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“Não é uma pretensão, é uma necessidade de correr contra o tempo”

18/02/19 às 12:47 Atualizado em 20/10/19 as 19:20
“Não é uma pretensão, é uma necessidade de correr contra o tempo”

Nesta quinta (21), Tea for Two se tornará o primeiro filme brasileiro dirigido por uma pessoa trans a ser lançado no circuito comercial. O curta-metragem da cineasta Julia Katharine, que também assina o roteiro e interpreta uma das personagens, será exibido em sessões conjuntas com o longa Lembro Mais dos Corvos, dirigido por Gustavo Vinagre e protagonizado por Julia.

Pela atuação nesta obra, Julia recebeu na Mostra de Tiradentes de 2018 o troféu Helena Ignez, dedicado a mulheres atuantes em quaisquer funções criativas. Já na edição deste ano do evento mineiro, no último mês de janeiro, o curta dirigido por Julia esteve presente na Mostra Foco, seção competitiva de curtas-metragens.

Tea for Two acompanha uma noite na vida de Silvia (Gilda Nomacce), uma cineasta de meia idade em crise com sua vida. Ela é surpreendida pela visita da ex-esposa (Amanda Lyra), que a largou há alguns anos, e conhece uma outra mulher que a fascina (Julia Katharine).

Em 2019, Julia irá atuar em dois curtas de Gustavo Vinagre e pretende filmar o seu primeiro longa-metragem como diretora. O título provisório é A Família Valente, uma história sobre uma família de atores.

“Não é uma pretensão, é uma necessidade de correr contra o tempo. Eu poderia fazer outros curtas-metragens para apurar mais o meu trabalho como diretora, mas com 40 anos eu fico pensando ‘cara, eu não quero dirigir o meu primeiro longa daqui a 10 anos, 15 anos…’ E eu nem sei se estarei viva até lá, porque no mundo em que a gente vive hoje eu posso entrar dentro do metrô e tomar uma facada sem ver de quem, porque os crimes de ódio estão aí, a gente tá vendo todos os dias mulheres trans e travestis sendo assassinadas”, diz Julia, que conversou com o Cine Festivais durante a 22ª Mostra de Tiradentes.

 

Cine Festivais: Em entrevistas, e também no Lembro Mais dos Corvos, você costuma falar da sua cinefilia. Queria saber quando foi que essa relação cinéfila gerou em você esse desejo específico de dirigir filmes.

Julia Katharine: Eu descobri o cinema muito cedo. Me recordo que com 10 pra 11 anos comecei a assistir filmes. Via muito a Sessão da Tarde, alugava coisas na locadora. Na adolescência fui me interessando mais por cinema e comecei a consumir revistas, livros… Todo tipo de material que eu encontrava sobre o assunto me interessava. Depois comecei a trabalhar numa videolocadora…

Acho que comecei a sentir que eu gostaria de trabalhar com cinema nessa fase, na adolescência. Mas era o que eu falo no filme (Lembro Mais dos Corvos): pra mim parecia só um sonho, e nunca algo que eu pudesse conquistar, pudesse fazer, porque as pessoas sempre colocavam o fato de eu ser uma mulher trans como um empecilho. Uma coisa: “ah, isso te impossibilita de tudo: de ser atriz, de ser roteirista, de ser diretora. O cinema não tem espaço para pessoas como você.” Isso era algo que eu escutava muito.

E na época eu lia a Revista Set, lia a Cinemin, essas coisas todas, e nunca via mulheres trans diretoras, atrizes, diretoras de fotografia ou coisas semelhantes. Havia casos muito pontuais, da Roberta Close fazendo filme com o Ivan Cardoso, da Rogéria fazendo A Maldição do Sanpaku, do (José) Joffily. Então havia desde cedo essa minha vontade, mas ela só se tornou uma coisa real quando Gustavo (Vinagre) e eu nos encontramos. Ele me possibilitou realizar esse sonho, e desde então tem sido muito incrível.

 

Tea for Two retrata a relação de duas mulheres cis lésbicas, mas você contou que na versão inicial do roteiro o casal seria formado por um homem e por uma mulher cis. Pensando um pouco nisso do que você disse a respeito das referências vistas na mídia e em tela, queria saber se você acha que essa escolha inicial de roteiro talvez tenha passado um pouco pelo fato de ser tão incomum a existência de personagens que não sejam heteronormativas?

Acho que sim. Eu me recordo que sempre sentia falta de ver romances, comédias românticas, histórias em que houvesse uma relação de um homem cis com uma mulher trans. Sempre me preocupei muito com isso, sempre foi uma questão pra mim. E na minha vida pessoal eu nunca pude ter relacionamentos que não fossem secretos. Sempre tive que vivenciar relações muito complicadas porque os homens tinham medo de assumir o fato de que se relacionavam com uma mulher trans, por questão de preconceito e “n” coisas.

