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Atuar para além das circunstâncias dadas: uma conversa com Amanda Gabriel

30/09/20 às 09:00 Atualizado em 18/02/21 as 11:04
Atuar para além das circunstâncias dadas: uma conversa com Amanda Gabriel

* Esta entrevista foi realizada presencialmente na cidade de São Paulo em agosto de 2018

Foi um pouco por acaso, a partir de uma visita a amigos que estavam em processo de realização de um longa-metragem inaugural com o sugestivo título de Amigos de Risco (dirigido por Daniel Bandeira), que Amanda Gabriel teve a sua primeira experiência na função que hoje reconhece como profissão. A preparação daquele elenco – que contava, por exemplo, com Irandhir Santos – gerou nela uma sensação de pertencimento. “Eu vi que meu cérebro funcionava muito bem com aquilo. Me deu um prazer enorme, um prazer criativo, artístico, de estar ali.”

Amanda seguiu colaborando esporadicamente nos anos seguintes com alguns nomes do então jovem cinema pernambucano: Tião (Muro), Juliano Dornelles (Mens Sana in Corpore Sano), Marcelo Lordello (Eles Voltam). Não se tratava, contudo, de uma profissão consolidada ou que trouxesse estabilidade financeira – muito diferente do que prometiam os concursos públicos para os quais ela chegou a estudar.

“Se aceitava diploma de curso superior, eu estava estudando. ‘Vou arrasar na Polícia Federal (risos). Vou ser detetive, investigadora’. Sabe? Eu estava ali, deprimida pra cacete. E aí o Juliano (Dornelles) falou: ‘fica calma que você vai fazer O Som ao Redor’. E realmente foi um marco pra todo mundo que trabalhou ali. Até hoje as pessoas sempre falam comigo sobre o filme”, conta ela sobre o primeiro longa-metragem de ficção de Kleber Mendonça Filho, lançado em 2012 com grande reconhecimento de público e crítica.

Entre os trabalhos como preparadora de elenco que realizou desde então estão filmes de Marília Rocha (A Cidade Onde Envelheço), Hilton Lacerda (Tatuagem), Maya Da-Rin (A Febre), Renata Pinheiro (Amor, Plástico e Barulho), Fellipe Barbosa (Casa Grande), Flávia Castro (Deslembro) e Aly Muritiba (Para Minha Amada Morta), além dos longas-metragens seguintes de Kleber Mendonça Filho (Aquarius e Bacurau) e de colaborações para produções televisivas (como a série Aruanas).

Nesta longa conversa com o Cine Festivais, Amanda Gabriel falou sobre a sua trajetória e forneceu o seu ponto de vista particular a respeito da preparação de elenco no cinema brasileiro contemporâneo.

Seu primeiro trabalho como preparadora de elenco ocorreu no longa-metragem Amigos de Risco, de Daniel Bandeira, que foi lançado em 2007. Como foi esse seu início na área? Quando que você entendeu a preparação como a sua profissão?

É muito particular o meu caminho. Eu sou atriz de formação – arte-educadora com habilitação em Artes Cênicas -, e tive essa sorte de estar na hora certa, no lugar certo, com as pessoas certas. Porque eu estava no Centro de Artes e Comunicação da UFPE, estudando junto com Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro, Daniel Bandeira, Juliano Dornelles… Namorei um amigo deles de infância, o namoro acabou e eu fiquei com os amigos.

Era uma época em que não tinha o curso de Cinema na faculdade, e os meninos estavam naquele movimento de fazer filmes para mandar para o Festival do Minuto, para passar em cineclubes… E como eu estava muito próxima deles comecei a fazer coisas. Atuava em um filme, ajudava no figurino de outro… estava meio ali, com aquelas pessoas. Tudo foi muito sem perceber.

Aí terminei a faculdade – me deu uma crise de me formar com 21 anos, então atrasei três semestres, me formei com 23. E tive uma dor nas costas que nenhum médico resolvia, fiquei paralisada um mês – um dia estava fazendo alongamento e travou tudo. Comecei a me tratar com um monte de relaxante muscular, dormia muito… Eu sei que um dia estava no mercado, vi um pimentão e falei: “vou fazer um curso de cozinha” (risos) Então entrei no Senac, num curso que era das sete da manhã às cinco da tarde, curso de cozinheiro mesmo. E o lugar era a um quarteirão de distância do escritório que os meninos alugaram para ser a sede da [produtora] Símio Filmes, bem no momento em que o (Daniel) Bandeira estava se preparando para fazer Amigos de Risco.

Foi muito maravilhoso porque o filme tinha ganhado um edital de curtas que pagava R$ 50 mil e ele disse: “galera, a gente faz curta com R$ 300… com R$ 50 mil vamos fazer um longa”. E aí eu saí um dia do curso, passei na Símio para ver como eles estavam, matar a saudade, aí me falaram: “ei, Maguinha, fica aí, vai ter uma reunião de elenco. Daqui a pouco o Daniel Aragão está chegando”. O Daniel já tinha iniciado o casting, ia fazer a preparação. Os meninos tinham trabalhado no Cinema, Aspirinas e Urubus – Pedrinho Sotero foi assistente de fotografia, Juliano Dornelles foi assistente de arte, o Daniel (Aragão) foi assistente de direção. Todos estavam muito empolgados, tinham trabalhado no set de “um longa de verdade”, sabe?

Então fiquei lá na reunião e Daniel (Aragão) falou: “Maguinha, massa, fica aqui porque eu vou estar lá fazendo a preparação dos atores, aprendi umas coisas muito massa com o Marcelo (Gomes), acho que vai ser legal para você ver esse processo… e de repente você poderia assumir aquela parte que os atores gostam, esse negócio de exercício, aquecimento…” E aí no meio do processo de construção do filme ele acabou saindo, tinha outras coisas para fazer. Ele continuou apoiando, sendo amigo dos meninos, mas começou a pensar no filme de um outro jeito – não sei exatamente o que aconteceu – e saiu.

Por isso eu peguei a preparação toda… e foi muito louco porque, pela primeira vez na minha vida, eu senti que estava fazendo uma coisa que não era necessariamente fácil, mas que eu fazia sem pensar. Pensava muito, claro, mas sabe quando… por exemplo, você escreve. Deve ser fácil para você escrever. Em algum lugar seu cérebro funciona para isso… e eu vi que meu cérebro funcionava muito bem com aquilo. Me deu um prazer enorme, um prazer criativo, artístico, de estar ali. E foi incrível! Logo na sequência eu fiz Muro [curta-metragem dirigido por Tião]. O Dinho, que era vídeo assist do Amigos de Risco, era primeiro assistente de direção do Muro e me indicou. Falou para o Tião: “Cara, tem essas crianças, e a Amanda fez um trabalho massa com os meninos!”. E fiz. Mas não era uma carreira. Na verdade virou uma carreira bem recentemente.

Depois de se formar na UFPE você foi fazer um curso de bacharelado na Unirio. Como que foi esse momento? Os trabalhos em cinema continuaram?

