Todo filme nacional necessariamente confronta a história e o legado do cinema brasileiro a partir do presente. Este desafio é a fatura pela qual os filmes se inserem nisto que chamamos “história do cinema brasileiro”, narrativa cuja cronologia não resume o desenvolvimento de uma lógica imanente. Neste sentido, Rifle, de Davi Pretto, é um destes filmes que se inserem na história tanto como um movimento de atualização quanto de postulação de novos paradigmas: o passado é reinscrito na mesma medida em que o futuro é desafiado.
Como em tantos outros trabalhos, em Rifle a aridez é o aspecto fundamental da paisagem. No entanto, uma aridez cujas condições de leitura não são as mesmas. Não é exatamente a infertilidade do solo que cunha esta aridez. A aridez da paisagem pós-êxodo, no interior do Rio Grande do Sul, é, sobretudo, uma aridez antropológica, na qual as marcas no rosto, produtos do tempo, são acidentes geográficos.
“É pouca gente que não morreu ou já foi embora”, comenta um antigo morador. O tópico da migração como alegoria, motivo emblemático da ficção brasileira, é abandonado: o êxodo já aconteceu. O filme concentra-se nestes remanescentes, cuja própria dicção marca os laços com aquele lugar, sem que a identidade particular destes seja compreendida como uma espécie de reserva definidora do ser brasileiro. Em especial, Dione, jovem e ex-militar, que reside e trabalha numa pequena propriedade desta zona rural sombria que já não sustenta as potências revelatórias do interior de outrora.
Não por outro motivo, a figura de Dione é opaca, apresentada desde o início em planos quase documentais em que o mutismo revela uma interioridade pouco perscrutável. Quando interage, a própria fala truncada expressa este interior cheio de nódulos. Este tom é inflexionado quando um latifundiário sonda a propriedade em que o personagem trabalha e especula a compra do local: a constante em todos os filmes que, por ventura, assemelham-se a Rifle, é a pressão exercida pelas relações de poder entre os latifundiários e os trabalhadores rurais. Dione é quem primeiramente atende o latifundiário e desconversa. Pouco adianta. Assim como na queda d’água em que o protagonista se refugia, o efeito é cascata: as demais pequenas propriedades da região estão sendo vendidas, e o proprietário para quem ele trabalha não permanece incólume.
A partir destas especulações, o personagem de Dione assume uma outra postura. O tom documental é tensionado e os parâmetros da narrativa, que não haviam sido estabelecidos de imediato, vão sendo postos. Se, antes, a opção pelo plano aberto dispunha Dione no espaço do quadro como um elemento ainda sem lugar cativo no plano e, consequentemente, na natureza (uma vez que esta ocupava a maior parte do plano), gradualmente, a partir do acúmulo dramatúrgico de espaços, Dione vai sendo apresentado como um elemento que se confunde simbioticamente com a natureza.
Como um recurso contra a venda iminente da propriedade, o que significaria a imposição do êxodo para um centro urbano que a mecanização daqueles campos já ensaiava, Dione assume comportamentos que reatualizam a organicidade entre homem e natureza. Quando o personagem olha seu reflexo na água, não há mais uma forma essencial humana que lhe seja própria. Ele estranha a própria imagem como quem vê algo prestes a se deformar, e esta sua condição existencial verga a forma do filme, que adota momentos cujos fatos visuais estão para além da lógica realista e numa temporalidade outra que não a da eficiência narrativa.
Embora toda a narrativa seja pontuada por elementos que sintetizam esta invasão do moderno (urbano) no arcaico (rural) – geladeira, celular, som de automóvel, televisão -, é o carro que formaliza o avanço indomável do dito progresso. Dione atira em todos os carros que passam, e não apenas no veículo do latifundiário interessado na propriedade. Afinal, a compra das pequenas propriedades não é efeito de um homem só, mas de uma prática sistemática de latifundiarização (o contrário de uma reforma agrária).
O roteiro sugere que a habilidade de Dione em manusear o rifle é decorrente do seu tempo no exército, quando utilizava a roupa camuflada, cujas cores intentam confundir-se com a natureza. Ali, como podemos imaginar, também recebia um treinamento – ou melhor, adestramento – semelhante ao tratamento dos animais na propriedade. Então, uma vez que esteve no exército, o seu corpo também passara por um processo de animalização que era reprimido sempre que ele não estava dentro do quartel e integralmente quando terminou seu período militar. Em Dione, a amálgama com a natureza é potencializada. Quando, dado os acontecimentos do filme, reassume esta fúria animal, torna-se indomesticável.
