Antes de ser exibido na competição oficial do 50º Festival de Brasília, o documentário Por Trás da Linha de Escudos, do pernambucano Marcelo Pedroso, fará sua estreia mundial no VIII CachoeiraDoc – Festival de Documentários de Cachoeira. A opção por quebrar seu ineditismo antes do mais longevo festival nacional dá uma amostra do prestígio que o evento baiano adquiriu junto a muitos realizadores no seu curto período de existência.
“Me parece que [a escolha de Pedroso] significa que o CachoeiraDoc é, hoje, um lugar de produção de pensamento que cerca os filmes que aqui chegam e aparecem de reflexão, de intensidades e forças. E isso é o que se constitui como o grande ‘capital’ de um espaço de encontro e troca que deve ser um festival”, opina Amaranta Cesar, idealizadora e curadora do CachoeiraDoc, cuja oitava edição acontece de 5 a 10 de setembro na cidade de Cachoeira, situada a cerca de 110km de Salvador, no Recôncavo Baiano.
A edição deste ano, que terá cobertura in loco do Cine Festivais, vai exibir 65 filmes, entre curtas, médias e longas-metragens. Além do trabalho de Pedroso, que documenta o cotidiano do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco, outros quatro longas são inéditos: Escolas em Luta (SP, 2017, 77 min.), de Eduardo Consonni, Rodrigo T. Marques e Tiago Tambelli, que também está na programação do Festival de Brasília; Em Nome da América (PE, 2017, 96 min.), de Fernando Weller; Onde Começa um Rio (PE, 2017, 75 min.), de Julia Karam, Maiara Mascarenhas, Maria Cardozo e Pedro Severien; e Quilombo Rio dos Macacos (BA, 2017, 120 min.), do cineasta baiano Josias Pires, que abre o festival, no dia 5 de setembro, às 19h30, no Cine Theatro Cachoeirano.
Apesar de ser um festival com foco em filmes brasileiros, o VIII CachoeiraDoc vai se abrir também a documentários internacionais, contemporâneos e históricos, que dividem a tela com trabalhos nacionais nas mostras Cinemas de Lutas (Corpos em Lutas, Memórias de Lutas e Sessões Especiais). As seções Corpos em Lutas e Memórias de Lutas tiveram a curadoria da renomada pesquisadora francesa Nicole Brenez, de Amaranta Cesar e do crítico de cinema Victor Guimarães (MG), e trazem subsídio para reflexões sobre os cinemas militante e engajado no passado e no Brasil atual.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Amaranta Cesar discorreu sobre algumas questões ligadas à curadoria do CachoeiraDoc.
Cine Festivais: Até pela falta de um arcabouço teórico sobre o tema, a curadoria em festivais de cinema acaba sendo refletida a partir de experiências empíricas. Ao longo dessa trajetória de oito anos do CachoeiraDoc, houve um aumento significativo na produção de filmes brasileiros devido a diversos motivos, como o aprimoramento e a regularidade de políticas públicas de fomento e financiamento, a popularização do acesso à tecnologia e a democratização dos cursos de formação. De que modo a curadoria ressignificou ano a ano seus parâmetros a partir do encontro com o crescente número de filmes inscritos?
Amaranta Cesar: De modo privilegiado, a atividade de seleção e curadoria de um festival de cinema nos possibilita observar e acompanhar não apenas as tendências contemporâneas, os rumos reconhecidos e legitimados criticamente, os filmes e realizadores que vão sendo inscritos na história do cinema brasileiro, mas também aqueles que sobram, que passam a constituir os resíduos dessa história.
Nesse sentido, desde 2013 venho observando o crescimento vertiginoso de uma produção frequentemente ignorada pelos circuitos de difusão do País: os filmes ditos militantes, ou seja, filmes de grupos minoritários comprometidos com a reversão de injustiças e opressões estruturais, produzidos em aliança ou no seio de movimentos sociais. A presença desses objetos audiovisuais de natureza militante na vida social brasileira tem sido intensa, múltipla e vasta, mas sua penetração no campo cinematográfico brasileiro – inclusive no campo dos estudos e pesquisas – ainda permanece discreta – cenário que o recente golpe jurídico-parlamentar parece já ser capaz de alterar.
Do ponto de vista formal, esses filmes retomam uma relação com as imagens há muito posta em crise: a crença das imagens pela sua dimensão referencial. Mas essa retomada do caráter indicial das imagens aparece em articulação com a vontade de fazê-las atuarem no mundo de forma ativa ou, dito de outro modo, articula-se com a sua dimensão performativa. Essa articulação nos demanda um entendimento da imagem como acontecimento, e isso me fez rever parâmetros críticos, sim. No lugar de pensar nos filmes apenas como obras, estou propondo pensá-los também como gestos, iniciativas, atos. Ou seja, pensá-los em sua dimensão fenomenológica, o que implica em considerar os filmes em sua conexão com a vida, com o extra-campo cinematográfico.
