Busque por Pierre Léon no IMDb, o banco de dados audiovisual mais popular do mundo, e você encontrará informações incompletas. Não está listado ali, por exemplo, nenhum filme dirigido pelo cineasta francês nos anos 90. Mesmo no restante da Europa, a obra de Léon só começou a circular com mais destaque há cerca de dez anos, principalmente após as inserções de seus filmes Outubro, Guillaume e os Sortilégios e O Idiota no Festival de Locarno. Dessa forma, a retrospectiva realizada pela 11ª CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte foi uma chance única para o público brasileiro descobrir uma obra bem particular, avessa – paradoxalmente – ao imediatismo dos festivais. Ele mesmo fez questão de frisar na abertura da mostra que aquele era o primeiro troféu que recebia.
Nos seis dias do evento, Pierre apresentou praticamente todas as sessões de seus filmes, estando sempre disponível para ouvir impressões a respeito dos trabalhos ao final das projeções. Assisti-los novamente? Quase nunca o faz. “Com exceção de alguns pedaços que eu gosto muito, não costumo rever meus filmes. Não tenho vergonha de tê-los feito, mas não me sinto bem os revendo. Posso me dar conta de que um plano foi mal feito, que me enganei em alguma escolha… Prefiro que o filme viva a vida dele”, diz o cineasta francês que, faz questão de ressaltar, começou a dirigir filmes por acaso.
Nesta entrevista concedida ao Cine Festivais durante a 11ª CineBH, Pierre Léon falou sobre temas como festivais de cinema, os desafios atuais para jovens cineastas e o ensino de cinema.
Cine Festivais: No seu documentário Biette, exibido na programação da 11ª CineBH, comenta-se sobre como ele ouviu de pessoas próximas frases desmotivadoras pelo fato de não ter filmes selecionados para o Festival de Cannes. Queria saber a sua relação com os grandes festivais, especificamente com Cannes. Como você analisa esse poder de legitimar e deslegitimar cineastas atribuído a esses eventos?
Pierre Léon: Para (o cineasta e crítico Jean-Claude) Biette o Festival de Cannes não era tão relevante; o pai dele é quem atribuía essa importância. Ele disse ao Biette que só o reconheceria como cineasta se ele fosse selecionado para Cannes. E essa é a visão da maior parte das pessoas; para elas, Cannes é a legitimação absoluta para um cineasta. Mesmo se você for para Locarno ou Berlim, muitas vezes não é reconhecido por essas pessoas.
E no caso de festivais independentes que acontecem na mesma época em Cannes, como a Quinzena dos Realizadores e a Semana da Crítica, há alguma diferença significativa com relação ao evento oficial?
Havia isso muitos anos atrás, quando a Quinzena foi inventada com o intuito de se contrapor ao Festival de Cannes. Hoje não é mais assim, eles são cada vez menos diferentes. Se o Thierry Frémaux (diretor do Festival de Cannes) não quer um filme, a Semana ou a Quinzena vão lá e pegam. É um jogo. O que não quer dizer que não haja bons filmes em Cannes.
Também não posso dizer que estou muito por dentro do assunto, já que só fui para Cannes uma ou duas vezes. Estive na seleção da Acid (Associação para Difusão do Cinema Independente), que é a mostra paralela menos conhecida, exibindo o filme O Adolescente, em 2001. Estar lá gera um burburinho. Mesmo estando em uma pequena seleção o filme é visto é gera críticas, reflexões. Isso é importante para os produtores, porque fica mais fácil lançar o filme depois. Mas para os cineastas eu acredito ser mais importante estar em Locarno, que é um festival mais cinéfilo, mais autêntico.
O que você acha do crescente número de laboratórios de projeto e roteiro para futuros filmes? Como isso pode ter impacto no trabalho de jovens cineastas?
No meu caso, nunca participei desses laboratórios, mas acho que podem ser úteis, dependendo da pessoa. É um pouco parecido com as escolas de cinema: vamos ajudar a pessoa a fazer o filme que ela deseja ou vamos levá-la a fazer o filme de acordo com uma demanda, seja ela do mercado, da sociedade, etc.?
Acho que para os jovens cineastas está cada vez mais difícil escapar da formatação e permanecer com suas próprias ideias. Mas é claro que há bons casos. Recentemente vi Tesnota, o primeiro longa-metragem de Kantemir Balagov, um jovem russo que foi aluno de Aleksandr Sokurov. E o filme tem o seu próprio estilo, não imita Sokurov. Então com certeza isso pode existir, mas não é a regra.