E aí era isso: queria contar uma história que pudesse começar esse trabalho de naturalização da mulher trans como uma pessoa comum. Eu não vejo diferença entre mim e uma mulher cis. A não ser a questão da genitália, que pra mim não é uma questão. Eu me sinto tão mulher quanto uma mulher cis. Então o Tea for Two nasceu da vontade de contar essas histórias. E ao longo do processo ele foi se transformando em outro filme, que também acho muito interessante.

 

Por que a tentativa de realizar o filme a partir do primeiro roteiro não deu certo? Como que foi esse processo de fazer essa alteração de rumo em um momento tão próximo da filmagem, e o que você acha que isso agregou ao resultado?

A primeira versão do roteiro tinha um casal cis hétero, com a minha personagem sendo a terceira pessoa que entra nessa relação. Eu tinha um elenco definido, houve alguns problemas e eu não pude tê-lo comigo no filme. Havia um protagonista masculino, que se chamava Jairo, e não Silvia, e o ator que iria interpretá-lo é alguém por quem eu tenho muito carinho, lamentei muito quando não pude trabalhar com ele nesse filme. Chegaram a me apresentar outras opções de atores, nomes até mais famosos, mas eu não tinha interesse: para mim o Jairo era aquele ator, e nenhum outro. Eu poderia ter mantido a primeira versão do roteiro e ter escolhido outro ator, mas foi uma opção minha transformar o filme numa outra coisa, agora com uma protagonista mulher.

Estava num momento frágil, muito insegura com várias questões, e aí recorri à minha fada madrinha, que é Gilda Nomacce, e ela topou de imediato fazer o filme. A gente teve muito pouco tempo para a preparação, não houve muitos ensaios, e ela fez um trabalho lindíssimo. Sem essa ajuda eu não teria conseguido levar o filme adiante; eu precisava de alguém com que eu pudesse ter intimidade, para que o set fluísse de uma maneira melhor e mais segura para mim.

Quando o protagonista deixou de ser um homem cis e se tornou uma mulher cis houve pouquíssimas mudanças, praticamente só mudei o nome, o gênero e uma ou outra situação. E foi tudo muito corrido, feito num espaço de uma semana, tudo bem difícil… mas eu tô muito feliz com o resultado, tenho muito orgulho do filme.

Acho que a mudança me trouxe coisas muito positivas. Eu entendi muito mais a relação entre duas mulheres, me conheci muito e descobri várias coisas a respeito de mim. Acho que eu consegui uma abertura, sabe? Hoje penso que talvez um dia – por que não? – eu me relacione com uma mulher cis, por exemplo. Acho que ampliei o meu olhar. E foi muito bonito porque a diretora de fotografia do filme, a Cris Lyra, e toda a equipe técnica era repleta de sapatões, de mulheres lésbicas, e era muito divertido. Aprendi muito com elas e sinto que era importante também contar uma história em que houvesse esse universo feminino tão forte, como protagonista.

 

No Lembro Mais dos Corvos você apontava um desejo de dirigir uma comédia romântica, e o Tea for Two acabou tendo outro tom, mais próximo do melodrama. Como que foi o caminho para que isso viesse a acontecer?

Quando não pude mais ter o ator que queria e tive que optar por uma mudança, acho que meu estado de espírito influenciou muito na escrita. Então eu projetei no roteiro da segunda versão todo aquele melodrama que estava vivendo. Filmando o Tea for Two eu entendi que me sinto muito mais próxima do melodrama do que da comédia romântica, mas ainda não abandonei esse projeto (de fazer uma comédia romântica), porque acho importante.

A gente tem uma filmografia essencialmente heteronormativa de comédias românticas no Brasil. Não se vê comédias românticas com dois homens, com duas mulheres… é muito raro. E eu acho importante a gente criar esse lugar, colocar essas pessoas LGBT dentro desse tipo de filme. Os filmes com personagens trans costumam ser muito tensos, dramáticos, violentos, e eu acho importante trazer leveza para esse universo.

 

Muito se discute sobre o que e como mostrar situações de violência no cinema, principalmente no retrato de grupos historicamente marginalizados. No Tea for Two você não mostra cenas de violência física, mas tem um momento em que o porteiro agride a sua personagem verbalmente, de maneira transfóbica. Há uma frontalidade naquele momento, e certamente essa é uma escolha pensada. Por que você achou importante que essa sequência estivesse no filme?

Era importante porque eu queria que as pessoas… não sei. Esse personagem não existia, né? E aí no processo da primeira versão eu incluí, coloquei essa cena de confrontamento, de preconceito, porque achava importante que eu pudesse mostrar minimamente a minha vivência, o que é o meu dia a dia, as coisas que se passam não só no meu universo, mas de todas as mulheres trans. Nós somos vítimas de abusos emocionais e sexuais constantemente… Mas eu também não queria que esse fosse o tema principal. Queria que fosse um filme sobre o encontro entre três pessoas vivendo questões muito distintas, e que naquela noite elas se encontrassem e de alguma forma se apaziguassem consigo mesmas.