Passei três anos no Rio sem fazer cinema, estudando. De vez em quando fazendo trabalho de cozinha, costurando bolsas… E aí o Juliano Dornelles me ligou e falou “vou fazer um curta e preciso de você. É com um fisiculturista”. (risos) Foi aí que eu voltei para Recife, para fazer Mens Sana in Corpore Sano. Mas assim, tirando os trabalhos inaugurais (Amigos de Risco e Muro), em três anos da minha vida eu tinha feito um curta (Mens Sana…), um longa que demorou anos pra ser lançado (Eles Voltam), e mais nada. Nada. Morando com a minha mãe e meu pai, sem nenhuma grana. Aí comecei a estudar para concurso público.

Para ser o quê?

Ah, para o que fosse. Se aceitava diploma de curso superior eu estava estudando. “Vou arrasar na Polícia Federal (risos). Vou ser detetive, investigadora”. Sabe? Eu estava ali, deprimida pra cacete. E aí o Juliano falou: “fica calma que você vai fazer O Som ao Redor”. E realmente foi um marco pra todo mundo que trabalhou ali. Até hoje as pessoas sempre falam comigo sobre o filme.

Amanda Gabriel no set de O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012) – Foto: Emilie Lesclaux

E é um marco de duas vias, né? Você se entender como preparadora e as pessoas te entenderem como essa profissional.

Sem dúvida. E ainda assim… demorou! Dinheiro mesmo, só há alguns anos que eu consigo. Eu faço isso há 12 anos, mas dizer “pago as minhas contas com isso” é uma coisa de poucos anos para cá.

Mas deixa eu te contar uma coisa que hoje eu vejo como um marco inicial, como o dia em que eu pensei sobre isso. Em Recife, nessa época em que não tinha a faculdade de cinema, o grande centro de formação dessa geração foi a Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco). Ali eu vi grandes filmes. Não sou de uma família de intelectuais, eu morava numa praia, “perifa de praia”, onde se tivesse um filme legendado na locadora a gente já estava no lucro. Era longe de Recife, não estava naquele lugar da locadora cult, nem muito menos de ir ao cinema. Entrar na faculdade me fez começar a frequentar a Fundação e ver cinema do mundo inteiro. Então o papel do Kleber (Mendonça Filho) na formação de cinema em Pernambuco é muito anterior a ele ser cineasta. É o de ter trazido, quando estava na curadoria da Fundaj, filmes que não teriam oportunidade de passar se não fossem ali.

Na crítica também. Teve uma vez em que ele deu um curso, que Daniel Aragão tinha feito, que Daniel Bandeira tinha feito, e aí Kleber abriu o último dia do curso para exibir e debater os curtas que alguns alunos tinham feito. E os meninos disseram: “vem para ver esse filme que eu fiz!”. E eu fui. O Daniel estava com um curta bem legal, totalmente caseiro, como era o cinema de todo mundo ali: guerrilha e desejo pessoal. Era um filme feito com uma ex-namorada dele, eles estavam acabando o relacionamento, ela ia mudar, e ele fez um filme todo silencioso, com essa menina encaixotando a mudança, e no final ela entrava numa caixa. E era bonita a apreciação da tristeza e da solidão dela. É muito bonito o processo desse filme.

Quando chegou no debate as pessoas começaram a dizer assim: “nossa, como é difícil fazer filme de personagem no Recife. A única atriz boa de tudo o que a gente viu não é atriz.” Começaram com esse discurso. E eu, que não fazia parte daquele grupo, que não era uma pessoa de cinema, era uma pessoa de teatro… Mas de vez em quando me sobe umas coisas e eu falo. Então eu levantei trêmula e falei assim: “eu queria muito entender o que vocês querem dizer com o ator ser ‘teatral’. Não me diz nada! Eu sou uma atriz. Se você quer me dirigir e diz ‘não seja teatral’, você não está dizendo nada para mim. Se vocês querem ter atores que atuem da forma como vocês esperam, não mandem o roteiro para ser decorado um dia antes de filmar. Conversem com esses atores sobre o que vocês querem fazer, formem esses atores. É injusto dizer que não tem atores de cinema numa cidade que não tem cinema e não tem formação para isso. E é errado dizer que os atores teatrais são ruins! Porque os atores que vocês acham incríveis saíram do Actor’s Studio, que é um estúdio de formação de teatro. Não faz sentido falar isso!”.

Eu tinha um discurso bem menos articulado, estava bem mais nervosa, mas eu me dei conta disso nesse dia, de como era injusto. E é uma coisa que eu digo sempre: um ator ruim em um filme se fode. Ninguém mais vai chamar ele. Se um diretor faz um filme que tem problemas, ele vai fazer outro, e no mínimo o filme vai ser discutido, e ele vai se defender, e ele vai apresentar suas questões… O ator não. E no fim das contas pode ser o pior ator do mundo: se ele está mal, a culpa é do diretor. O diretor chamou, filmou e montou. Então, assim, assumam essa responsabilidade.

Nesse dia eu me dei conta de como a gente estava muito atrás nisso. Se todo mundo tem direito à pré, a entender que filme é esse que estamos fazendo, a pesquisar, criar um conceito, apresentar para a direção, e tal, por que o ator, que também é um artista, não tem direito a isso? Até porque se você não tem esse espaço no cronograma, o ator vai trabalhar sozinho, apenas não estará sendo pago para isso. Então para mim a preparação vem deste lugar antes de qualquer coisa. É um direito.

E eu sempre falo: não precisa ter preparador, precisa ter preparação. A não ser que seja um dispositivo de linguagem do filme, acordado com todos. Aí tudo bem. Mas se todo mundo vai fazer preparação, o ator tem que fazer também, gente. É um artista como os outros, é um artista trabalhando. Não entra na minha cabeça que as pessoas não entendam isso.

E pode ser uma função do diretor?

Sim. Também podem ser os próprios atores, uma coisa autogerida, que é um formato que ninguém faz. No Tatuagem [filme de Hilton Lacerda] a gente chegou muito perto disso. Existiu uma preparação, mas existia um esquema dentro da preparação que previa quase que uma autogestão dessas preparações, porque não fazia sentido fazer aquele filme se não fosse assim – era a história de um grupo de teatro. O Hilton descrevia em detalhes pouquíssimos números do Chão de Estrelas. Alguns tinham só um título. Tá escrito “eles apresentam O Funcionário Público e o Amor”. O que é essa apresentação ninguém sabe. E aí o processo era de dividir o elenco em três grupos, cada um criava uma apresentação com esse título, encenavam para si mesmos e, em grupo, votavam qual seria apresentada no palco. Então Tatuagem teve um pouco esse processo, porque era coerente com a proposta.

Mas assim, meu desejo de preparação vem de um lugar que é político. Um direito a não ficar lá ‘vendido’ porque ninguém nem te explicou que porra é esse filme que você está fazendo. E depois ainda fica achando que você tá atuando mal…

Voltando um pouco para os seus primeiros trabalhos como preparadora: o fato de a Fátima Toledo estar muito na mídia na época, após o fenômeno que foi Cidade de Deus, teve algum impacto no seu trabalho, em termos conceituais? Era uma reflexão que havia de alguma maneira?