Agir curatorialmente desse modo, a partir desse conceito, tem nos levado a olhar de modo renovado para os filmes das minorias, dos outros sujeitos históricos que agora estão a filmar (mulheres, negros, índios, minorias sexuais, etc.), subvertendo parâmetros universalizantes, tentando descolonizar um pouco o nosso olhar.
Já ouvi algumas vezes cineastas citando o CachoeiraDoc quando a pergunta é sobre os festivais que mais admiram. Neste ano, o novo filme de Marcelo Pedroso terá estreia mundial em Cachoeira antes de seguir para a competição de Brasília, o que subverte uma lógica corrente que resguarda o ineditismo aos chamados “grandes festivais”. Esta aproximação efetiva com cineastas, mesmo sem poder oferecer grandes prêmios em dinheiro ou prestígio midiático, representa o que para você como curadora do festival?
Representa muito, muitíssimo! Significa que estamos alcançando aquilo que de mais profundo poderíamos alcançar, que é a relação de parceria com realizadores. E que estamos fazendo nosso papel de mediação entre as obras e o público de modo firme e reflexivo. Me parece que significa que o CachoeiraDoc é, hoje, um lugar de produção de pensamento que cerca os filmes que aqui chegam e aparecem de reflexão, de intensidades e forças. E isso é o que se constitui como o grande “capital” de um espaço de encontro e troca que deve ser um festival.
É preciso dizer ainda que Marcelo Pedroso participa do CachoeiraDoc desde a sua primeira edição, em 2010. Ele foi um dos primeiros realizadores a vir a Cachoeira e participar ativamente dos debates em torno dos filmes, numa época em que o festival era absolutamente desconhecido e feito na guerrilha. De alguma maneira, Pedroso foi uma das pessoas essenciais na construção desse lugar de pensamento e debate que o festival se tornou. Quando ele decide exibir o filme dele aqui, em pré-estreia mundial, esse é um gesto de muita generosidade com o festival, e, ao mesmo tempo, um gesto muito político, absolutamente coerente com a sua notável trajetória no cinema brasileiro. Me parece ser de sua natureza contrariar o fluxo habitual das coisas, subverter as lógicas – o que o torna alguém admirável e raro. E isso está refletido em seus filmes, tanto quanto em seus posicionamentos como realizador.
Sendo o CachoeiraDoc um festival contra-hegemônico, tanto em termos orçamentários quanto de localização e de opções curatoriais, qual é o sentido de promover mostras competitivas? De onde vem essa demanda pela competição (de cineastas, do público, da curadoria)?
A ideia de competição nos parece bastante obsoleta. Há muito debatemos a necessidade de abolir a mostra competitiva – como fez o Forumdoc.bh, nossa grande referência em termos de festival. Mas a dificuldade na lida com alguns filmes nos fez manter o formato até então. Há uma parcela importante de realizadores que questiona a competição – o próprio Marcelo Pedroso, por exemplo, que esteve envolvido naquele belo episódio em Brasília quando realizadores competindo decidiram dividir o prêmio em dinheiro, antes do anúncio dos premiados. Mas há ainda aqueles que não valorizam uma mostra que não tenha premiação e que tornam a exibição de seus filmes fora de uma mostra competitiva difícil, quando não impossível.
Além disso, me parece que a ideia de premiação ainda é importante para que se perceba os padrões críticos em voga, e para que se possa interferir no surgimento de novos modos de legitimar os filmes. Por exemplo, quando a comissão julgadora do Festival de Brasília, em 2016, não premia um filme como Martírio, absolutamente singular e de relevância rara, um debate importante surge – e não apenas por conta dos valores de dinheiro em jogo, mas por conta mesmo de uma disputa sobre o cinema do nosso tempo, o cinema que a gente precisa legitimar, sobre aquilo que queremos se projete no futuro.
Para concluir a ilustração, vou citar outro episódio, mais perto de mim, que vai na contramão do que aconteceu em Brasília: no CachoeiraDoc de 2015, a comissão julgadora dividiu o prêmio de longa-metragem (que aqui envolve pouquíssimo dinheiro) entre Ressurgentes, de Dácia Ibiapina, e Retratos de identificação, de Anita Leandro, dois filmes que tiveram certa dificuldade em suas carreiras pelos festivais nacionais, a despeito da grande importância de ambos. Foram pouco premiados e normalmente exibidos fora de mostras competitivas. No entanto, são dois filmes que fazem fortes e absolutamente coerentes opções de linguagem. Naquela época, por sua vez, essas escolhas formais não eram reconhecidas em sua invenção – por falta mesmo de um aparato crítico capaz de dar conta do que os filmes estavam propondo. Então, nesse sentido, me parece que premiá-los constitui-se como um discurso crítico importante, que ressignifica os filmes para/na história.
