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Cine São Paulo, de Ricardo Martensen e Felipe Tomazelli

27/04/17 às 14:06 Atualizado em 20/01/20 as 12:05
Cine São Paulo, de Ricardo Martensen e Felipe Tomazelli

Pintado na Capela Sistina por Michelangelo no início do século XVI, o afresco A Criação de Adão é uma das obras de arte mais conhecidas e debatidas. Tanto é assim que, há relativamente pouco tempo, em 1990, veio à tona uma inovadora chave de interpretação. Desenvolvida pelo médico Frank Lynn Meshberger, ela apontou que o revestimento avermelhado que se localiza atrás do retrato de Deus teria o mesmo formato de um cérebro humano. A teoria foi utilizada para sugerir que a pintura sinalizaria a entrega divina do intelecto para a humanidade. Em formulações mais radicais, pouco respaldadas por especialistas da área, surgiu a ideia de que Michelangelo teria embutido em seu trabalho a sugestão de que Deus seria criação e projeção do cérebro humano, ou seja, de que o dedo indicador de Adão apontado para a divindade abriria espaço para uma ideia radicalmente oposta – o Homem como criador de Deus.

Quando um filme como Cine São Paulo insere por alguns segundos os créditos finais de Ben-Hur, que têm como pano de fundo A Criação de Adão, vem à mente a questão: por que escolher este trecho, entre tantos outros que poderiam ilustrar a história do centenário cinema localizado na cidade de Dois Córregos (SP) que dá nome a este documentário? Para quem não enxerga a aleatoriedade como possível resposta, um dos caminhos interpretativos a serem trilhados diz respeito à relação dessa passagem com o início do filme, mais especificamente com a parte em que, após a exibição de imagens caseiras, o protagonista Seu Chico remexe em ferramentas e encontra aquela que vai reativar o antigo projetor. Ferramenta e projetor, dedo humano e dedo divino… Sob a luz do trabalho de Michelangelo, tal momento pode ser ressignificado também como um tipo de ato de (re)criação: de imagens, memórias, sentimentos.

É desse desejo que se alimenta Seu Chico ao longo de todo o documentário. Aos 72 anos, ele manteve desde sempre uma relação de afeto com o Cine São Paulo, sala comprada pelo pai em 1940 e à qual passou mais tarde a administrar. Entre fechamentos e reaberturas, o último empecilho para a existência dela foi uma ordem judicial que apontou que o local não cumpria as condições mínimas de segurança. Mesmo com tais obstáculos, o senhor decide investir suas economias em mais uma reforma no cinema, que ainda por cima necessitava de um novo projetor, mudanças na estrutura elétrica, pintura, etc. O filme acompanha todo esse processo, que, pelo planejamento um tanto confuso, não sabemos se será bem-sucedido.

A porta sanfonada quase sempre a ponto de emperrar, a placa de lotação máxima na qual a casa dos milhares aparece apagada, os letreiros quebrados com as letras que formam o nome do cinema, todos esses são indicativos de um passado supostamente glorioso que nos é apresentado em materiais de arquivo, como um cinejornal sobre o Cine São Paulo e um vídeo caseiro que mostra a mulher e os filhos de Seu Chico ajudando no funcionamento do cinema. O contraste se escancara no presente pela ausência dos descendentes na dinâmica mostrada pelo filme e pelo pouco entusiasmo da esposa com o projeto de reabertura da sala.

A dificuldade do protagonista ao utilizar celulares – ele não é adepto dos smartphones e quase sempre reclama que as ligações foram interrompidas – joga luz a este choque de tempos presente constantemente no filme. É simbólico que, quando um dos diretores lhe empresta um iPhone no qual deveria atender uma ligação, seu desconhecimento do aparelho lhe faça apertar o botão vermelho, que encerra a conversa. Tal gesto pode ser interpretado como uma espécie de negação ao novo, mas por outro lado é curioso notar de que maneira o Cine São Paulo busca um novo projetor: através de uma possível doação vinda de grandes redes exibidoras, as mesmas que, pela proliferação dos cinemas em shoppings, foram responsáveis pelo fechamento da grande maioria dos cinemas de rua brasileiros.

Nessa relação simbiótica entre os dois Cines São Paulo (a sala em reforma e o documentário que acompanha este processo), o que poderia ser apenas uma exaltação unidimensional ganha contornos de complexidade através do modo com que os dois lados se encaram. Em dado momento, Seu Chico explicita uma insatisfação com a presença da equipe de filmagem durante uma inspeção dos Bombeiros. Não só ali, mas durante diversos momentos da projeção, pode-se perceber uma consciência do protagonista com relação aos significados do filme e do seu desejo de voltar a ver o cinema funcionando. “Aqui eu me sinto importante” e “a Arte nos eterniza” são algumas das falas que indicam essa compreensão.

O principal mérito do documentário de Ricardo Martensen e Felipe Tomazelli é o de colocar em tela esse sentimento difícil de descrever; essa potência que é sugerida quando vemos Seu Chico no cinema ao som da trilha de Superman; esse combustível que nos tira da passividade cotidiana e por vezes nos faz querer compartilhar tal experiência com alguém especial, chegando ao ponto em que “vida pessoal” e “cinema” se tornam indissociáveis, tal como no caderno que o protagonista de Cine São Paulo preenche há tantas décadas.

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