Acho que não. Pelo menos não tenho essa consciência. Sinto que estive ali colaborando com amigos no processo de direção de atores, e que naturalmente fui chamada quando eles tinham filmes em que precisavam de alguém para dialogar nesse lugar. Porque é isso, o diretor dialoga com vários outros técnicos. Ele tem um diretor de arte para dialogar sobre a arte. Tem parceiros criativos em todas as áreas. E quando chega no elenco, ele não tem. E aí eu pessoalmente enxergo muito o lugar do preparador como um assistente de direção. Não é um substituto, nem um intermediário. Não é um tradutor, ou uma ponte. Para mim é um assistente. Digo pra todos os assistentes de direção que eu fico com a parte mais legal da assistência, que é estar ali pensando personagem, pensando roteiro, pensando junto com os atores qual é o conceito de atuação desse filme.

Uma coisa que intuí durante muito tempo, e hoje tenho um discurso formado sobre, é que cada filme pede um processo diferente, um conceito de atuação próprio, que só virá a ser descoberto a partir desse encontro. Tenho uma visão pessoal de que pesquisa de linguagem faz parte do teatro de grupo. Isso não dá para reproduzir em cinema. A não ser que seja exatamente esse o objetivo e o dispositivo, “queremos fazer esse filme para pesquisar linguagem”.

Eu sequer acredito que exista um ator stanislavskiano, um ator grotowskiano, a não ser que ele seja de um grupo que faça pesquisas específicas nisso, nisso e nisso. Os atores, ao longo da vida, vão descobrindo seus métodos e processos, que são muito pessoais. E pessoas que nunca atuaram também são pessoas que, ao longo da vida, foram construindo seus processos de compreensão do mundo de uma forma muito individual. Eu não me vejo no direito de chegar numa preparação e dizer “esqueçam tudo o que vocês sabem! A gente vai fazer isso!”. Eu sequer tenho poder de sedução para isso. E nesse lugar é que eu digo que eu sou paulofreireana.

É um lugar anti-homogeneização?

Não é só anti-homogeneização… Assim, existe essa teoria da educação que é iluminista, a teoria da tábula rasa, de que o homem nasce sem ter nada nele, é a educação que forma. Segundo ela o aluno não tem nada, o professor é quem coloca. E não! As pessoas são sujeitos e têm subjetividades muito particulares, definidas desde o início da vida. Eu olho para o processo de atuação da mesma forma como eu penso o processo de educação e as relações pessoais. Então ou eu respeito e trago o que aquela pessoa já é, o que ela tem e como ela pensa, e me coloco no lugar de observá-la, de compreendê-la, de entender como eu dialogo com ela, como eu posso contribuir na construção daquele momento e daquele trabalho, ou eu vou fazer uma coisa que eu sou totalmente contra eticamente. Eu posso propor. Eu sempre começo meus processos dizendo: “atuar é se jogar no abismo. Eu vou colocar o abismo mais profundo da vida de vocês na frente, mas eu só vou dizer ‘Pula!’… Tem gente lá embaixo pra te segurar!”. Mas eu não posso empurrar ninguém. É isso!

No fim das contas, quando você está buscando espontaneidade, existir no aqui e no agora, ser natural, ser realista, tem a ver com não alijar a pessoa de quem ela é, de como ela entende o mundo e de como funciona a lógica de compreensão das coisas dela. Então eu me coloco no lugar de observar cada um muito individualmente e tentar colaborar dentro daquela lógica. Se eu tenho um ator que é mais ‘fisicalizado’ e precisa estar aquecido, precisa de exercício físico, a gente vai lá e faz. Se eu tenho um ator que odeia isso, que se sente um babaca fazendo isso, eu não vou obrigar esse cara a passar por um processo no qual ele se sente um imbecil fazendo. Eu vou propor, em algum momento, algumas técnicas, algumas ferramentas, algumas ideias. Mas ele só usa o que quiser e o que fizer sentido.

E como se dá esse diálogo? Porque a preparação tem um tempo definido: você precisa chegar e fazer esse trabalho num tempo “x”. Como funciona essa particularização do trabalho, sendo que há essa demanda pela entrega do “produto”.

É um mistério, mas tem algo que é muito potente, e nisso eu tenho segurança sempre: se você junta atores numa sala de ensaio, algo de muito maravilhoso vai acontecer ali. Algo de muito mágico acontece com atores juntos numa sala de ensaio, botando energia pra realizar algo. Que é a mesma coisa mágica que acontece com uma equipe trabalhando 12 horas por dia numa pré(-produção), botando energia pra fazer alguma coisa acontecer. E de alguma forma a coisa acontece. É imprevisível, é apavorante, eu entro em pânico em todos os filmes que eu vou fazer. Só que eu já sei que o pânico faz parte da ideia de que eu não tenho controle sobre as coisas, porque eu não tenho controle sobre as pessoas. Então, se isso é apavorante no lugar do mistério, isso também é muito libertador no lugar da pressão.

E sobre tempo… As pessoas sempre me perguntam: “Quanto tempo de preparação?” E eu respondo: “Quanto dinheiro você tem?”. Tempo de preparação é determinado pela quantidade de dinheiro que o filme tem para dedicar à preparação. É isso. Pagar alguém para estar ali, pagar principalmente todos os atores para estarem ali ensaiando. “Quanto dinheiro você tem?”

Sempre depende muito do filme e do processo. Eu sou dramatúrgica. Leio o roteiro, analiso o roteiro, ensaio a cena, tiro a cena do papel, vejo se ela presta, se ela funciona. Eu ponho o roteiro à prova. O roteiro não é um filme, é um documento. Eu tenho que pôr ele à prova, eu tenho que me provar que aquela cena funciona. E eu tento fazê-la funcionar de 20 maneiras diferentes até todo mundo, em comum acordo, perceber que algo nela precisa ser adaptado.

Num filme como Tatuagem, em que eu precisava fazer com que o elenco do filme parecesse um elenco de um grupo de teatro que estava há anos junto, eu precisava de quatro semanas, quase cinco. Eu precisava que aquele grupo estivesse junto todos os dias durante muitas horas. Precisava que a gente estivesse trabalhando junto de todo o departamento, e João (Vieira) Jr. [produtor] fez isso da forma mais foda… a gente ensaiava numa sala do lado do figurino, em cima era a arte, na esquina tinha outro casarão com a galera de adereço.

Aquela procissão, que é filmada em 16mm, a gente ensaiou aquilo com o elenco seminu andando por dentro da base, entrando na sala da produção executiva, todo mundo. Foi muito inteligente esse desenho que o João propôs de estar todo mundo junto, porque elenco e equipe, naquele filme especificamente, não podia ser outra coisa.

