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Criando entre sons e sonhos: uma conversa com Simone Cortezão

04/12/19 às 13:03 Atualizado em 08/06/20 as 16:05
Criando entre sons e sonhos: uma conversa com Simone Cortezão

Conheci Simone Cortezão em 2016, durante a Mostra do Filme Livre. Na ocasião, seu curta-metragem Subsolos havia sido premiado, e tive o prazer de mediar o diálogo da diretora com os espectadores do Centro Cultural Banco do Brasil. Entre outras coisas, ela falou sobre o processo de realização do longa-metragem Navios de Terra (2017), segunda parte de uma trilogia começada com Subsolos. Anos depois, ao escrever sobre Navios…, veio a necessidade de reencontrá-la para tratar das questões e inquietações que povoaram a sombra do ensaio que naquela altura rabiscava.

Simone desenvolve trabalhos diversos no campo das artes e do cinema, tendo a questão urbanística como preocupação recorrente. Sua pesquisa começa por volta de 2007, quando realizou Até que chegue o fresco do dia, lançado no ano seguinte. Vinda da região metropolitana do Vale do Aço, em Minas Gerais, a realizadora teve a infância e juventude marcadas por violentas mudanças nas paisagens que a circundavam, devido aos impactos provocados pela indústria siderúrgica.

A conversa com Simone versou, entre outras coisas, sobre a transposição das montanhas mineiras para outros países, o papel do cinema na fabulação sobre paisagens devastadas – sobretudo o lugar do som nessa tessitura – e sua parte na conexão com as memórias. Tratou, ainda, acerca da potência profética e transformadora dos sonhos, e dos planos da realizadora para o último filme de sua trilogia.

Diego Franco: A relação com as alterações das paisagens mineiras pelos processos extrativistas norteia sua pesquisa acadêmica e parece funcionar como o fio que cadencia tanto a narrativa quanto a montagem dos planos dos seus filmes. Foi o enfrentamento com tais paisagens que levou você a escolher contar suas histórias a partir de planos com temporalidades estendidas e, no caso de Navios de terra, optar pela exibição em formato scope?

Simone Cortezão: Em um primeiro momento me interessava pensar uma espécie de coma, essa paralisação que ocorre quando você está vivo, mas segue o fluxo. Decidi começar essa conversa no campo da imagem, pensando em como seria possível fazer pintura em movimento. Tive muito trabalho para capturar a imensidão da paisagem, o que era uma questão para mim. Ela não cabia no quadro do filme. Talvez a escolha pelo scope responda a essa inquietação, sendo uma tentativa de abarcar aquelas grandezas. Aos poucos surgiu também a questão do som, porque percebi que era ele o que me conectava aos lugares, mais do que a paisagem em si. Existem alguns sons muito específicos desses lugares: as escavadeiras, os estalos que são espaçados… Sons longos, às vezes agudos, às vezes repetitivos.

Em Navios… surgiu a importância do navio em si, esse personagem não humano que é a máquina. Registrei a última viagem daquele navio, ele estava todo velho, rangendo muito mais do que o normal. Retomando a história do coma, o navio era para mim esse lugar: um espaço de produção intensa, aqui e em vários espaços de mineração, tão intenso que provoca uma espécie de esgarçamento absurdo. Ele é dilapidado o tempo todo, passa por um arrombamento violento que cria pausas na temperatura, no som, na repetição da máquina, provocando uma espécie de partícula que está o tempo todo ali, que acompanha o lugar ou surge quando ele está revirado. Me interesso pela curva desse arrombamento, que é o que chamo de coma, esse lugar não apaziguado.

Na minha tese de doutorado busquei definir essas coisas, chamei tais lugares de zonas de ressaca. Penso que a economia não é abstrata, e sim extremamente material; ela é uma ficção que desemboca em uma produção material, e essa produção, em algum momento, cria um refluxo, um retorno. Alguma coisa vai retornar! O artista americano Robert Smithson fala sobre as zonas de remanso, backwaters, onde, apesar do movimento, a água para, estabiliza. Penso essas áreas de mineração, de siderurgia, de rompimento de barragem e de óleo como zonas de ressaca, onde o refluxo dos processos industriais vai ser vomitado, de alguma forma.

