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A fúria dos que não foram: Davi Pretto fala sobre o filme Rifle

24/09/16 às 11:59 Atualizado em 10/10/19 as 01:12
A fúria dos que não foram: Davi Pretto fala sobre o filme Rifle

No Rio Grande do Sul filmado pelo diretor Davi Pretto em Rifle, permanecer no campo é um ato de resistência. Não bastasse o êxodo que atraiu a maioria dos moradores para as cidades, a invasão persiste na tentativa dos grandes agricultores de adquirirem pequenas propriedades e mecanizarem toda a produção.

Realizado com atores não profissionais encontrados na mesma área em que foram realizadas as filmagens, o segundo longa de Pretto tem seu protagonista, Dione, como símbolo de um descontentamento que vai resultar em tiros, vidros quebrados e muita fúria, em uma obra que estabelece ligação com os faroestes e seus costumeiros tipos calados e com passados nebulosos.

Após a primeira exibição de Rifle, ocorrida na competição do 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o diretor Davi Pretto conversou com o Cine Festivais sobre este trabalho.

 

Cine Festivais: A construção visual do filme contrasta o marrom da terra em que se cria gado com o verde das plantações de soja que tomam os lugares das pequenas propriedades rurais. Gostaria que você falasse sobre essa concepção, visto que o trabalho inverte uma lógica comumente associada a terra está historicamente associada ao sertão e a uma necessidade de êxodo.

Davi Pretto: O êxodo era uma alternativa nos anos 60 e 70. Quando começamos a visitar os locais em que o filme se passa nos demos conta de que falaríamos de um estágio pós-êxodo. As pessoas já saíram desses locais, restaram apenas algumas, que mantêm uma resistência. Quem vai de lá para a cidade acaba morando nas periferias. Há uma derrota desse progresso associado às cidades. Ficar, na verdade, é uma das poucas saídas, e é um pouco disso que o filme fala.

O progresso da cidade invade e esvazia o campo graças à mecanização, já que um trator com um funcionário faz o trabalho de dezenas. As dificuldades não são apenas o acesso à internet, telefone, luz, água; essas pessoas não têm mais renda, e a terra vai ficando cada vez mais uma produção única de soja e arroz.

 

CF: O filme ganha um forte senso de opressão à medida que o protagonista se aproxima da cidade…

DP: Já nas filmagens, e depois na correção de cor, a gente tinha a ideia de que a cidade tinha que ser cinza, dessaturada, transmitindo uma ideia de desolação, enquanto que o campo ainda carrega alguma cor, mesmo que seja bege, amarelo queimado, verde musgo. No som havia uma questão semelhante com relação a essa mudança para a cidade. Ouvimos o tempo todo os sons dos carros nas cenas no campo, e quando chega a parte da cidade decidimos baixar um pouco esse ruído dos carros e colocar outros ruídos urbanos, como o de TVs ligadas, músicas, igrejas, gritos, e esse bafo é muito mais opressor do que só o trânsito. Foi um trabalho não realista, que tinha essa ideia de gerar desconforto na chegada à cidade.

 

CF: Falando em realismo, o filme tem momentos em que a fantasia invade o real, sem nunca se estabelecer muito claramente quais são os polos dessa divisão tênue. Como você tentou retratar essa questão?   

DP: Isso vem muito de algumas coisas que eu já explorei no Castanha, meu filme anterior, que tem várias sequências fantásticas, que fogem do real. Em Rifle acho que a curva para a fantasia é mais clara. Tem um momento de ruptura, que eu acho que é a cena que mostra um carro pegando fogo, mas a ideia era que o personagem fosse se transformando progressivamente nesse sentido até a cena em que entrega o rifle, que para nós é o ponto em que o filme volta gradativamente para a realidade. Como o filme passa muito pelo olhar desse personagem, assim como no meu longa anterior, acho que esse tratamento do fantástico é uma coisa natural.

 

CF: E sobre a questão do hibridismo entre o documentário e ficção, que em Rifle aparece sobretudo pela escolha de uma família habitante dos locais de filmagem para o trabalho?

DP: Eu me interesso pela mistura. Meus dois longas falam sobre misturas, do real com a ficção, da fantasia com essa ideia de ficção real, e isso está muito ligado com o meu processo de produção. O que tenho claro é que sempre quero investigar uma outra coisa, sem me repetir. Embora tenha pontos de conexão com o Castanha, o Rifle me instigou por partir de um outro método.

 

CF: O filme partiu de um roteiro ficcional antes de encontrar os atores e as locações e ser realizado. O que sobrou daquela ideia inicial?  

DP: O desenho do arco dramático do protagonista é basicamente o mesmo. O percurso que ele toma, a ruptura do real e da fantasia, várias coisas dos diálogos, tudo isso estava lá. Quando encontramos os atores, o processo foi a tentativa de encontrar pontos de conexão naturais entre a realidade deles e a história do filme.

Fiquei vivendo na casa dos atores durante a pesquisa para o filme, e nessa convivência vi que diálogos e ações poderiam ser adaptados. Eu tinha ideias novas e trazia elas para o Richard (Tavares, corroteirista), e nisso fomos reescrevendo o roteiro, em um processo longo, já que foram cerca de cinco anos do início do projeto até as filmagens.

Nesse período alguns personagens foram surgindo, como o do andarilho com problemas mentais que vaga pela estrada, que é baseado em alguém que eu conheci. Muito do que já estava escrito, como o personagem que rouba gado, era muito próximo da experiência daquelas pessoas, que já tinham ouvido histórias sobre isso.

O processo fazia muito sentido para mim como método. Me interessava poder conversar com essas pessoas que viveram coisas relativamente parecidas com os personagens do filme e ver como podia agregar esta bagagem deles ao filme. É um tipo de método de atuação que me interessa.

 

*O repórter viajou a convite do 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

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