Tem algo que é maior do que a sala de ensaio, e eu acredito muito nisso. Quando você tem muitos atores, que são seres incríveis, amáveis, inspiradores e maravilhosos, e você bota esse monte de gente na sala, não tem como não sair uma coisa muito massa. Não tem como não haver conexão. Ser ator é criar pontes, é criar conexões. Não é outra coisa senão isso. É o que os atores fazem de melhor na vida. No Amigos de Risco eu aprendi que minhas seis horas de ensaio valiam tanto quanto as duas horas depois tomando uma cerveja.

Os diretores costumam estar presentes nos seus processos de preparação?

A primeira coisa que eu falo quando vou para uma reunião é que eu preciso dos diretores na sala de ensaio e que eles têm que fazer parte do processo. Há questionamentos, descobertas, que só acontecem ali, que não tem relatório, nem filmagem, que dê conta daquilo. Mais do que isso – e é romântico, mas também é profissional e muito verdadeiro -, eu preciso que o diretor se apaixone pelos atores dele, eu preciso que os atores se apaixonem pelo diretor. Se eles não convivem, isso não vai acontecer.

O que eu também defendo com relação à preparação – eu tenho uma listinha disso, “motivos para fazer preparação” (risos) – é que você não dialoga criativamente com o ator num lugar pragmático; você constrói linguagem. O Renato Ferracini, do LUME [Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp], tem um artigo sobre isso: as metáforas de trabalho. É sobre como ao longo de um processo de ensaio se criam metáforas que vêm somente a partir da compreensão do que é que estamos falando. De uma forma muito prática, direta, o grupo começa a se comunicar por metáforas, com pouquíssimas palavras, e isso abre várias possibilidades criativas. Então o diretor estar presente na preparação significa começar a criar essa linguagem. Entender que linguagem é essa. Como ele vai falar com esses atores? Que metáforas serão criadas?

A metáfora tem que surgir espontaneamente, ela nunca pode ser imposta, determinada antes. Por que ela surge espontaneamente? Porque algo se passou num processo de compreensão, e quando você retoma uma imagem ou uma palavra no set, você resgata o momento mágico em que aquela ideia surgiu pela primeira vez. É isso que uma metáfora faz, ela te apresenta uma imagem que te abre mil possibilidades e compreensões. E se eu não tenho um diretor presente no processo de ensaio?

É uma presença em todos os ensaios?

Quase todos. Óbvio que não conseguem estar em todos, porque bate com demanda de produção, mas é preciso ter um cara próximo. Acho importante também ter um momento em que ele não está. Porque quando você tem o diretor presente é muito comum que o ator não se arrisque a abrir outras possibilidades, porque você tem ali a pessoa que pode te dizer “é isso!”. E às vezes, em alguns momentos do processo, eu uso essa ausência para abrir as possibilidades, “vamos pirar, esquecer o que está escrito!”. A gente se perde nesses personagens, nesta cena, depois retoma, reencaixa no roteiro, vê se aquilo cabe, se aquilo faz sentido, e apresenta. Mas se o diretor nunca está presente… Se ele não está ali entendendo quem são esses atores, que processo que eles estão vivendo, e criando um diálogo com eles… E mais: se inspirando por eles.

O Kleber (Mendonça Filho) ensaiava O Som ao Redor com o Final Draft aberto no colo. As pessoas precisam entender que o processo de ensaio é o último tratamento de roteiro. E que muito mais legal do que escrever sozinho, olhando para o computador e imaginando o personagem, é ter pessoas na sua frente. E você escreve com elas. Você pensa numa fala e não coloca num papel; você sussurra no ouvido do ator e vê se ela funciona em cena. É um luxo poder ter um tratamento de roteiro com atores na sua frente. Você tem ideias, coisas novas surgem, cenas novas são escritas. Também descobre que outras cenas não são necessárias, e elas caem… Por que não fazer?

Mas o lugar dos diretores num ensaio é mais de observação ou de intervenção constante?

Intervenção. Está o tempo todo construindo, fazendo.

Não é aquele cara que fica espiando o processo?

É ativo. Não tem como não ser. Eu digo que tem uma qualidade que o diretor tem que ter, que é o que todo mundo pede do ator: presença. Estar aqui e agora. Se o diretor está conectado, ele está improvisando junto. O ator fala uma coisa, ele pensa outra, ele sente junto. E ele entende quando a coisa saiu do tom porque desafinou no ouvido dele, mesmo que tenha sido a fala que ele mesmo escreveu.

Agora com o Iberê (Carvalho) rolou uma parada muito linda [na preparação d’O Homem Cordial]. Eu faço um processo de trabalho de diálogo que não seja de memorização prévia. Pra mim a memorização do diálogo acontece por consequência do trabalho em cima da cena. E pra poder me livrar o mais rápido do texto eu tenho feito um jogo, coisa simples. É mnemônico: qual palavra que vai te lembrar o que você tem que falar. Cada ator tem que escolher a sua palavra, porque é um processo muito pessoal.

E o Iberê estava ali do lado, com o Whatsapp bombando, resolvendo coisas da produção, de cabeça baixa. E de repente ele fala assim: “Vocês pularam uma parte! Vocês falaram isso antes, não é agora!”. E a gente: “Oi? A gente falou exatamente na ordem.” E aí ele, que estava desatento a princípio, falou “não, desculpa, eu estava aqui ocupado”. Aí eu segurei ele e falei: “Se você não estava atento, mas estava presente, e veio uma música no teu ouvido e disse ‘desafinou’, é porque tem alguma coisa errada. Por que é que você acha que eles disseram a parada na hora errada?” E quando a gente foi ver, a cena funcionava muito melhor da forma que ele achou que tinha sido errado, porque ele estava ouvindo, não estava lendo a palavra que ele mesmo tinha escrito, e disse “isso não faz sentido vir agora”. E aí a gente começou a recortar a cena inteira e a mexer na ordem das frases, e a cena ficou muito melhor. Tudo isso porque ele estava numa postura de ator, ouvindo de verdade e respondendo a isso.

Um ator e um diretor no set precisam do mesmo estado de presença. Eles estão atuando juntos. Por isso que num processo de ensaio você começa a entrar nessa dinâmica. Então é muito difícil um diretor ficar sentado na sala de ensaio e não dizer nada, ficar só olhando e tomando nota. Não dá. Entra! E eu preciso dizer que só trabalhei com diretores incríveis, então também falo de um lugar muito especial.

Amanda com o ator Gabriel Pardal, protagonista de Tropykaos (Daniel Lisboa, 2015) – Foto: Daniel Lisboa

O Eduardo Bordinhon, um pesquisador que tem mestrado na Unicamp, aponta o surgimento da função de preparação de elenco no Brasil como algo proveniente de uma dificuldade histórica de comunicação entre cineastas e elenco. Talvez isso venha mudando com essa geração mais nova com a qual você tem trabalhado. Queria saber a sua opinião sobre isso.