Esta força selvagem se revela nos planos em que visualizamos a inserção dos carros no espaço visual e sentimos a duração da espera até o momento em que a mira de Dione finalmente gruda no carro. O olhar panóptico, o barulho, o tiro acertando o alvo, o automóvel descarrilhando são elementos que remetem a um comentário do crítico e cineasta francês Jacques Rivette a respeito de Roberto Rossellini: “Olhar ativo, olhar de captura, uma caça de cada instante, a cada instante perigosa, uma busca corporal, um movimento incessante de conquista e de perseguição que confere à imagem um não sei quê de vitorioso e de inquietante ao mesmo tempo: o próprio tom da conquista.”
Em Rifle, as consequências da incessante conquista de Dione vão tornando-se progressivamente mais potentes (rabiada, capotagens, explosões) enquanto a passagem de Dione do estado humano para o animal vai se efetuando na mesma medida em que cinde o filme: a narrativa descola-se do momento anterior e assume-se a flutuação generalizada em que as demandas psicológicas do personagem são soberanas.
A força expressiva da composição dos planos (um caso paradigmático de uso exemplar do cinemascope) fortalece a amálgama de Dione com a natureza. Não há expressionismo duvidável ou ostentação do domínio do filmar, mas uma necessidade plástica outorgada pela própria narrativa. Enquanto as linhas retas dos arames farpados revelam-se exíguas para a imensidão espacial que aquele corpo desbrava, a selvageirização de Dione é dada sem retórica, somente pela evidência do que nos é dado a ver.
Algo ocorre na tentativa de passagem para o momento final da narrativa. Se o primeiro momento (apresentação dos personagens e do local até a aproximação do latifundiário) e o segundo (imersão no personagem mediante os efeitos da iminência da venda da propriedade) funcionam em conjunto, a aceleração para momentos finais da narrativa denuncia um vácuo, tão evidenciado pela fragilidade do momento de virada em que Dione olha um quadro e um fade simboliza a sua transformação: no plano seguinte, ele larga a arma.
As evidentes limitações dramatúrgicas apareciam, em um primeiro momento, como verossimilhantes à própria idiossincrasia dos personagens (todos interpretados pelos próprios habitantes locais) e eram superadas pela precisão da decupagem e, principalmente, pelos momentos em que o espaço organizava o sentido que o drama apenas tateava: o ritmo plástico se sobrepunha a inoperância. Porém, no mesmo compasso em que as conotações do drama se reinserem e a profundidade de campo junto à dilatação espacial do campo são substituídas pela cidade, esta dramaturgia emperrada revela-se como insuficiência narrativa.
Assim, é o próprio filme que se torna alvo das próprias escolhas e se descarrilha. As ficções do filme se tornam pesadas demais para a obra, que não consegue fazer as linhas coincidirem, fechar os contornos, resultando em um final descompassado. Se Davi Pretto revela uma habilidade incomum no cinema brasileiro em construir um universo particular, lançando mão de estratégias que se distanciam dos centros de gravidade habituais do nosso cinema, ele esbarra no problema de como sair dele.
As variações singulares deste universo particular são neutralizadas quando o regime de intensidade sensível daquele momento anterior não consegue se sustentar durante a ida de Dione para a cidade – o que representa um retorno à sua dimensão humana marcada pelo momento em que abandona o rifle ao lado de Mariano, personagem que representa uma espécie de modelo geral da marginalidade de certos personagens que permaneceram naquele lugar.
Quando, na cena final da conversa entre ele e sua irmã, o filme decide reatar algumas pontas soltas que não clamavam por compreensão, mapeando os arcabouços psicológicos do personagem via rememoração de um passado até então desconhecido, a equação do personagem é racionalizada, perdendo a forma instintiva que organizava as relações de causa e efeito do personagem. Ainda que o momento revele uma certa suavidade no personagem em sua relação com a irmã, algo que ele não apresentara até então, o sentido é fragilizado, pois a narrativa parece necessitar de mais planos para retomar a intensidade de modo não arbitrário.
Mesmo que seja impossível pensar que as motivações das ações do personagem não tenham um potencial político – latifundiarização e falta de cobertura previdenciária para um acidente que sofrera quando estava no exército -, este sentido político é anestesiado pela falta de combustão e pela acomodação do final da história numa sensação tépida de uma narrativa inconclusa mas sem mistério. Sob a pena da ausência de uma intensidade dramática, o sentido interno do filme neutraliza-se. É assim que a própria elevação do volume durante a última destruição de um carro, no momento final em que os créditos já subiam, sinaliza que ali só restava o sentido exterior da ação – e, por isso, arbitrário.