Acredito que Navios de terra tenha sido o primeiro filme a levar imagens da tragédia de Mariana para o cinema. Como foi o processo de incorporação daqueles planos na estrutura do filme, visto que o desastre aconteceu quando Navios estava em processo de finalização?

De alguma forma, eu imaginava que aquilo poderia acontecer. Inclusive no filme anterior, Subsolos, pela boca da personagem anuncio que a barragem vai cair sobre sua cabeça. Ela fica nessa paranoia! Por fazer doutorado com dados da mineração, eu sabia que tinha várias barragens para romper. Inclusive já romperam outras, mas nunca afetando uma área e um rio tão importante.

Não consigo me lembrar de ter lido notícias sobre outros rompimentos.

Geralmente acontecem dentro da mina, então morrem duas, três pessoas. Teve um na Mineradora Herculano, e antes disso em Muriaé. Aconteceram vários e existiam diversos estudos de riscos de rompimento, mas não nessa proporção. Eram como acidentes no quintal da indústria, então consegue-se que uma notícia se sobreponha à outra.

Apesar de a barragem ter estourado, eu não queria lidar com o desastre porque não me interesso pelo desastre em si, mas pelo seu prenúncio, o momento anterior ou o depois de tudo. Me interesso pelo momento no qual ninguém mais olha para a terra revirada. É esse o momento do coma, inclusive do coma da própria atenção para a situação. No entanto, resolvi fazer um prólogo que fala sobre o sonho de Nabucodonosor, um imperador do Antigo Testamento. Misturo o sonho dele com o meu, e com o sonho de vários saberes asiáticos. Algumas coisas cabem no texto e outras na imagem, e me interessa muito essa promiscuidade das coisas. Viajei para lá e deixei as paisagens falarem por si mesmas, tanto que, para o prólogo, não escuto as pessoas locais. Passo rapidamente e me fixo no encontro do Rio Doce com o mar; é de lá que vou sair.

É um plano devastadoramente belo em seus traços traumáticos.

O trauma para mim estava naquele encontro entre o rio e o mar, mais do que o lugar do acidente em si. Estava lá a mesma sensação que senti em 2007, durante a realização do meu primeiro filme, mas estava em uma fusão que ainda não encontrei definição, que habita o interstício entre o coma, o trauma e o lugar preciso de uma grande ressaca. Me interessava também pensar o silêncio desse lugar. Lá estava o ponto do trauma mais intenso, indo ao encontro do ritmo do próprio filme. Comecei pensando os interiores da casa, em Subsolos, e em Navios… parto com a montanha, vou embora com ela para a China, então precisava encontrar o mar, assim como a lama o estava encontrando.

O pesquisador José Miguel Wisnik retoma poesias e crônicas do Carlos Drummond de Andrade para ressaltar as denúncias que ele fazia sobre os malefícios da implementação da Vale na região de Itabira, onde cresceu. Drummond viu um monte que marcou a paisagem da sua infância ser completamente dinamitado, o Pico do Cauê, e a fazenda onde cresceu está submersa por rejeitos da mineração.

Foi uma das locações de Subsolos, chama-se Lagoa do Pontal.

Em uma destas crônicas, Drummond acusa a mineração de ser uma “indústria ladra, porque ela tira e não põe, abre cavernas e não deixa raízes, devasta e emigra para outro ponto”. Vejo nesse trecho uma tomada de posição que você, anos depois, retoma ao debruçar-se sobre a devastação das paisagens do território mineiro. Algo que marca tristemente nosso passado colonial e nos mancha com a escura herança da mineração, do corpo negro estilhaçado pelo chicote nas minas. Tendo crescido na região do Vale do Aço, como você enxerga esses espaços hoje?

Aqui se vê uma grande zona de ressaca, um caldeirão de ruínas da intensa produção industrial local. Ela é maquiada porque aos poucos vai sendo repaginada de jeito brilhante, com outdoors e logotipos, mas um monte de resto fica no meio do caminho, então você tem uma cidade toda esfacelada por conta desses inúmeros momentos da própria indústria.