Eu não sei exatamente o que é a formação de diretores em faculdades do Brasil. Não tenho propriedade pra falar sobre isso. Mas eu entendo, pelas pessoas que eu conheço e com quem eu converso, que sim, há uma carência no pensamento sobre ator, sobre como trabalhar com o ator. Porque você não pode estudar simplesmente como dirigir ator, você tem que entender como funciona atuar. Tem que saber as ferramentas disponíveis para dialogar com o elenco.

Mas ao mesmo tempo, por trabalhar com cinema independente, eu entendo que estou num lugar muito específico do cinema brasileiro, e me sinto lisonjeada por estar nele. E repito: lugar certo, na hora certa, com as pessoas certas. As pessoas com quem trabalhei eu admiro muitíssimo. São diretores que são realizadores autorais e roteiristas. Então, neste lugar, você entende um pouco do que é uma lógica de construção de personagem. Você de certa forma pensa um pouco como o ator. E acho que isso facilita uma proximidade, um diálogo.

Ocorre sempre isso nos seus trabalhos, de o diretor ser também o roteirista?

Tirando O Filho Eterno, que era um filme de produtora, com um diretor contratado, um roteirista contratado, sim: em todos os filmes que eu fiz os diretores eram os roteiristas. E produtores dos próprios filmes, inclusive.

Mas, por exemplo, eu sinto claramente no Fellipe Barbosa, que é um cara que tem uma formação americana, muito mais ferramentas de trabalho com o ator. Ferramentas nomeadas, não intuitivas, muito novaiorquinas. Um pensamento de cinema Actor’s Studio, que ele nem dá nome, mas que eu mesma, estudando, fui reconhecendo naqueles processos, que são usados no casting ainda. Um lugar ótimo para ter um preparador de elenco é no teste de elenco.

Você costuma estar?

No processo final, sim. Sempre que possível. Ou ter produtores de elenco que entendam um pouco. Porque acho que teste custa muito dinheiro e tempo. E muitas vezes é mal feito: você gasta tempo e dinheiro sem ficar conhecendo verdadeiramente aqueles atores. Às vezes você perde um ator por um teste que é mal conduzido, feito com pressa.

E quais foram os testes mais marcantes que você participou?

O Fellipe Barbosa é campeão. Passa três horas fazendo um teste com uma dupla de atores, não só com um ator. Lendo cena, conversando sobre a cena, levantando as circunstâncias dadas. Faz, refaz, dirige, se inspira a partir deles. Junto. É quase um processo de ensaio de uma cena. O Fellipe é incrível nisso.

Mas os testes d’O Som ao Redor também eram. Óbvio que numa última etapa. Você entrevista, conversa. Mas eu acho que vale muito a pena gastar um tempo, fazer a pessoa entender onde ela está. Aquela única cena que ela recebeu isolada de um contexto… o que ela é? Inclusive entender se você consegue dialogar dirigindo aquela pessoa, se vocês conversam. É tão importante entender se a conversa se estabelece já a partir do teste.

Porque o diálogo com ator nunca é racional, direto; é outra forma, é outra linguagem. Tem uma parada com a qual sou muito maníaca, que é a linguística. Eu odeio dar entrevistas inclusive por causa disso. A escolha das palavras corretas… que não vão ser deturpadas. (risos) Eu sempre coloco isso nas oficinas. Não posso falar pra você: “não pensa numa girafa!”, porque a primeira imagem que vai vir na tua mente é a de uma girafa. Quando você tem um filho, ou quando você trabalha com criança, você não trabalha na negativa com ela. Porque se não a imagem mental que ela vai fazer é a da negativa. É a mesma coisa num processo criativo. Dependendo da forma como você coloca, em vez de abrir caminhos, você está fechando portas. Isso é o que eu acho que às vezes falta para os diretores. Ou alguns têm apenas intuitivamente.

Estou trabalhando agora com uma diretora que fez uma oficina de direção de atores na escola de Cuba (EICTV), que segue as ideias de (Sanford) Meisner, e eles entregam uma lista de frases que não devem ser ditas para atores porque não ajudam no processo, só atrapalham. É uma parada que não é da compreensão racional, é uma parada que tem que abrir caminhos criativos, emocionais. Então esse jogo é muito delicado. Talvez seja isso o que leva as pessoas falarem sobre essa dificuldade dos diretores com o elenco… mas também tem um monte de diretor de teatro que não sabe ter essa relação.

Acho muito ruim também dizer que agora, neste momento do cinema brasileiro, estamos chegando num certo tipo de atuação. Você pega o Cinema Novo e o Teatro de Arena… foram feitos um para o outro. Houve esse momento em que, conceitualmente, artisticamente, politicamente, a linguagem do teatro e do cinema se encontraram. Em Todos os Paulos do Mundo o Paulo José fala isso, “o Teatro de Arena estava pronto para o Cinema Novo”. Então era uma construção de mão dupla.

E aí entra também minha visão sobre personagem, que é muito determinante sobre como eu penso esse trabalho todo. Inclusive porque, linguisticamente, personagem é construção de discurso. E o cinema é, por natureza, polifônico. Então é uma questão semiológica a ser explorada. Não é o ator que é responsável pelo personagem. A fotografia constrói personagem, a arte constrói personagem, a luz constrói personagem. Figurino, maquiagem, montagem… Onde é que o ator entra para contribuir na construção desse discurso que é de muitas vozes? E aí é que eu digo que é muito importante o ator ter consciência do que é o processo de fazer um filme. Linguisticamente, semiologicamente. Muitas vezes o que a gente acha que é overacting é simplesmente a falta de consciência de que ele não precisa fazer tanto. E de que não está só nele a construção daquele personagem.

No caso do Brasil também tem outra coisa: não só talvez a gente não tenha uma tradição na formação da direção de atores, como a gente tem um tipo de atuação onipresente historicamente enfiada dentro das nossas casas, que é o melodrama feito na TV. Então, além de tudo, é como se a gente tivesse que fugir disso, e ainda tem esse obstáculo nesse diálogo direção-ator, em como eu construo para cinema. A gente tem essa presença que está no DNA cultural da gente. A onipresença do melodrama.

Como isso se relaciona aos seus processos, nesse cinema mais independente?

Então, linguisticamente, qual é a questão do melodrama? O melodrama é redundante. Em tudo. E aí quando eu proponho a um ator que o personagem é a construção do discurso, e que esse é o discurso dele, eu proponho a ele pensar semiologicamente. Como é que a gente faz uma boa redação? Como é que a gente disserta bem sobre algo? E uma das coisas mais insuportáveis em discursos é redundância. É o lugar em que você inclusive perde o contato com quem está te lendo. Onde se quebra algo. E o que eu proponho é uma investigação profunda sobre quais elementos já estão dados, pensando em como o ator entra naquilo que não está escrito.

É o subtexto?

