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“O corpo relata e o relato cria corpo”: uma conversa sobre A Rosa Azul de Novalis

30/01/19 às 18:57 Atualizado em 20/10/19 as 19:42
“O corpo relata e o relato cria corpo”: uma conversa sobre A Rosa Azul de Novalis

Presente nas últimas duas edições da Mostra Aurora (seção competitiva da Mostra de Tiradentes para cineastas com até três longas-metragens) com os filmes Lembro Mais dos Corvos e A Rosa Azul de Novalis (este em direção conjunta com Rodrigo Carneiro, seu colaborador de longa data como montador), Gustavo Vinagre pensa que ambas são obras que têm como característica “naturalizar vozes que geralmente são vistas como diferentes”. Ele se refere a Julia Katharine e Marcelo Diorio, protagonistas dos respectivos filmes.

Se em Lembro Mais dos Corvos o único cenário era um apartamento em que Julia narrava e ficcionalizava as histórias de sua vida, em A Rosa Azul de Novalis a fabulação de Marcelo – um homem que vive relembrando o passado, até mesmo de outras encarnações, incluindo uma passagem como o poeta alemão Novalis – não é restrita ao campo das palavras, e invade também os cenários construídos pela direção de arte. “A gente precisava entrar na cabeça do Marcelo, e não apenas deixar o espectador ficar preenchendo esse papel. Acho que o filme ganha bastante com essa proposta de encenação”, aponta Rodrigo.

Depois de estrear em Tiradentes, A Rosa Azul de Novalis terá sua premiére internacional em fevereiro, no Festival de Berlim, dentro da seção Fórum, dedicada a filmes com proposta de experimentação de linguagem. Durante o festival mineiro, o Cine Festivais conversou com os diretores Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro.

 

Cine Festivais: Em uma cena do filme o Marcelo Diorio fala: “a voz me marginalizou”. A partir disso fiquei pensando em como a voz é um elemento importante, até mesmo central, nessa dupla de filmes (Lembro Mais dos Corvos e A Rosa Azul de Novalis). Enquanto no primeiro a voz da Julia Katharine evocava uma série de imagens a serem recriadas pelo espectador, neste segundo vocês propõem outro tipo de encenação e constroem outros ambientes através da direção de arte. Então minha primeira pergunta seria nesse sentido, de pensar na voz como elemento central dos filmes, e no trabalho que vocês fazem a partir delas.

Gustavo Vinagre: São duas vozes muito únicas, né? A própria Julia às vezes conta que está no metrô e que no momento em que fala as pessoas em volta reconhecem que ela é uma mulher trans e começam a olhar diferente. Acho que eu também passei por isso na minha infância toda, sofrendo bullying na escola, e também me incomodava bastante com a minha própria voz sempre que a escutava. Lembro que quando criança gravei minha voz num gravadorzinho, e era insuportável a ideia de voltar a ouvir essa gravação, era muito difícil isso.

Acho que esses dois filmes (Lembro Mais dos Corvos e A Rosa Azul de Novalis) têm isso em comum, de naturalizar vozes que geralmente são vistas como diferentes. E é muito engraçado que muita gente se incomoda até com questões quase físicas da voz. Já recebi criticas que a Julia tem a língua presa. Em algum nível acho que o Marcelo Diorio também tem, e acho que em algum outro filme meu também aparece um personagem com a língua presa. São vozes que não têm uma dicção perfeita, então é como se elas não devessem ser retratadas, como se o ator tivesse que articular muito bem todas as palavras.

É uma questão que realmente une esses dois filmes e que é bastante essencial, porque representa muitas outras coisas. Essas vozes, da Julia e do Marcelo, criam universos, e através da palavra a gente consegue corporificar essas memórias e dar vazão aos desejos, aos fetiches. Quando faço um documentário eu sempre penso nos sonhos, nos desejos, nos fetiches como material de arquivo pro filme, e tudo isso vêm através da voz. E a voz é corpo também, acho que faz muito sentido dentro desse recorte “Corpos Adiante” [temática da 22ª Mostra de Tiradentes]. A gente acaba esquecendo de que tá tudo no cérebro; a voz é corporal também, embora a gente não possa vê-la fisicamente. Então é meio que tudo isso. Acho que eu falo isso na entrevista do catálogo da mostra, que o corpo relata e o relato cria corpo nesses filmes.