Mais especificamente sobre a mineração, o que entendo como muito impressionante – e acho que Drummond fala isso – é que não cabe na nossa existência ver uma montanha inteira indo embora. A gente vai vendo pedaços. Ao frequentar as mineradoras, ouvia falarem coisas do tipo “aqui a gente tem mais 60 anos de exploração”. Capturar essa paisagem, produzir a imagem desse arrombamento, é difícil. Apesar de os jornais produzirem isso o tempo todo, eu acho complexo, porque ela tem uma escala temporal difícil de alcançar. A gente alcança ela em partes. Estou fazendo a trilogia porque o que quero entender não cabe em um filme, tem uma complexidade intensa.

A maneira como são vistas e retratadas pelo cinema faz com que as imagens ocupem papel importante na construção da identidade paisagística de determinada região. Por vezes existe a impossibilidade de acessar certos lugares, os quais, através do cinema, ganham visibilidade fora de um registro puramente jornalístico. Nesse sentido, quais são os contornos que sua pesquisa tem adquirido atualmente?

Nos últimos anos o que tem me interessado é o som, mas não de modo complementar, ou o som que acontece em função da imagem. Penso o som como tendo um lugar próprio, como uma possibilidade de anunciar coisas que não compõem a própria imagem. Acho que esse interesse fala sobre a impossibilidade de a imagem captar ou perceber esses lugares, esse território. Quando o navio range, ele está dizendo de uma matéria que está desgastada. É um espaço de fricção entre dois metais velhos. Tem ali o espaço do próprio tempo entre duas matérias que vão friccionando, e uma imagem não dá essa condição do tempo. Então acho que o som passa a ser algo fundamental a ser pensado no campo da paisagem, do próprio espaço, porque ele diz sobre o tempo.

Com a imagem temos a possibilidade de regência, de reger o tempo da imagem, mas não o tempo do próprio tempo, o tempo das coisas e da matéria. O som marca esse espaço do tempo em si, dando abertura para muitas coisas, tanto no campo poético, de uma percepção narrativa, quanto em um lugar mais improvável, que é o campo técnico e econômico onde se pensa a possibilidade de, a partir do som, descobrir que há recursos debaixo do mar e da terra.

O som toma importância como esse contraplano, como uma certa profundidade que a imagem propriamente não tem. Tem um momento em Navios… que me interessa muito, o augúrio dos pássaros. Sinto que ele anuncia aquilo que não é visto ou percebido por nós. Esses pássaros muitas vezes não aparecem, a gente os vê ocasionalmente, mas nos relacionamos mais com a memória do canto ou do grito desses pássaros. No caso do filme, me interessa muito o augúrio, esse canto rasante, essa anunciação.

Quem tem feito o som dos seus filmes e como vocês constroem essa tessitura entre a criação das imagens das paisagens e elaboração da paisagem sonora?

Quem tem feito o som é o Guile Martins, que fez alguns trabalhos com o Adirley Queirós. Eu o adoro e o vejo como um parceiro fundamental. Na captação de som não tem uma pessoa específica, porque os lugares têm uma blindagem que inviabiliza, por vezes, criar um calendário de gravação. Eu faço uma biblioteca de sons que são captados durante a gravação dos planos, mas também outra com sons que são construídos depois, alguns da minha própria biblioteca e outros que ainda não existem. Outros o Guile vai procurar, eu digo o que me interessa, e vamos construindo juntos esse desenho. A minha vó tinha uma relação curiosa com os pássaros. Ela dizia que determinados gritos, esses cantos rasteiros, rápidos e precisos, eram um mau augúrio. Eu tinha na memória esse canto, o Guile foi e testou possibilidades até acharmos essa memória do som.

Assista ao trailer de Navios de Terra.

Navios foi exibido, entre outros lugares, no festival Visions du Réel, na Suíça. Ele habita o interstício entre o documentário e a ficção, o real e a fantasia, as duas sombras de um mesmo olhar. De que modo você enxerga e brinca com essas potências nas suas experiências cinematográficas?

Quando estive nesse festival, um dos curadores disse que, em anos anteriores, Navios… não teria entrado, porque, para ele, o filme era muito ficcional. Acho que ainda existe a expectativa de um documentário atravessado por uma pseudo realidade, uma crença no que está na nossa frente.