Tem muitos nomes pra isso. Subtexto está muito dentro de uma prática historicamente ensinada de um sistema stanislavskiano falhamente implementado, porque primeiro a gente estudou construção psicológica do personagem, e o segundo livro (do Stanislavski) chegou 30 anos depois. Olha a quantidade de gente formada e que formou outras pessoas entendendo que construção de personagem é algo psicológico, e por isso subjetivo, e por isso ligado a uma ideia de indivíduo, platônico… Assim, o que é essa ideia? Que eu tenho que buscar a mímese de um ser humano completo, complexo, desde o dia em que nasceu até o dia que morreu, e todo e qualquer motivo emocional dele… Isso não é Stanislavski. O pobre coitado se remexe no túmulo até hoje. Mas eu aprendi Stanislavski assim também, e eu briguei com ele por causa disso. Então quando se utiliza essa palavra subtexto eu sei que está vindo essa carga inteira, histórica, de construção psicológica.

Já o (Sanford) Meisner usa “circunstâncias dadas”, que eu acho uma expressão ótima. Quais são as circunstâncias dadas dessa cena? Onde estamos? De onde eu vim? Para onde eu vou? O que está acontecendo? O que está dado? E aí quando você lê o que está dado, consegue articular um discurso que não seja redundante. Porque você entra com um discurso complementar, de preferência dialético. E nisso nós temos o maior gênio do mundo, que é o Augusto Boal, brasileiro, construindo um pensamento de atuação dialético.

E aí eu vou nessa busca: o que ainda não está dado? O que o diálogo já disse? Para eu não precisar ser redundante. Como é que eu posso atuar no contrário do que estou dizendo, ou complementando algo que eu estou dizendo para gerar um terceiro elemento, para fazer com que quem está me vendo não entenda exatamente uma ideia única, mas receba muitas informações. E aí eu vou pra fruição. Engajo o meu espectador em algo que lhe interessa porque ele constrói junto. Então, para mim, a resposta que eu tenho hoje é que o lugar do ator no cinema é atuar no que é invisível. No que ninguém deu, no que a câmera não viu, no que o figurino não mostrou, no que a palavra do diálogo não disse.

Mas isso que você está dizendo tem que contaminar todo o processo do filme. Não dá para acreditar no roteiro como algo pronto, por exemplo.

Jamais. Se roteiro fosse algo pronto, era pra publicar como livro, não era para fazer filme.

Mas tem diretor que pensa assim?

Comigo isso nunca aconteceu. Ele é um escritor, continua escrevendo. Como você pode exigir do ator presença, agir no aqui e no agora e ser espontâneo se no seu processo de filmagem você não lida com o que está acontecendo naquele momento na sua frente e está querendo simplesmente reproduzir uma ideia da sua cabeça? Não dá! Não dá pra ter controle. Claro que eles sabem o que querem fazer, mas eles sentem que aquele elemento que entrou, que é o ator, modifica algo, adiciona algo, transforma algo. Dá pra ele novas ideias para seguir exatamente para onde queria.

O Kleber (Mendonça Filho) é um diretor que tem muita clareza de tudo que ele quer. Tem ideia de montagem, de fotografia. Provavelmente é o diretor que mais entende de cinema com quem trabalhei, tem tudo na cabeça dele. Mas ele está ali completamente aberto a receber contribuições que sabe que vão adicionar no caminho para onde ele quer ir. E aquelas que não necessariamente vão adicionar ele simplesmente põe de lado.

A Jacqueline Nacache, que tem um livro chamado O Ator no Cinema, fala assim: “toda relação de direção e atuação é uma relação de poder e controle. Ela é abusiva quando os dois não estão em pé de igualdade”. Mas se ator e diretor estão em pé de igualdade, essa relação de poder e controle vira criativa, vira uma bela luta, e dali saem coisas lindas. Ela só é abusiva quando não há espaço para que haja esse diálogo.

Queria que você falasse um pouco mais do trabalho do Kleber, que é um cineasta com uma decupagem muito precisa…

Muito! Não é Cassavetes.

Comparando com o filme da Marília (Rocha), o A Cidade Onde Envelheço, são estilos de direção bem diferentes, com relação ao modo como os atores ocupam o quadro. A Marília veio do documentário, então trouxe um lugar do improviso – não sei bem se essa seria a palavra…

Em A Cidade Onde Eu Envelheço eu não estive no set, acho bom falar isso. Mas deixa eu te contar: a Marília é das diretoras com quem trabalhei que tinha mais clareza, consciência e precisão exatamente do que ela queria. Era uma diretora que tinha controle sobre o material que ela queria, extremamente perfeccionista. Aquilo que está ali foi construído milimetricamente. Porque para lidar com o acaso e garantir que você terá seu filme é preciso ter esse controle. Mesmo a relação da câmera, quando é improviso, tinha um código estabelecido. É um jogo em que a regra é aquela e você joga a partir disso.

No caso do Kleber ele trabalha a decupagem de uma forma muito precisa, muito clara, arquitetônica. Eu sempre digo que se ele não fosse cineasta, seria arquiteto. Você vê isso muito claramente no modo como ele fotografa pessoas nos espaços. É arquitetura humana… Com o Kleber eu aprendi uma coisa muito poderosa, que é como usar o quadro. Como fazer mise-en-scène num quadro. A partir do momento em que o cara decide filmar scope, porque quer ter o rosto dos atores e o espaço urbano atrás – a figura humana encaixada dentro da grandiosidade e da urbanidade dos prédios e dos muros -, eu começo a entender que a simples presença humana de um ator dentro de um quadro já me diz um monte de coisa sobre a construção daquele personagem e sobre como o ator deve atuar. E quando você conhece a regra do jogo você é livre para seguir até o lado que quiser ir.

Um exemplo que eu sempre falo nas minhas oficinas, sobre relação com o quadro, é uma cena d’O Som ao Redor. Dois seguranças estão sentados na rua mexendo no celular. O Irandhir (Santos) olha a hora, meio nervoso, olha pro canto da rua, volta. No subtexto dele, ou nas circunstâncias dadas daquele personagem, ele está observando o horário em que o Francisco vai descer, vai nadar na praia… está notando os hábitos daquele cara. E aí está lá o filme rodando em película, o que gera uma tensão… e o Irandhir começa a andar e se afastar da cena e chegar muito perto do limite do quadro. Até quase estragar… e antes disso ele para e volta. Sem nenhum espectador entender conscientemente isso, o uso desse quadro, essa proximidade, esse quase sair e retornar, gera uma tensão em uma cena que não tinha tensão nenhuma. E que não é só minha, que estou vendo a película rolando e dizendo “vamos perder um plano porque o ator beijou com o nariz a beira do quadro”. É porque eu estou ali há muito tempo no quadro fixo, já entendi que aquele quadro não vai “corrigir”. E de alguma forma quase estética e irracional eu entendo que vai dar ruim se aquele cara continuar andando… Então, assim, são coisas muito sutis, de linguagem, que o diretor pode explorar pensando como o ator se posiciona, jogando com o limite do quadro. Por isso, ter um cara que decupa não é ter um cara que aprisiona.

Mas você estava lá nesse dia da filmagem?