E sobre a encenação eu acho que o Rodrigo (Carneiro) teve papel essencial nisso, de fazer a gente acreditar que podia corporificar essas imagens. A partir dessa capacidade incrível de fabulação do Marcelo, pensar em como também poderíamos trazer isso imageticamente, que era algo com o qual eu tinha vários freios por questões de produção. Por um costume de não ter dinheiro para fazer, de produzir sem editais, eu tô sempre determinando desde a escritura do roteiro como vai ser essa produção, preocupado com quanto vai custar cada coisa. E aqui, graças ao Rodrigo, nos sentimos mais livres para pensar nisso depois, e acho que a gente soube achar soluções para a produção. Embora ontem uma pessoa tenha vindo conversar com a gente e falou: “amei o filme, mas fiquei pensando: o que vocês não fariam com um bom orçamento” (risos) Eu pensei, “é um elogio, isso?” Mas enfim.. Isso é algo que instiga muito a gente. Ter essas limitações de produção acaba nos ajudando a pensar criativamente em outras soluções.

 

Queria também ouvir o Rodrigo sobre esse tema, pensando nessa proposta de encenação de A Rosa Azul de Novalis, e de como você compara o trabalho de montagem dele com o de Lembro Mais dos Corvos.

Rodrigo Carneiro: O Gustavo e eu estudamos em Cuba [na EICTV], e desde o primeiro filme dele trabalhamos juntos. Sempre foram processos em que estivemos muito próximos. O Gustavo é uma pessoa muito aberta, está sempre escutando toda a equipe, e essa abertura acrescenta muito ao trabalho dele. Tem uma coisa de saber colher essas sugestões, filtrá-las e usar a seu favor.

Em A Rosa Azul de Novalis a gente fez a direção em conjunto, e a princípio o filme seria um pouco como Lembro Mais dos Corvos, mais cru. Só que depois a gente foi se abrindo e vimos essa necessidade de fazer algo diferente. A gente precisava entrar na cabeça do Marcelo (Diorio), e não apenas deixar o espectador ficar preenchendo esse papel. Acho que o filme ganha bastante com essa proposta de encenação.

Qual era a outra pergunta?

 

Sobre as diferenças dos processos de montagem desses dois últimos filmes.

Rodrigo: Nesse filme a montagem já está mais dentro da mise-en-scène. A gente tem movimentos de câmera ali, tem um ritmo interno…

Gustavo: …já meio pré-definido. O Corvos… é mais desafiador, eu acho, nesse sentido da montagem.

Rodrigo: Neste (A Rosa Azul de Novalis) é mais como uma leitura do Eisenstein, da cena em si ter esse tempo. E no Corvos.. acho que era encontrar esse tempo, dar o ritmo, ao mesmo tempo respeitando o lugar de fala da Julia. Tinha essa coisa de impulsionar o filme para o lugar que ela estava nos levando.

 

Quando entrevistei você na época de Lembro Mais dos Corvos você disse que optou por colocar o relato sobre o abuso sofrido pela Julia logo nos primeiros minutos com o intuito de aquilo não ter uma centralidade na narrativa, permitindo que o filme tomasse outros caminhos. Acho que em A Rosa Azul de Novalis ocorre algo parecido quando ficamos sabendo com poucos minutos que o Marcelo Diorio é portador do vírus HIV. Você vê assim também?

Gustavo: Eu vejo assim mesmo. Acho que são dois temas, o abuso ou o HIV, que ainda são tabus e poucos falados. Então eu não queria que eles tivessem um caráter de revelação dentro do filme. Se você demora demais a entrar nesse assunto – se você está vendo o personagem falando há meia hora, e aí ele te conta que tem HIV -, vira meio que uma revelação.

Rodrigo: Parece que o filme está sendo conduzido para isso.

Gustavo: Exatamente. Cria uma outra dinâmica ali. Então pra mim era bem importante partir desses temas para depois ir para outros. Meio que para que esses assuntos não ganhassem esse status de revelação.