Na masterclass ministrada aqui na CineBH você disse que não tem vergonha de nenhum filme que realizou. Como você lida com a sua obra? Gosta de assistir aos seus filmes novamente em ocasiões como esta?
Com exceção de alguns pedaços que eu gosto muito, não costumo rever meus filmes. Realmente não tenho vergonha de tê-los feito, mas não me sinto bem os revendo. Posso me dar conta de que um plano foi mal feito, que me enganei em alguma escolha… Prefiro que o filme viva a vida dele.
Como fiz muitos filmes, a possibilidade de eu ter me enganado em algum momento é alta, e isso não é grave. É necessário correr riscos. Acho que a geração mais nova de cineastas tem vivenciado menos essa possibilidade por conta da influência de outras pessoas envolvidas com o filme, como os produtores. Assim, a ideia original do diretor vai se esvaziando. E para mim o cinema deve ser um mergulho do realizador. Se não for assim, não é interessante.
Como você lida com a ideia de carreira? Durante sua trajetória você pensava que o conjunto de seus filmes estava constituindo uma carreira, no sentido profissional?
Eu não tenho uma carreira (carrière). Carreira para mim subentende que há uma estratégia, algo ligado à ideia de mercado, que se projeta. Eu nunca pensei em fazer filmes antes de começar a fazê-los, nunca pensei na ideia de carreira. Para mim é uma obra em curso. Acontece que já fiz muitos filmes e agora alguém pede para eu mostra-los em conjunto, como neste festival. Para mim é uma coisa bizarra.
Você lembra de alguém que tenha feito uma carreira interessante no cinema, tomando esse sentido mais mercadológico que você atribuiu?
Não consigo pensar em nenhum nome com uma carreira interessante. Não acho que John Ford queria fazer uma carreira, tampouco Ernst Lubitsch. Mais do que uma carreira (carrière), era um ofício (métier).
Posso citar o exemplo de Eric Rohmer, com quem eu trabalhei. Ele ia ao estúdio como alguém que ia ao trabalho. Chegava às 9h e saía às 18h. Quando o dia de trabalho acabava antes, ele não deixava as pessoas (atores, atrizes, etc.) saírem. Elas tinham que ficar se preparando para o dia seguinte. Isso é o métier, que é algo muito difícil, porque é obrigatório ter uma vocação. Rohmer tinha isso, e não uma carreira nesse sentido do mercado. Ele nunca ia a festivais, por exemplo.
O que o trabalho como ator em outros filmes lhe trouxe de inspiração para dirigir seus filmes?
Quando estou representando não faço muita coisa além disso e posso observar o que está acontecendo no set. Olho o trabalho de engenharia de som, de direção de arte, de fotografia. Aprendi muito sobre iluminação nesse tipo de situação, é formidável. É parecido com quando estou ensinando. Não faço muita coisa e aprendo ao mesmo tempo com os estudantes.
Qual é exatamente seu trabalho como professor?
Dou aulas de mise-en-scène em alguns lugares, como a Fémis (tradicional escola francesa) e outras escolas em Praga e Moscou. Quanto menor a turma, melhor. Apareço no momento das filmagens e ajudo os estudantes a fazerem os filmes deles. Não digo nada a não ser que me perguntem algo ou se vejo que estão fazendo uma besteira monumental. É muito interessante.
É possível ensinar cinema a alguém?
Uma vez que faço isso, penso que sim. Mas acho que não dá para ensinar alguém a ser diretor: ou se é, ou não se é. Posso ajudar a evitar certos erros.
Acha que as escolas de cinema podem formatar alunos?
Infelizmente, sim. Quando estou numa escola grande, como a Fémis, tento ser uma espécie de “contrabandista”, fugir um pouco desse padrão. Digo a cada um deles: “você pode fazer como você quiser.” Isso é o mais difícil para o aluno: saber o que ele quer para si. É o trabalho que posso fazer. Quando ensino, não quero que meus alunos me repitam, não quero que façam filmes do Pierre Léon. Já há um Pierre Léon, é suficiente (risos).
*O repórter viajou a convite do festival
Foto: Léo Lara/Universo Produção