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“As Mil e Uma Noites é o meu filme tropicalista”, diz Miguel Gomes

04/11/15 às 11:37 Atualizado em 13/10/19 as 23:18
“As Mil e Uma Noites é o meu filme tropicalista”, diz Miguel Gomes

O diretor Miguel Gomes recorre a uma metáfora musical para definir sua atitude diante do cinema: “se um piano tem muitas teclas, ficar tocando sempre a mesma é algo que me aborrece, que me deixa chateado”, diz o português, que conversou com o Cine Festivais durante a sua passagem pela capital paulista para apresentar os três volumes (O Inquieto, O Desolado e O Encantado) de As Mil e Uma Noites na 39ª Mostra de São Paulo.

Inquieto, tal como o título do primeiro volume do filme, Miguel já tinha mostrado em seus longas-metragens anteriores (A Cara que Mereces, Aquele Querido Mês de Agosto e Tabu) um gosto por mudanças bruscas durante o andamento das obras, tal como acontece com a segmentação europeia/africana do último.

Em As Mil e Uma Noites, que se baseia na estrutura do livro clássico para falar sobre a crise socioeconômica vivida por Portugal nos últimos anos, essa característica é radicalizada através de uma abertura a diversos tipos de registros, como drama, comédia, fantasia e documentário.

“É um jogo entre conjunto e fragmento, e eu achei que a diversidade seria a riqueza do filme: quanto mais registros, quanto mais histórias pudesse haver, quanto mais histórias dentro de cada história, melhor seria”, explica o diretor, que por isso acha que este é o seu “filme tropicalista”.

Leia a seguir a entrevista exclusiva concedida por Miguel Gomes ao Cine Festivais.

 

Cine Festivais: Gostaria que você falasse sobre a relação entre o curta-metragem Redemption e As Mil e Uma Noites. No Redemption há uma aproximação da política macro pela via do micro, da humanização daquelas pessoas. Você vê uma relação entre os filmes? O curta, de algum modo, serviu como preparação para o longa?

Miguel Gomes: Eles foram feitos em sequência. Terminei de montar Redemption e, dois ou três meses depois, comecei a filmar As Mil e Uma Noites. Você tem razão, eu acho que há uma relação entre esses dois filmes, mas eu não vi o curta como uma preparação, queria que ele fosse um filme em si. Eu acho que os filmes têm que existir por si mesmos. Não podem ser preparação, tem que existir e ponto final; ou existem ou não existem. Mas é verdade que existe essa relação entre o íntimo e o coletivo.

No caso de Redemption, havia uma relação com o poder na Europa, e em As Mil e Uma Noites eu acho que o personagem principal é a comunidade, são os portugueses. Mas também é verdade que há muitos personagens obcecados no filme. Pode ser o sindicalista que está obcecado em levar todos os desempregados para o banho dos magníficos; ou o galo que está tão obcecado em se comunicar que canta no meio da noite.

Há a tensão entre essas coisas muito particulares e a relação com o coletivo, com o destino, com uma questão que eu colocava para mim, que era “o que significa viver em Portugal em 2013 e 2014?”. E para isso tive que inventar muitas histórias, porque não há apenas uma maneira de contar isso.

 

CF: Há uma expressão que vem sendo muito utilizada pela mídia brasileira e já virou motivo de brincadeira nas redes sociais. Qualquer notícia mais positiva sempre vem acompanhada do termo “apesar da crise”. Acho que seu filme tenta confrontar essa espécie de narrativa oficial acomodada e traz o elemento humano, e o imaginário que o acompanha, para o centro de suas preocupações…

MG: Nós trabalhamos com uma equipe de jornalistas, mas a ideia era que eles fossem apenas o ponto de partida, porque depois haveria uma transformação, um trabalho de ficção que tentaria inventar um espaço para outra maneira de contar essa experiência de viver em Portugal – uma maneira vinda do imaginário.

Eu tenho essa convicção de que o imaginário não é um mundo paralelo sem relação alguma com o mundo real. O imaginário é o produto de vivermos em um tempo em que se passam uma série de coisas que fazem com que as pessoas tenham medo e desejos.

Dou-te um exemplo concreto: eu creio que aquela historia do feiticeiro e dos homens de pau duro não aconteceu, mas eu diria que a realidade daquele segmento é a realidade do desejo. Eu acho que todos os portugueses, ou quase todos, partilhávamos este desejo de acabar com a política de austeridade, com os cortes nos gastos sociais, nos salários das pessoas. Era bom que essa bobagem acabasse, nem que fosse pela coisa mais estúpida do mundo, como um feiticeiro aparecer e dizer “vocês precisam de amor e de ter o pau duro, tomem lá este afrodisíaco”.

Então para mim isso é real; apesar de ser absurdo, expressa uma coisa que é real. Eu acho que é preciso trabalhar com os desejos e com os receios do coletivo, e essa é uma das propostas do filme.

