A diretora Betse de Paula tem a seu dispor em Desarquivando Alice Gonzaga algo que grande parte dos documentaristas deseja: uma personagem excepcional tanto pela trajetória de vida quanto pela maneira de se colocar no mundo. Filha de Adhemar Gonzaga e herdeira da Cinédia, primeiro estúdio de cinema do Brasil, Alice acompanhou toda a trajetória da empresa e a herdou depois do falecimento do pai. Desde então, ela se dedicou a cuidar dos arquivos e da memória da companhia.
O documentário se deixa guiar pelos depoimentos de Alice, concedidos principalmente dentro da casa que abriga o legado da Cinédia. Aqueles corredores evocam recordações acerca dos bastidores de grandes marcos do cinema brasileiro, como Ganga Bruta, de Humberto Mauro, e Limite, de Mário Peixoto, além do sucesso de bilheteria O Ébrio, dirigido por Gilda de Abreu.
A aposta certeira no conteúdo da entrevistada não ganha equivalente preocupação no que diz respeito à forma do filme. Quando registra Alice nos arquivos, a câmera transparece uma preocupação unicamente reativa, no sentido de acompanhar a personagem e garantir o teor de informação que está sendo passado. A falta de uma concepção de direção mais propositiva se verifica também nas passagens em que o trabalho retrata conversas de familiares, embora ali o contexto confuso gere alguma organicidade entre forma e conteúdo.
Nesse sentido, é interessante comparar o documentário de Betse de Paula a dois curtas-metragens do diretor Rafael Urban: Ovos de Dinossauro na Sala de Estar e A que Deve a Honra da Ilustre Visita Este Simples Marquês? (este em codireção com Terence Keller). Os três filmes retratam personagens idosos que têm na fala a via para expor suas excepcionalidades, mas é só nos trabalhos de Urban que há uma preocupação efetiva em traduzir imageticamente a essência de cada retratado. No caso de Desarquivando Alice Gonzaga, único dos trabalhos em que há um extracampo efetivamente ligado a personagens públicos e fatos da História, este fator informativo se torna preponderante, o que diminui a sua força enquanto produto audiovisual.
Posta essa limitação, é preciso também destacar o quão prazeroso é acompanhar Alice Gonzaga em tela; a cada nova tirada bem-humorada ela nos faz esquecer temporariamente as deficiências da produção. Mais do que isso, na história dela está contido todo um imaginário do Brasil de ontem e de hoje, passando por temas como as dificuldades estruturais e culturais para mulheres atingirem posições de poder e chegando à preservação da memória de um país, algo que, é importante destacar, se deu no caso de Alice graças a uma vontade pessoal, longe de políticas governamentais.
*Filme visto na 12ª CineOP