Vindo da curadoria, esse comentário representa um significativo deslocamento na percepção sobre o que pode ser um documentário…

Durante a pré-produção, eu ligava para as mineradoras ou para os portos. Era uma negociação complicada para conseguir entrar nos espaços, e eles perguntavam o que eu estava fazendo. Dizia que era um filme de ficção, e quando falava que tinha um ator, um personagem, isso ajudava a abrir as portas. Percebi que a ficção era vista como algo inofensivo, diferentemente do documentário, que tem uma relação estreita com a denúncia, com o que está em frente à câmera, como um documento daquele momento. O ator mediava para mim essa entrada e, ao mesmo tempo, era um espelho daquele lugar.

Tento ir além da imagem que está ali, do acontecimento, e colocar as coisas em um campo diverso. Olhar para o passado, para uma memória, para aquilo que aparece em sonho ou em falas de outros momentos. O cruzamento dessas muitas coisas não é uma ficção, no sentido de ser fora de um território vivido. Tem uma fala do (escritor Maurice) Blanchot que diz ser a realidade extremamente complexa e que a pobreza da ficção tem a capacidade de fazer aparecer algumas coisas que podem não ser vistas em meio à complexidade do real. Ele diz que a precariedade da ficção abre possibilidades.

Penso que a ficção no sentido representado pelo ator, sendo o corpo do ator um campo de negociação que tive naquele momento, foi extremamente importante e potente, visto o lugar onde me infiltrei. Minha intenção com o ator era de outra natureza, era pensar como eu poderia, através de alguém, acessar várias camadas de memória, de um passado, de lembranças, e colocar na boca dele uma série de atravessamentos. Enquanto eu produzia, percebia que, por ter um ator, as portas se abriam. Se eu chegasse sozinha com uma câmera, a possibilidade de não entrar nesses lugares era muito maior. Conto essa história para pensarmos a ficção para além da construção narrativa, mas enquanto abertura de um modo de fazer.

Você sonha muito? Costuma lembrar dos seus sonhos? No prólogo do seu filme você retoma o sonho premonitório do rei Nabucodonossor, sonho este que versa sobre o surgimento e declínio dos reinos da terra. Se pensarmos que existe uma substância realística e premonitória nessa história, podemos supor que os desastres ambientais protagonizados pela Vale do Rio Doce marcariam o declínio de desses reinados. Existe uma relação direta entre os seus sonhos e os seus filmes?

Eu sonho demais, e acho que ontem tive o pior sonho de toda a minha vida. Foi uma noite dos infernos! E eu lembro de todos os sonhos. Nos sonhos entram aquilo que é vivido, o que a gente vê, inclusive aquilo que a gente vê, mas não percebe durante o dia; então tem essas imagens que vão restando na memória, que vão se acumulando e voltam. São as aparições da noite. Tem esse sonho que eu entendo como resto, aquilo que não foi percebido do que aconteceu durante o dia, e tem coisas que a gente entende apenas depois que sonha. Freud comenta que experimentamos algumas coisas nos sonhos antes que elas aconteçam, para a gente resistir à realidade ou a esse acontecimento na vida desperta, como se algumas coisas acontecessem duas vezes.

Tento conviver com as imagens oníricas no campo de produção do meu trabalho, seja na escrita ou na produção dos filmes, e as chamo de imagens porque muitas vezes elas são lembranças que surgem como uma imagem. Acho que elas têm uma carga de pensamento ou daquilo que não conseguimos alcançar pela via do visto, do que está ali sendo filmado ou dado na realidade, como uma possibilidade de fazer ou produzir uma terceira imagem, um terceiro campo narrativo.

Os sonhos me perseguem, mas também ando perseguindo os sonhos. Enquanto sonho, sei que estou sonhando. Vou viver completamente aquele sonho enquanto ele está acontecendo, mas não me preparo, não atuo nos sonhos. De fato, convivo com eles. Por exemplo, no sonho da noite anterior eu sentia que estava presa em um campo que era do sonho, do adormecido, mas sofri como sofreria se não soubesse. Fico naquele sonho e, quando acordo, continuo nesse campo que Walter Benjamin chama de sortilégio do sonho. Uma passagem, uma zona cinzenta entre o acordado e o adormecido. Nesse momento, entre o acordado e o adormecido, fico na espera do despertar, mas um despertar no qual penso naquilo que aconteceu. Então procuro conexões entre o que não percebi enquanto estava acordada e o que apareceu enquanto estava dormindo, fico nessa procura. Isso chega nos filmes como uma experimentação, tentando encontrar um espaço da própria narrativa para produzir ou conseguir chegar a esse campo do adormecido, do descontrole, do deixar acontecer. Eu deixo o sonho atravessar absolutamente tudo.