 

CF: Como você enxerga o papel do artista diante da crise? Acho que nesse momento há uma série de questões culturais da sociedade vem à tona. Como você encara isso? Foi uma motivação para você fazer esse épico?

MG: Olha, eu não sei se há um papel para o artista ou para o cineasta. O cinema que me interessa é algo que não é autocontido, no sentido de que não está fechado em si próprio. Pode até ser tão artificial quanto o meu cinema; entre o cinema e a vida há uma diferença enorme.

Há muitos filmes que eu vejo, e que me chateiam, que passam demasiado tempo a me convencer, como espectador, de que aquilo que eu estou vendo é a realidade. E como eu não sou estúpido, sei que aquilo que estou vendo não é a realidade, e nem tem que ser – é o cinema.

Acho que o artista tem que estar conectado com a sociedade, com aquilo que são as preocupações de outras pessoas, que ultrapasse seu interesse pessoal. E depois eu acho que só se pode responder fazendo.

Por exemplo: penso que o caminho político seguido por Portugal nos últimos anos estava completamente errado, não deu qualquer resultado, e fez com que a vida de toda gente fosse muito mais dura, mas eu também não sei qual é o bom caminho. Se eu soubesse, estava concorrendo para deputado, mas não sei, então o que posso fazer?

Como diretor, posso filmar, inventar personagens, contar histórias, dar voz a pessoas que normalmente não aparecem muito nas mídias, e também fazer histórias com camelos, com baleias que explodem… Ou seja, tentar fixar um imaginário que eu sinto que existe, tentar colocar tudo no filme e depois mostrá-lo. Esse é o máximo que eu posso fazer.

Agora, há poucas semanas, teve eleição em Portugal, e ganhou aquele mesmo governo que nós tínhamos anteriormente. Parece-me trágico, mas são as regras da democracia. Pelo visto eles conseguiram convencer muita gente de que esse caminho católico, de sacrifícios, e essa caminhada para a cruz ia dar em ressurreição; eu não acredito. Mas a minha única possibilidade é fazer filmes.

 

Cena de As Mil e Uma Noites – Volume 3, o Encantado

 

CF: Uma característica presente pelo menos em todos os seus longas-metragens é a metamorfose dos filmes no meio deles. Você acha que isso tem a ver com a sua visão de cinema e com o seu processo de criação?

MG: Sim, e provavelmente também com a minha personalidade, com a minha maneira de ser. Se calhar eu sou inquieto, como o título do primeiro volume de As Mil e Uma Noites, e então gosto muito quando as coisas se transformam e gosto menos quando as coisas se fixam.

Eu estava pensando: acho As Mil e Uma Noites o meu filme tropicalista. O tropicalismo, musicalmente, é uma bagunçada que eu acho vital, que era urgente, e que me causa um prazer enorme. Se um piano tem muitas teclas, ficar tocando sempre a mesma é algo que me aborrece, que me deixa chateado, embora haja quem goste e que faça isso muito bem.

Eu tenho sempre que mudar, e para mim o mais gratificante é quando as coisas se transformam, quando o primeiro-ministro dá lugar a um galo que fala. Enfim, esse desenho que vai sendo feito ao longo do filme é para mim uma coisa muito importante e tem muito a ver com a minha maneira de ser, com o fato de não querer me fixar em nada.

 

CF: Já que você falou sobre tropicalismo, As Mil e Uma Noites tem uma presença forte da música brasileira no filme, e a cena que eu mais gostei desse uso é aquela do terceiro volume que tem o Samba da Minha Terra tocado pelos Novos Baianos…

MG: Fico contente de ouvir isto, porque está é a minha cena favorita das mais de seis horas de filme, mas é a primeira vez que alguém me fala sobre ela. Normalmente as pessoas ficam um bocado desconfiadas ao ver aquilo, não sabem de onde ela vem, mas para mim era muito importante.

Primeiro porque eu acho que, apesar de eu ter dito que o cinema não é a vida, o cinema tem que ser permeável à vida. E nessa altura nós estávamos escutando Novos Baianos para c…, estávamos completamente fascinados. Há um lado de prazer dos Novos Baianos, um prazer sensual e muito terreno, que para nós fazia sentido surgir no episodio da Xerazade, porque queríamos que este episódio confrontasse o mito literário com a experiência terrena.

A Xerazade iria ficar bêbada, transar com um garoto chamado Paddleman, cair no chão, encontrar o Elvis, e para mim era importante essa ideia de felicidade na Terra transmitida pelos Novos Baianos.

O terceiro volume passa a ser menos sobre a Xerazade e mais sobre o que havia naquele entorno. É um filme sobre comunidades, então eu tinha a ideia de que deveria ter lugar ali para uma comunidade hippie/utópica, que surge com aquelas imagens da banda, de maneira abrupta.