 

O Marcelo falou no debate que durante o processo do filme você queria que ele e a Julia não se vissem…

Gustavo: Ele que fantasiou isso. (risos) Por coincidência eles não se encontravam. Talvez inconscientemente eu tenha alguma razão para ter feito isso… Mas eu nunca impus um método, nem que eles não se vissem. Foi mais uma questão de acaso mesmo.

 

Vocês contaram no debate que chamaram a (atriz) Gilda Nomacce para realizar um processo curto processo de preparação com o Marcelo, já que sentiam dificuldade de ver ele expor as próprias fragilidades no filme. Queria ouvir um pouco mais sobre isso…

Gustavo: Apesar dos cinco anos de alguma convivência, eu sempre sentia que me escapava alguma coisa do Marcelo. Então eu queria fazer o filme até para conhecê-lo. Eu entendia ele como alguém com muitas referências, com muita bagagem cultural, mas que no fundo só estava contando histórias de outras pessoas, do avô, do pai, da mãe. E eu sentia muita necessidade de encontrar alguma história que fosse genuinamente dele. Só dele. Nisso eu acho que é um filme que parece muito com o da Flora (Dias), Miragem, em que ela está o tempo todo questionando a mãe sobre uma história que seja apenas dela, que não envolva outra pessoa do convívio. Uma história pura.

Acho que a gente fez A Rosa Azul de Novalis também nessa busca de saber quem é essa pessoa. E aí a Gilda (Nomacce) entrou no processo meio que nesse sentido, de buscar, entre todas essas histórias que o Marcelo traz, toda essa genealogia, algo que era dele, que o individualizava em relação ao meio de convívio dele.

Rodrigo: Claro que o Marcelo está sempre construindo a imagem dele, mas depois do processo com a Gilda essa imagem ficou muito mais…

Gustavo: …permeada, flexível…

Rodrigo: …ou espontânea, podendo ser criada naquele momento, e não como uma preparação anterior dele para o filme.

 

Voltando à comparação com Lembro Mais dos Corvos, vejo que o imaginário da Julia Katharine que aparece no filme está permeado de filmes mais populares, de uma cultura mais popular, enquanto o Marcelo Diorio traz uma ideia de erudição. Ele mesmo se intitula como uma “pessoa densa”. Pensando nisso, como vocês acham que o filme olha para a erudição dele? Há alguma intenção de desconstruir essa erudição que ele coloca para si, que também é performática, ou o filme “compra” totalmente isso?

Rodrigo: Não tem intenção nenhuma de desconstruir isso. O que talvez nos gerava insegurança é que é muito mais fácil nos identificarmos com um lado mais popular da cultura, como você disse, do que com essa erudição, que pode soar até arrogante. Mas o Marcelo tem um humor tão peculiar que eu acho que essa mistura de tudo isso gera um resultado interessante, e chega nas pessoas. O medo era que talvez as referências (quem leu Novalis? quem leu Bataille?) pudessem dificultar…

Gustavo: …o acesso ao filme mesmo, de quem não tem essas referências. No caso da Julia, no Lembro Mais dos Corvos, são referências mais próximas, mais acessíveis. Então a gente só tinha um pouco desse receio. Mas acho que ele mesmo desconstrói isso. E o filme é uma construção também. O Marcelo não vive de roupão. Existe ali também uma autoironia desse clichê do intelectual isolado. Tem um humor que perpassa tudo isso, que não é uma tentativa de desconstruir, mas que por si só já tá meio desconstruída. Acho que tem essa consciência dele e nossa de que também tem meio… ia falar um ridículo, mas não é essa palavra.

Rodrigo: Tem ali uma coisa que é mais do filme do que nossa em relação a ele.

 

Vocês veem uma autoironia também no título, A Rosa Azul de Novalis?

Gustavo: A gente pensou na Damares pra dar o título. (risos) Mentira, nem tinha Damares naquela época.

Sim, acho que sim. Tem também uma ideia do kitsch, que não foi explorada no debate aqui na mostra, que eu acho interessante, e passa pela própria construção do personagem. Por mais que ele esteja ali tentando resistir através desses amigos, desses escritores mortos, não sei o quê, o mundo é kitsch, então ele não consegue escapar disso.