Tem outro personagem que acho importante, que é o do irmão da Isabela. Optei por ser um irmão, e não um namorado, porque nós mulheres trans e travestis também fazemos parte de núcleos familiares. Sempre que se pensa numa mulher trans ou numa travesti se coloca um homem explorando ela financeiramente ou emocionalmente. Não se pensa nela como uma irmã, como uma mãe, como uma filha. Então isso pra mim foi importante. E voltando ao personagem do porteiro, que está na cena que você citou, ele é aquela pessoa violenta, agressiva… Assistindo ao filme aqui em Tiradentes eu li tão diferente o personagem. Pra mim ele representa todo esse universo bolsonarista, e fiquei muito feliz de tê-lo criado.

 

Mas como você lia este personagem anteriormente?

Eu lia ele como uma pessoa muito familiar, com a qual eu convivo desde sempre. Como quase todos os homens com quem eu cruzei na vida. E eu o lia como uma representação dessa sociedade heteronormativa, hipócrita, enfim. Mas que agora ganhou um nome, né? São os bolsonaristas. Pra mim, pelo menos, politicamente falando.

 

Você convive em São Paulo com um número grande de cineastas. Pensando no Tea for Two, acha que foi influenciada por eles de alguma maneira?

Os meninos com quem eu convivo, o Sergio Silva, o Gustavo Vinagre, o Caetano Gotardo, o João Marcos de Almeida, toda essa turma com a qual eu me relaciono, sempre me influenciaram muito no processo do filme. A maior influência era reproduzir os sets que eles têm, que são sempre muito calorosos, amorosos, leves, divertidos. Já na questão da narrativa eu não sei te dizer se houve ou não essa influência, porque eu sinto que nossos filmes são tão diferentes… O Tea for Two tem uma narrativa muito clássica, é um melodrama, e os filmes dos meninos são mais urbanos, modernos… Não sei. Sinto uma diferença.

 

Você citou no debate aqui em Tiradentes que depois que ganhou o Prêmio Helena Ignez, no festival do ano passado, pensou que haveria uma leva de convites para trabalhar como atriz, mas isso não aconteceu. Como você tem se preparado para realizar outros trabalhos?

Tenho muita vontade de fazer um curso de interpretação, mas não sinto que seja uma prioridade nesse momento. Acho que sou daquelas atrizes que aprende fazendo. Agora nos próximos meses vou filmar dois curtas com o Gustavo (Vinagre) e pretendo até o fim do ano filmar o meu longa, no qual acho que também vou trabalhar como atriz. Tenho sentido muita falta de atuar, mas entendo que faço parte de um grupo muito complicado de você colocar no cinema: sou uma mulher trans, tenho 40 anos e sou mestiça. Então passa por isso também. Não existem muitos papéis para pessoas asiáticas no cinema. No meu caso, eu sou ainda uma semi-asiática (risos), e aí é bem complicado me escalar para filmes, e tal. O que eu acho que tem que mudar, obviamente. As pessoas têm que se abrir mais a outras narrativas, a essa pluralidade de raças e gêneros, mas é um trabalho que tem que ser construído; não dá para estalar os dedos e acontecer.

 

Queria que você falasse sobre o projeto de longa que você pretende filmar este ano.

Eu sinto… Assim, não é uma pretensão, é uma necessidade de correr contra o tempo. Eu poderia fazer outros curtas-metragens para apurar mais o meu trabalho como diretora, mas com 40 anos eu fico pensando “cara, eu não quero dirigir o meu primeiro longa daqui a 10 anos, 15 anos…” E eu nem sei se estarei viva até lá, porque no mundo em que a gente vive hoje eu posso entrar dentro do metrô e tomar uma facada sem ver de quem, porque os crimes de ódio estão aí, a gente tá vendo todos os dias mulheres trans e travestis sendo assassinadas.

Então eu escrevi esse roteiro. O nome provisório do filme é A Família Valente, e ele é sobre uma família de atores. Ele tem a mesma estrutura do Lembro Mais dos Corvos, eu vejo como um melodrama, embora seja pontuado por momentos de humor. E é um filme essencialmente feminino. São seis mulheres em cena e dois homens, entre os personagens principais. Pretendo filmá-lo ainda este ano, tenho conversado muito com a Gilda (Nomacce) sobre isso. A intenção dela é coproduzir o filme. Eu estou muito ansiosa, é um filme que acho que vai ser bem bonito.

 

O projeto ganhou algum edital?

A gente ainda não inscreveu em nenhum edital, e eu tenho pensado muito em fazer esse filme na raça, contando com a ajuda de uma rede de amigos. Não sei como vai ficar essa questão dos editais agora nessa gestão Bolsonaro, e não quero contar com isso nem esperar que o governo dele caia para poder exercitar isso. Essa minha necessidade de fazer cinema é muito urgente… E eu não quero morrer sem ter feito pelo menos um longa-metragem.

 

*O repórter viajou a convite da organização do festival

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