Caminho em direção ao Cine Vila Rica atento à geografia de uma cidade marcada pelo assombro colonial, mesmo que nas ruas, sobretudo as mais turísticas, a ideia de um passado superado se traje bem em seus próprios disfarces econômicos e institucionais. O cinema a céu aberto tem como ponto de referência um grande pelourinho. Os restaurantes abaixo do chão são antigas senzalas. A cidade se movimenta, tem suas quebradas onde talvez o trauma tenha constituído outras versões de cotidiano. Mas ao mesmo tempo é também uma cidade colonial gourmet. Se ler isso num texto meu cansa, imaginem escrever esse texto do começo ao fim.
Chego ao Cine Vila Rica e somos apresentados a uma sessão-desafio. Meu desafio diante das imagens começou bem antes. Ele se implica nos filmes que vejo. Minha formação de olhar é, por circunstância e necessidade, a de confronto ao que é autoridade, mesmo quando pensa não ser.
Alguns curtas da sessão passam e não consigo registrar nada que me evoque algum texto ou crítica de fato. Até que chegamos ao último da sessão, o média-metragem Vera Cruz, de Rosangela Rennó. O filme, em suma, desenvolve-se numa relação entre a ausência de imagem (vemos apenas um filme de 35mm que emite uma imagem branca e granulada), o som (vento e maré quebrando na praia) e as legendas de conversas situadas nos primeiros momentos da chegada das naus portuguesas ao que hoje chamamos Brasil. A premissa é promissora, mas parte do que me parece um equívoco de compreensão: imagens sobre os processos de colonização que retratem o lado colonizado nunca existiram de fato. A transformação do apagamento metafórico (existem imagens, mas não representam a verdade) num apagamento literal (não existe imagem alguma) na verdade tende muito mais a apaziguar as tensões, porque não localiza nada. O dispositivo é interessante, mas se organiza antes muito mais como um recuo do que como um movimento formal em constante progressão.
A sessão acaba e saio um tanto angustiado por não ter muito com quem falar sobre o que vi. Qual o amadurecimento crítico possível em cenários de consenso? Que formação crítica é essa que se esquiva da autocrítica? O que estou fazendo aqui? Porque tudo que menos quero é ser Narciso e fazer dos filmes espelhos d’água.
Sigo pensando sobre o filme. A próxima sessão é na praça central. A mesma do grande pelourinho. A mesma na qual o atual Museu da Inconfidência, antiga Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica, exerce imponência. O assombro colonial me ronda, o estigma do crítico negro me cerca, o não lugar se instaura. Até que Travessia, curta de Safira Moreira, inicia na sessão situada em meio à praça.
Em quatro minutos o filme recria toda uma iconografia. Brasileira porque negra, embora esqueçam quase sempre. Diante, literalmente, dos símbolos maiores das violências coloniais, a narração da mulher no filme fala sobre as mulheres pretas nas cozinhas dos brancos, sobre os brancos que dominam tudo. O silêncio dominante no filme é quebrado, além da voz, também por um coro de capoeira. Mas que não vem do filme. Está na praça, mais ao fundo. E o canto ecoa dentro do próprio filme. E o filme ecoa dentro da própria praça. Por um momento, o assombro se transforma em afronta. Durante quatro minutos, Ouro Preto revê seus traumas, seus nomes gourmet, suas babás e camareiras sem nome que seguem voltando pra casa nos ônibus pra cima dos morros.
Volto ao hotel pra pegar uma blusa de frio. O nome do hotel é Casa Grande. Sinto saudade de amigos e amigas negras que não estão aqui. Que nunca estiveram aqui. Nessa tarefa crítica que cada vez mais tem feito parte da minha vida, falar sobre os filmes é, quase sempre, a parte mais fácil.