Acho que pra mim a maior metáfora é aquela orquídea que ele menciona que é pintada de anilina, e que se fosse geneticamente modificada pelo menos seria um triunfo da ciência. E depois ele tem um encontro erótico, está chupando um cara, e tem aquela orquídea lá, que é feia, mas tem a sua beleza. Então, no fim das contas, ele não consegue escapar do kitsch. O mundo é kitsch. Ele é quase um personagem fora do seu tempo, que tenta manter… é quase um conservador nesse sentido, né? E no final não resta saída mesmo, ele tem que continuar nessa busca. É o que ele fala, “continuo buscando essa catarse, e ela nunca vem”. Porque no fundo aquela orquídea azul é brega, ela não existe, vende no Pão de Açúcar… É isso.

 

A mesma pergunta que fiz sobre a erudição, queria fazer sobre a direção de arte. O quanto o filme abraça uma ideia de imponência que está presente naqueles cenários?

Gustavo: Acho que é bem no limite também. É imponente, mas também é muito cotidiano. É só uma casa. Quando você vai pro quarto dele, é só uma cama com uma colcha, e tem um negócio grudado da Maria Callas, não é uma moldura… Fiquei pensando muito nisso vendo o filme ontem, e acho que é uma coisa que reforça o sentido documental. Se a gente tivesse mais tempo, mais dinheiro, talvez tivesse colocado uma moldura, feito algo pomposo. Mas acho que aí tem algo que ajuda nessa estranheza do filme, de ser e não ser.

Ao mesmo tempo que é imponente, a gente não fez muito esforço pra isso. Aquele vitral estava lá. A gente fez uma busca de locação, e por acaso a casa era daquele jeito. Ao mesmo tempo que é imponente, é vulgar de certa forma. A própria dona da casa, que aparece como uma das carpideiras que está na cena do velório, falou: “nossa, nunca imaginei que fosse encenar Nelson Rodrigues”. Tem mesmo algo de rodriguiano nessa história com o irmão, essa morte, o incesto, enfim…. Que é o contrário do imponente. É trágico, mas é vulgar. Então acho que realmente é uma mistura.

 

E para o cenário o Rodrigo comentou que teve muita influência do cinema do Jodorowski, né?

Rodrigo: Mais do conceito de psicomagia dele, e de como essas memórias e esses traumas vão se personificando nesses objetos, nessas cenas, nesses outros personagens… Ele cria uma encenação para você expurgar e curar os seus traumas. Relacionando com o nosso filme, para a cena da projeção das imagens na cabeça do Marcelo a gente não tinha nenhuma imagem de arquivo dele. Na verdade aquela gravação é a única imagem de arquivo que eu tenho da minha família, meu tio que gravou. E ela me assombrava a infância inteira, porque minha família morria de rir do garotinho desmunhecado que estava ali. Então me colocar ali, como diretor, vindo de onde venho, do interior de MG, de uma cidade de cinco mil habitantes, após ter me transformado no artista que eu queria ser, é ressignificar isso, é curar isso. Assim como também acho que é pro Marcelo passar por esse processo cênico. Por aí eu penso que o filme adquire esse caráter de pssicomagia, de um ritual.

Gustavo: É um pouco o que a gente falou no catálogo da mostra. Tem um quê quase psicanalítico nesses filmes. É como se a Julia (Katharine) estivesse num divã, é como se o Marcelo (Diorio) estivesse num divã. E eu acho que é muito importante falar de sexualidade, falar de trauma, porque o grande mal do mundo é o homem não conseguir olhar pra si mesmo. O homem vai pra Lua, mas não consegue acessar dentro de si. E eu acho que grande parte disso é culpado pelo governo que a gente está vivendo hoje, que tem sérias neuroses e traumas de pessoas que não aceitam a sexualidade e que precisavam de tratamento sério. E que por causa disso tudo cometem crimes atrozes e querem impor um modo de vida às outras (pessoas). Grande parte da comunidade LGBTQI, as mulheres também, passou por algum tipo de trauma, algum tipo de abuso, e se falar disso de maneira mais naturalizada pode ser também uma maneira de o espectador se libertar de alguma coisa, de alguma amarra que ele tenha. Os filmes também trabalham nesse sentido.

 

*O repórter viajou a convite da organização do festival

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