Enquanto gravava esses dois filmes, as imagens da mineração se acumularam e eu sabia que elas iam retornar em algum momento nos sonhos. Elas sempre retornavam, mas em lugares que já esperava e entendia dentro da minha própria experiência. Em uma noite, essas imagens chegaram na casa da minha infância, na casa dos meus avós, que está em ruínas e é um lugar onde nunca associei uma coisa à outra, porque lá não é uma área tomada pela siderurgia ou nenhum processo de exploração extrativista. Esse sonho começou como um sonho cego, não tinha imagens, eu só ouvia, estava no escuro. Aos poucos aquela casa foi se desfazendo em meio a uma terra vermelha e essas imagens me perturbaram durante um tempo, então resolvi voltar nesse lugar, na casa dos meus avós. Quando cheguei nessa região, vi que parte dos rejeitos que tinham sido retirados da barragem de Mariana foram deixados lá. Portanto, começo a pensar até que ponto os sonhos têm um potencial de vidência.

Gosto da definição do (filósofo Gilles) Deleuze que associa a vidência não a uma coisa religiosa ou espiritual, mas à captura do intolerável no presente, o que tem a ver com isso, com essas imagens que estão ali mas a gente não percebe porque tem uma violência ou alguma coisa que está dada e nos impede de enxergar. É quase uma crença de que é possível, no adormecer, a gente despertar para aquilo que sobra durante o dia, para aquilo que resta e está ali.

Não é bem um acaso, mas também não é causa e efeito. É quase como uma espécie de saber natural do próprio corpo. Um saber que não é consciente, mas reluz a partir de vários sentidos, não apenas da consciência linear e concatenada. Lidar com isso é extremamente complexo, e eu pego esse campo de pensamento do adormecido e levo pros filmes. Tenho tentado olhar não apenas para os meus sonhos, como para outros sonhos. É quase como um diálogo entre adormecidos.

De certa maneira, o sonho abre caminhos que nos ajudam a projetar outros modos de vida, criando possibilidades para que novas configurações sociais e afetivas se mostrem como possíveis. Fica a sensação de que estamos esmagados por uma realidade que, para se manter, sufoca essa potência criativa e construtiva. Nesse contexto, o retorno ao sonho se mostra fundamental, e digo retorno porque os sonhos sempre interessaram aos místicos, aos xamãs, então havia uma relação mais porosa entre o mundo dos sonhos e o mundo desperto, o mundo da ação. Como você tem sonhado a produção dessa última parte da trilogia?

Participei de uma residência, patrocinada pela Bolsa Pampulha, para me dar um tempo para ele. Comecei fazendo uma espécie de vídeo-poema instalativo, e o que está me interessando agora é dar cada vez mais lugar para o som, tendo esse personagem principal que é o captador de som. Meu interesse central é uma jornada em busca do que a terra tem a dizer tanto para nós enquanto especuladores, no campo da ficção, quanto para os cientistas, para aquilo que tem sido produzido, e também para outros saberes.

Conheci um matemático que revelou ter durante alguns anos de sua vida gravado as vibrações do solo com um geofone. A gravação gerava um gráfico e, a partir dele, se descobria se havia petróleo debaixo da terra. Até para a grande indústria o som é uma questão, uma possibilidade de pesquisa. Há vários decibéis inaudíveis, mas com sua densidade é possível descobrir o que existe debaixo do solo. É uma tentativa de chegar ainda mais longe com essa escuta, com esse som.

Me interessa uma jornada em busca de vários buracos, não só no Brasil como em outros lugares. Uma pesquisa que comecei junto a isso é a investigação da relação muito direta entre a geologia e a astronomia, pensando até que ponto esse arrombamento provocado pelo extrativismo voraz causa interferência. Me interessa nesse último filme me afastar ainda mais, tentar me conectar com implicações que vão para além de relações diretas com a mineração, para além do campo territorial, e entrem em um campo de força do próprio movimento da terra.

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