O que quero dizer é que, assim como a curadoria é uma elaboração crítica, a premiação também é, em certo sentido. De todo modo, é preciso questionar a ideia de mostra competitiva e ressignificar os termos das premiações.
Falando sobre filmes feitos por/sobre/com indígenas, nota-se na seleção do CachoeiraDoc uma atenção a esses trabalhos, que, tirando fenômenos (como Martírio), circulam pouco por outros eventos. Como você, que vem acompanhando regularmente essa produção, avalia o crescimento (numérico, estético) desse tipo de obra? Como esses filmes, postos lado a lado com outras produções, tensionam a perspectiva curatorial e o olhar do público?
É notável o crescimento e diversificação estética da produção indígena. O trabalho pioneiro que o Vídeo nas Aldeias tem feito há 30 anos vem tendo belos desdobramentos. Hoje, notamos cineastas com sólidas trajetórias, como Divino Tserewawu (Xavante), Takumã Kuikuro (Kuikuro), Patrícia Ferreira e Ariel Ortega (Mbya Guarani). Além disso, outros projetos de oficinas e formação em cinema vão surgindo. Então, novos cineastas, que não foram formados pelo VNA, estão aparecendo com muita força: Alberto Alvares, Sueli Maxacali e Isael Maxacali, por exemplo.
Tudo isso nos conduz a uma diversidade formal dentro do próprio cinema indígena, que nos instiga sempre a ver o cinema e o mundo para além das premissas coloniais e ocidentais. Mas a produção indígena é tão rica que eu nem acho que é preciso alterar a perspectiva curatorial corrente para abrigá-la: que esses filmes não circulem nos festivais é, a meu ver, fruto de grande desconhecimento em relação a essa cinematografia. Em todas as edições do CachoeiraDoc, os filmes indígenas são premiados. Isso é um dado revelador de suas forças e das relações intensas que estabelecem com o público.
Sobre as mostras Cinemas de Lutas, que terão sessões curadas por Nicole Brenez, Victor Guimarães e você, gostaria de saber:
– Quais seriam as diferenças primordiais (se é que existem) entre os cinemas militante, engajado e panfletário?
A própria Nicole Brenez já definiu essa diferença, que existe, efetivamente. Em seus termos, o cinema militante se inscreve em um quadro prático definido, uma causa pré-existente e tem um corpo de doutrina precisa. Tem um mesmo enquadramento do filme de propaganda, mas sua diferença em relação a este último é que o cinema militante tem uma causa emancipadora.
Já o cinema engajado está a serviço de uma causa, mas não se inscreve em um quadro institucional preciso, não obedece a uma plataforma político-ideológica pré-existentes, é indisciplinado. Esta é a maneira como Nicole Brenez tem feito esta definição, com a qual eu concordo absolutamente.
Agora, do modo como eu entendo, o panfleto é um sub-gênero, digamos assim, do cinema militante e/ou engajado, que visa formular uma contra-informação e liberar energias de luta. Now!, de Santiago Álvarez, que será exibido na mostra, é exemplar.
“Panfletário”, por sua vez, é um adjetivo, com inflexão pejorativa que demonstra justamente o preconceito crítico em relação a esses filmes de intervenção social. Não há nada que possa ser vinculado ao filme-panfleto ou filme de panfleto como intrinsecamente desqualificado. Seria a necessidade de comunicação ou de sedução ideológica necessariamente algo a ser combatido? Por quê? Acho que a crítica/pesquisa cinematográfica, de uma maneira geral, precisa se confrontar a esse tipo de questão, para superar uma maneira de olhar os filmes que já não condiz com os fenômenos que estamos a testemunhar.
– Por que os filmes escolhidos para a mostra Cinemas de Lutas explicitam essa complexidade formal quase sempre ignorada?
Justamente porque evidenciam, através da criativa montagem dos programas, que a invenção formal e a atuação social e política do cinema são indissociáveis.
– Por que abrir a seleção para filmes de outros países e como a presença deles enriquecem as reflexões acerca do nosso cinema militante?
Porque revela-se com essa montagem de tempos e espaços distintos a diversidade dessa potência formal que tem sido mal compreendida. Nesse sentido, as experiências espalhadas pelas geografias e épocas diversas nos ajudam a elaborar criticamente um olhar para o que acontece na contemporaneidade brasileira. E digo isso não apenas do ponto de vista cinematográfico, mas também político-social. Quer dizer, ao revelar as formas cinematográficas que tomaram as lutas de outros povos, é possível refletir, com os filmes, sobre as lutas que estamos precisando encampar.
Leia também:
>>> “Os festivais ainda olham pouco para a produção dos novos sujeitos históricos”
>>> “O curioso caso do cinema”: a crítica, os festivais e os modos de representação