Estava sim… mas não disse nada. Nem sei se o Kleber cochichou pra ele “vai até o canto do quadro”. Ou se ele veio no monitor e olhou qual era o limite do quadro. Talvez nada disso fosse consciente. Mas o fato é que eu posso usar um plano muito rígido, uma escolha de decupagem muito rígida, e ainda assim, na movimentação do ator, compreendendo sobre o que é a cena, gerar tensão.

Aproveitando esse exemplo, queria saber como é a sua participação nos sets quando você está presente.

Eu sou assistente do diretor no set. Talvez meu trabalho também tenha algo de uma continuísta, mas que está atenta só a uma ideia de continuidade narrativa e emocional – não que continuístas não façam isso, mas às vezes a gente entende a continuidade de uma forma muito careta, que é fazer exatamente como estava previsto… “falou essa frase fora do lugar”. Não é isso. É alguém que está entendendo o filme que está sendo feito, que percebe que aquilo ali é importante, que aquele personagem naquele momento está sentindo isso ou aquilo, ou que algo que a gente tinha no roteiro era uma coisa, mas a gente já rodou e modificou o que vem ali depois…

Mas eu não dirijo ator [no set]. Falo sempre com o diretor quando tenho uma ideia ou quando acho que tem uma coisa que eu vi que não está funcionando. No set meu diálogo é direto com o diretor, e eu só falo com o ator se o diretor me diz: “por favor, vai lá e fala isso pra ele!”. A não ser que haja uma necessidade muito específica, não faço aquecimento, concentração…

Passar texto…

Não. Se teve uma pré muito rica, não. Se eu estou num processo maior de uma série, no qual a gente não bateu todas as cenas, sim, posso até passar um texto, mas é um passar texto que não é de decorar, é de dizer quais são os problemas que a gente vê nessa cena, que frases não funcionam, o que a gente pode mudar, que palavra não cabe bem na boca, do que a gente está falando aqui.

No teatro, quando você aquece para entrar num palco, seja pra passar uma hora, seja pra passar oito, há um contínuo daquilo. O set de filmagem funciona de outra forma, e eu preciso que um ator muitas vezes resista filmando 12 horas. E se eu tenho esse ator se rasgando pra fazer uma cena, e depois ele vem fazer outra, vem fazer outra, eu vou detonar esse cara. Então são coisas muito específicas para cada cena.

E cada ator se concentra de um jeito. Aliás, eu odeio essa palavra, nunca falo “concentra!”. É a pior coisa que você pode dizer para qualquer pessoa! “Se concentra!” “Tomar no seu cu! Eu sei como eu funciono, não peça para eu ficar calma!” Pra mim é uma palavra que dá essa reatividade linguística…

Então cada ator sabe o que precisa. Eu peço somente para ele me dizer quanto tempo ele quer antes de saber que vai ser chamado para ensaiar no set. Eu faço essa ponte com a assistência de direção. Se eu não estou no set, converso antes com o assistente de direção para estabelecer esse método.

Amanda e o ator Fernando Alves Pinto no set de Para Minha Amada Morta (Aly Muritiba, 2015) – Foto: Rosano Mauro Jr.

Por falar em método, queria saber, para além dessa ideia de que “cada filme pede um processo”, se hoje você consegue fazer uma sistematização mais geral sobre seu trabalho, suas técnicas…

Consigo sim. Hoje tem algumas coisas que eu sei que funcionam. Mas, ainda assim, eu tenho a certeza de que, se eu me acostumar com o que já faço, vou levar a porrada que levei quando fui fazer o filme da Marília, que era, sei lá, meu décimo longa. Eu achava que eu tinha entendido tudo o que eu fazia, e que eu conseguia ir por um caminho. Até um dia em que a Marília chegou pra mim e falou assim: “Amanda, eu admiro muito o seu trabalho e te chamei aqui por conta de coisas muito específicas de filmes que você fez. Mas para isso que a gente vai fazer agora estou te pedindo pra você fazer o que nunca fez”. Então no meu décimo longa a diretora me disse isso – não me criticando, muito menos me demitindo –, e eu me dei conta de que quando eu achei que tinha chegado num lugar, aquilo não me servia mais.

Eu passei muito tempo sem dar oficinas. Sempre me soava como algo caça-níquel. Não sou professora de atuação, não sou uma estudiosa profunda de métodos de atuação, não sou especialista em nenhum método. Eu leio e estudo coisas que me alimentam, que me servem, e que vêm fazendo sentido para a minha vida. Tenho mestres… O Jurij Alschitz é para mim um norte condutor eterno, um cara que me fez entender a minha prática. Ele colocou em palavras o que eu acreditava e fazia. Mas ainda assim, na hora em que eu tiver certeza (de um método), vai dar ruim.

Eu dizia que nunca ia dar oficina porque eu não tinha método. E depois de escutar algumas pessoas muito próximas dizendo “seu método é esse”, eu falei “tá bom, então eu vou falar sobre o que eu acho que é o desafio. Sobre quais perguntas eu acho que a gente deve fazer”. Porque, nesse sentido, eu sou bem socrática: eu faço perguntas. Meu processo é muito de questionar: por que isso? Pra onde vamos? E se isso acontece? E se é isso, o que muda? Pra que caminho a gente segue? E aí eu entendi que talvez seja meio que isso o método.

O que eu tenho mais certeza na minha vida agora é que eu sou norteada por uma ética de trabalho. E como eu, na minha formação e na minha vida, não dissocio ética de estética, essas duas coisas andam juntas. Elas são variáveis de acordo com os personagens que estão envolvidos, mas eu tenho esses nortes básicos na minha vida, de respeitar o background de cada pessoa que está comigo, entender como cada um processa, respeitar cada pessoa que chegou até ali com seus métodos próprios. E tentar desafiá-las e fazê-las ir além, respeitando seus limites.

Mas essa conversa com atores e atrizes se dá sempre coletivamente?

Pra mim, cada vez mais, é coletivamente. O Som ao Redor era tipo consultório do SUS, porque você tem um filme com vários personagens que nunca se cruzam, inclusive. Eu lembro que a gente batia a claquete de sequência 200 e tanto, era insano o negócio. E aí a gente ia ensaiando, ensaiando e ensaiando. De tal a tal hora, tal grupo. De tal a tal hora, tal cena. E funcionou bem porque eu tinha tempo pra isso e fazia sentido para aquele filme. Atualmente eu tenho investido muito no tempo da leitura. O Amor, Plástico e Barulho é um filme em que a gente passou uma semana para terminar de ler o roteiro. Sentado, só conversando. Mas uma semana para ler o roteiro, que era de 80 páginas.

E nunca no lugar da análise de texto cartesiana, acadêmica, dramatúrgica. É uma parada que eu chamo de mapeamento emocional, que tem mais a ver com entender como o meu ator, indivíduo artístico, político, ético e histórico se relaciona com aquele texto, com a história que a gente vai contar e com aqueles temas que estão ali. Então não é um mapeamento de rubricas emocionais de personagens, nem um gráfico de altos e baixos. Mas é como, lendo aquela história, me relacionando com ela e questionando sobre o que ela fala, eu mapeio em mim, no meu ser artístico e político, como eu me relaciono com aquilo. No sentido mais material da palavra afeto: como bate em mim, como reverbera, que luzes acendem. E aí eu posso partir pra fazer a cena, porque eu já fui afetada. Eu já me emociono, já me relaciono de alguma forma com aquela história.