 

CF: Você acha que o seu filme foge da noção tradicional de filmes de episódios? Não há uma necessidade clara de ver os volumes na ordem…

MG: Desenhei o filme a partir dessa sequência na montagem, mas para mim está ótimo se alguém vir de outra maneira. Eu gosto quando as coisas me escapam do controle, então isso me parece perfeito. Eu até queria que o DVD tivesse a opção shuffle, que você pudesse ir trocando de episódios do Volume 1, para outro do Volume 3, e depois mais um do Volume 2, mas isso não caberia nos discos.

Temos que regressar à ideia do livro (As Mil e Uma Noites), que é uma coletânea de contos, mas que lendo o conjunto desses contos temos uma sensação de labirinto, com temas que se repetem, que variam. Eu nunca li o livro inteiro, acho que só o (escritor argentino Jorge Luis) Borges, que era um bocado maluco, que leu.

Eu sou mais normal, não li tudo, mas achei que o filme devia fazer essas rimas todas e ir mudando, como por exemplo no uso da música Perfídia, que aparece em vários momentos, mas com versões diferentes. É um jogo entre conjunto e fragmento, e eu achei que a diversidade seria a riqueza do filme: quanto mais registros, quanto mais histórias pudesse haver, quanto mais histórias dentro de cada história, melhor seria. Pensei menos em cinema de episódios e mais no livro.

 

CF: Gostaria que você comentasse de onde veio a ideia de se inserir novamente como personagem de seu filme, assim como tinha feito em Aquele Querido Mês de Agosto. Até que ponto há uma preocupação em não ter uma atitude personalista, em não chamar mais atenção para você do que para o filme?

MG: Acho que não tenho isso, porque se não teria invertido tudo: em vez de aparecer três minutos em um filme de seis horas e 20 minutos, eu teria feito três minutos sem mim e seis horas comigo (risos).

É verdade que os espectadores foram me conhecendo, também por causa do Aquele Querido Mês de Agosto, e eu não sei se dei demasiado peso a essa minha presença no filme. Já senti várias vezes que o pessoal fica meio desconfiado, que pensam: “será que esse gajo é um vaidoso?”.

Acho que não sou muito vaidoso, mas senti que essa ideia de colocar o diretor fugindo para poder passar a bola para a Xerazade era importante, porque podia fazer uma espécie de manual de instruções do filme, logo no inicio. É para isso que a cena está lá.

Aquele prólogo tem três segmentos: o diretor que não consegue fazer filmes; os trabalhadores despedidos que não conseguem trabalhar; e o homem que luta contra vespas, que para mim é quase alguém que faz parte de um filme do John Carpenter, que tem um ar de imaginário selvagem e apocalíptico.

Eu queria que houvesse alguma ligação, mas também uma espécie de curto-circuito entre os segmentos. Habitualmente, quando temos cada um desses registros, eles não estão juntos, e muito menos estão com as vozes de um entrando nos outros, a contaminá-los. Foi por isso que eu quis ter esse registro de farsa comigo como diretor, mas, tal como no Aquele Querido Mês de Agosto, ele surgiu de uma situação prática.

Era um dia em que iríamos filmar trabalhadores do estaleiro, não obtivemos autorização e estávamos lá, eu e toda a equipe, no hotel. Foi assim que surgiu a cena, e a voz off foi inventada mais tarde.

 

CF: Passou pela sua cabeça dar continuidade nos outros volumes a essa cena do prólogo em que o diretor aparece?

MG: Quando estávamos filmando o segmento do Banho dos Magníficos tem a cena da passagem de ano, com os fogos, e ali fizemos um plano de mais de 12 minutos em que se via toda a equipe, mas depois achei que não era bom ter isso no filme.

Eu acabo por aparecer no terceiro volume vestido à la Ney Matogrosso, porque vi aquela roupa incrível e decidi que iria dirigir aquela cena como se estivesse na Bagdá de As Mil e Uma Noites.

Há outras duas razões para essa cena: uma é porque o filme é dedicado a minha filha, e naquela cena há uma conversa entre pai e filha; e outra porque a Xerazade está vivendo naquele momento exatamente aquilo que o diretor passou, ou seja, está quase desistindo de continuar a contar e também está em fuga, à maneira dela, e é o pai que diz para ela voltar para o palácio.

Quando ela está tomando essa decisão eu também apareço. Isso não é muito importante, mas tivemos essa ideia, quando começamos a montar, de que o diretor do primeiro volume, que agora aparece vestido de Ney Matogrosso, está dependendo também daquela decisão da Xerazade: se ela desistir mesmo de contar as histórias, ele também perde a cabeça.

 

Saiba mais: 

>>> Leia entrevista com a atriz Joana de Verona, que trabalha em As Mil e Uma Noites

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