços, o protagonismo feminino… O cinema pra mim também é um campo de batalha, como diria o Samuel Fuller, e espero que o filme seja visto e suscite questões, levante discussões, porque “en la lucha de clases todas las armas son buenas: piedras, noches, poemas”, já disse o poeta.
CF: Neste ano foi muito destacada pelos realizadores a maneira como os filmes da Mostra Aurora dialogaram entre si. Você enxerga a mesma organicidade nos trabalhos exibidos na Mostra Foco este ano? Como vê o seu filme nesse contexto?
SL: A meu ver a organicidade se dá na aceitação das diferenças de cada estilo. Em Tiradentes há uma disposição muito potente em articular filmes narrativos, ensaios, documentários e experiências audiovisuais por meio do dissensso, de visões e formas diversas de se encarar o mundo por meio do cinema. Foi um prazer exibir o filme no festival, a sessão foi animal.
CF: Como você relaciona o seu filme com o longa vencedor da Mostra Aurora, Jovens Infelizes ou Um Homem que Grita Não É Um Urso que Dança? Acredita que a semelhança dos dois na abordagem temática possa ter influenciado a premiação de seu filme?
SL: Não pude ver o longa, mas penso que o júri deve ter tido trabalho para eleger os premiados, visto que a seleção de 2016, a meu ver, foi uma das mais instigantes dos últimos anos, sobretudo no campo dos longas. O filme que mais me impressionou entre os que vi foi Filme de Aborto, do Lincoln Péricles, uma experiência cortante, incômoda, com um afrontamento à linguagem que me remeteu aos momentos mais fortes de O Anjo Nasceu, de Julio Bressane, e também O Diabo, Provavelmente, de Robert Bresson.
CF: O seu filme tem uma inserção pequena de filmagens em uma tribo indígena. A programação da Mostra de Tiradentes contou com pelo menos três filmes focados nessa temática (Serras da Desordem, Índios Zoró e Taego Ãwa). Em um filme que fala sobre traumas históricos não resolvidos, a intenção desta cena era corroborar essa ideia?
SL: Com certeza. Além deste trecho em super-8 que registra o contato entre brancos e índios no Mato Grosso na década de 1970, usamos também noutra sequência um trecho da canção “Índia”, como que para dimensionar e estabelecer um paralelo entre as violências cometidas pelo Estado brasileiro ao longo de sua história. A questão indígena hoje é urgente no Brasil e precisa ser encarada com seriedade, algo que infelizmente não vem acontecendo. Enquanto o Estado não se compromete com políticas de proteção, respeito e fortalecimento das culturas indígenas, o cinema surge para problematizar este impasse.
CF: Seja pelos selecionados para a Mostra de Tiradentes neste ano ou pela abertura feita pelo regulamento do Festival de Brasília do ano passado a médias-metragens, é possível notar em um período recente uma tendência à existência de curtas com uma maior duração. Texto escrito pelos curadores Cleber Eduardo e Francis Vogner dos Reis no catálogo da Mostra de Tiradentes diz que “entre os selecionados para a Foco e para outros segmentos de Tiradentes, há casos de adequação à duração e casos de excessos (mesmo em filmes mais econômicos)”. Qual é a sua percepção geral sobre essa tendência e de que modo a questão da duração foi pensada, principalmente nos processos de roteirização e montagem do seu filme?
SL: A meu ver, cada filme tem seu tempo. Nosso filme chegou a ter uma versão com 10 minutos a mais, que incluía outra personagem com tempo considerável de cena, mas depois de muitas conversas resolvemos sintetizar a narrativa para concentrar seus momentos de força. As presenças da Anita e do Fred Benevides, que colaborou na montagem, foram fundamentais para o filme encontrar sua duração. Tirar dez minutos de um curta é bastante coisa, um terço do filme caiu fora.
No geral, penso que a montagem no cinema brasileiro contemporâneo é algo a ser discutido com mais ênfase; vejo muitos jovens diretores com boas ideias de cinema, com noção de direção, de construção narrativa, mas que pecam pela complacência com as próprias imagens.
O desafio no caso do Noite Escura de São Nunca foi encontrar um ritmo que se adequasse à narrativa proposta, valorizando a força dos cortes e o encadeamento das sequências – um corte acontece quando você sente, é um estímulo quase físico, e como nosso filme é fragmentado foi preciso ressaltar a aspereza de cada interrupção, tendo o ritmo como elemento fundamental do processo de montagem. Não me importo em fazer filme ruim, acontece; o problema é fazer filme chato, aí não rola.