Sobre essa não dissociação entre ética e estética, gostaria de entrar nos debates sobre assédio e sobre limites artísticos que têm ganhado espaço recentemente. Acho simbólico que a entrevista que o Bernardo Bertolucci deu em 2013, falando sobre a cena da manteiga em O Último Tango em Paris, tenha sido retomada poucos anos depois, num momento em que o debate público passou a pautar esse tema. Não só a partir do caso do Bertolucci, mas de outros tantos, surge uma discussão sobre se é possível diferenciar vida e obra. Queria saber como este debate chega para você.

Minha primeira aula na faculdade foi com um grande arte-educador chamado Marco Camarotti, importantíssimo na arte-educação brasileira. E ele dizia o seguinte: não existe educação artística; a arte é educativa enquanto arte. Toda arte é política, no sentido mais original da palavra, que é o de pólis, comunidade. Nada que você faz em coletividade não é político. Por isso a nossa subjetividade está inserida num contexto político. Inclusive eu não sou homem se não em contato com o outro; sem isso eu viro bicho, viro menina-lobo na Índia, no século XIX, sendo resgatada com sete anos e sendo um lobo.

E aí você está me fazendo uma pergunta de um lugar que é impossível de dissociar, por eu ser mulher. O Último Tango em Paris foi um dos primeiros filmes que eu vi na minha vida, dos filmes grandes. Tinha uma tia que me apresentava essas coisas. Assisti ao O Último Tango com onze anos, em VHS. Minha tia falou: “Marlon (Brando), precisas conhecer Marlon!”. Sonhos, de Akira Kurosawa, vi com 10 anos com ela. Eu tenho em minha memória esse lugar da descoberta de um tipo de cinema, de um amor pelo próprio Marlon e de uma relação com esse filme, que tem uma ruptura e um rasgo quando eu sei do abuso que houve. E ao saber do abuso – eu, Amanda, mulher, artista -, por mais que eu queira separar o indivíduo da obra dele, eu enquanto fruidora não consigo separar a fruição daquela obra de arte do modo como eu me relaciono com a história por trás dela. Individualmente isso me impacta. E acho que essa discussão desconsidera o processo de fruição enquanto algo que também inclui a subjetividade de quem vê, não só a de quem faz. Quando as pessoas dizem “é preciso separar o Woody Allen dos filmes”, você está propondo que eu, enquanto espectadora e amante dos filmes, separe o meu eu político do eu que está fruindo a obra. E é impossível…

Eu estive no Greenpeace esta semana, e a base do ativismo deles é muito simples. Como que o Greenpeace começa? Com ativistas se colocando nos lugares e gerando imagens disso. O cara na caça das baleias, num barco em frente, com um arpão passando em cima da cabeça. Não é só pra gerar imagens polêmicas, é pra dizer: eu, indivíduo, estou aqui frente a isso, vi isso acontecer. Como eu me relaciono com isso? Eu digo “não, não vi!”, e continua a mesma coisa, ou então eu me posiciono. Se eu não me relaciono com aquilo e quero negar, eu estou contribuindo para que aquilo seja mantido. Não tem neutralidade nesse lugar.

Aí, normalmente, esse discurso de separar o homem da obra é dito por homens, e não por mulheres, que não têm esse privilégio de conseguir separar o meu “eu social mulher” e sentar para ver um filme deixando isso na chapelaria do cinema. Não dá. A grande lição do Vazante [filme de Daniela Thomas] em Brasília, pra mim, foi me dar conta de que eu enquanto mulher branca, na melhor das intenções, posso produzir imagens violentas para quem vê. E se eu me surpreendo que essas pessoas sejam violentadas por imagens que pra mim eram de beleza, de consagração e de reconhecimento daquilo, eu estou desconsiderando uma parcela muito grande da população vendo aquilo. Estou considerando que a minha imagem vai ser lida só por quem pensa igual a mim. Então essa discussão toda também passa por isso.

E no caso dos processos em que você participa, quais são os cuidados que vêm sendo tomados com relação ao tema do assédio? Você sentiu mudanças nos últimos anos?

O primeiro acordo que se faz com o elenco é de confiança. De que aqui você pode falar sobre tudo, e de que é muito importante para mim que você diga o “não”. Isso parece muito claro, mas a gente sabe que nossas relações, em qualquer espaço, estão influenciadas e subjugadas por questões que são estruturalmente estabelecidas. É muito difícil para um ator dizer “não”. O ator está numa situação muito frágil. O ator que diz “não” é complicado, ninguém quer trabalhar com ele. Então, mesmo estabelecendo esse acordo oralmente, é bem difícil dizer “não” na hora do incômodo.

O que eu falo sempre para os atores, principalmente para as atrizes com quem trabalho… Isso na verdade eu digo para as mulheres na vida, digo para o meu filho, vou dizer para a minha filha mais ainda se um dia eu a tiver: “se pareceu errado dentro de você, está errado”. Então, recua e diz assim: “não estou me sentindo bem. Qual é?”

Eu imagino que inclusive já deva ter pecado nisso sem sequer ter percebido. Sei, dentro de mim, de momentos em que eu deixei passar, mas eu tenho um olho muito atento para perceber quando o incômodo rolou e o ator está numa relação ali em que ele não se sente à vontade para dizer o “não”. Esse é o lugar da responsabilidade ética que a gente tem que estabelecer. É muito cruel botar o peso de dar o alarme nas costas de quem está sofrendo o abuso. “Ah, não, mas se você tivesse dito”. Você não sabe como aquilo opera. O abuso opera num lugar em que te silencia, mexe com a tua fragilidade. Você diminui, perde forças, quando é colocada numa situação de violência. Não pode estar nas costas do ator, da atriz, de quem está sofrendo a violência, gritar o alerta. Tem que ser um acordo coletivo de todo mundo que está ali, observando. Se sentiu que tem alguma coisa esquisita, chama junto. Porque às vezes é isso, a gente não tem consciência do abuso que está cometendo. A gente acha que pra gente é normal. Porque abusos são naturalizados, são estruturais.

Então precisa de um olho muito ativo e, com mulheres, muito sororo mesmo, de estar muito viva e atenta para defender, porque é um olhar que eu vou ter, e os homens não. Se eu estou pedindo para uma pessoa me dar tudo, para ser real o tempo inteiro, eu tenho que dizer: “faça o que você quiser, tem uma rede te protegendo.” Para mim isso é uma responsabilidade de todo mundo que está envolvido no processo. Se tem alguém ligeiramente incomodado, é porque tem uma coisa errada. E a minha estratégia enquanto indivíduo, artista, mulher, no cinema, é não calar. Minha estratégia hoje é: “se você me deixa constrangida, eu devolvo o constrangimento pra você”.

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