Em uma cena de Martírio, documentário de Vincent Carelli, uma índia Guarani Kaiowá se direciona a uma companheira que presenciou mais um ato de violência contra o grupo e pede: “você tem que falar”. Tal momento remete a uma frase semelhante dita por Claude Lanzmann em um dos pontos mais marcantes de sua extensa obra sobre o Holocausto, Shoah, em que o cineasta francês impele um sobrevivente da barbárie nazista a relembrar sua experiência como cabeleireiro na antessala de uma câmara de gás. A aproximação entre os dois trabalhos não é trivial: ambos são filmes sobre extermínios e têm o objetivo de traduzir cinematograficamente situações muitas vezes inomináveis.
O alto comando nazista identificou na linguagem um campo de batalha tão significativo quanto o militar. Judeus recrutados para fazer o enterro dos restos mortais de milhares de seus semelhantes eram impedidos de se referir a eles como “corpos” e só podiam tratá-los como “coisas” ou outros termos impessoais. Com relação à situação dos Guarani Kaiowá, o que o filme de Carelli mostra é que a apropriação de vocabulário e o apagamento da memória são também partes integrantes do modus operandi que favorece a perpetuação do genocídio indígena.
Um evento organizado por ruralistas se denomina Fórum da Resistência, com discursos acalorados sobre as “invasões” dos índios; um deputado federal inverte o velho discurso da esquerda sobre o imperialismo americano e alerta para o perigo de o rei da Noruega, ao apoiar financeiramente a causa indígena, estar escondendo as suas intenções de domínio do território; outra excelência usa uma lógica fronteiriça atual para ridicularizar a situação de um povo que ocupava tal território bem antes da Guerra do Paraguai.
Tais momentos mostrados pelo documentário surgem como contraponto à visão de Carelli, que se assume como militante da causa Kaiowá e narra o documentário em primeira pessoa. A diferença deste para outros documentários menos exitosos de temática indígena é a profundidade da pesquisa histórica, a riqueza das imagens captadas pelo diretor entre 1988 e os dias atuais e, principalmente, um trabalho de montagem complexo, que vai costurando múltiplas camadas de significado e justifica as mais de duas horas e meia de projeção.
A lógica estrutural do filme guarda ligação com a diáspora a que foram submetidos os índios Guarani Kaiowá ainda vivos. Embora haja no roteiro uma via linear no que se refere à evolução histórica do conflito, a atualidade do povo indígena é retratada com ênfase às particularidades de cada agrupamento.
Um dos primeiros planos do filme, que mostra um assentamento indígena à beira de uma estrada, sintetiza a drástica divisão a que os Kaiowá foram submetidos ao longo dos anos e deixa implícito o risco de atropelamento (simbólico e real) a quem ousa desrespeitar tal fronteira arbitrária.
A invisibilidade imposta aos índios no imaginário social surge no filme através de algumas maneiras. A primeira delas é o simples apagamento histórico da existência deles. “Nunca houve índio aqui”, diz um fazendeiro, seguindo a mesma lógica do governo que ignorou os territórios indígenas quando arrendou uma vasta área para a produção de erva mate.
A segunda, muito parecida, é a aculturação/emancipação, que vê a civilização branca como exemplo a ser seguido pelos índios, que perderiam as suas particularidades aos poucos, seja pela via cultural ou biológica (essa última, seguindo a mesma lógica de embranquecimento da população vigente no século XIX no Brasil). A imagem do suposto neto do lendário Coronel Fawcett, que seria fruto de uma relação com uma índia, é símbolo deste modelo eugênico.
A terceira é um desdobramento da segunda. Depois que os direitos indígenas foram garantidos por lei, a alternativa é questionar a legitimidade de grupos específicos que se colocam no meio do caminho do agronegócio. No show de horrores promovido por parlamentares em uma comissão especial do Congresso, os Guarani Kaiowá e tantos outros povos surgem como mentirosos, aproveitadores e criminosos. O recado é claro: eles não os consideram índios.
Carelli apresenta tais discursos em seu documentário sem a falsa pretensão de imparcialidade, mas para ressaltar o grau de resistência inerente a seu filme. Quando um vídeo com um policial atacado por índios circula no Youtube e é propagado por políticos ruralistas, o diretor vai até o local dos acontecimentos e relativiza a versão única que circulou pelas redes e pela mídia.
A necessidade de dar espaço para que o outro conte a sua própria versão da história se concretiza primeiramente através do entendimento desse discurso, como se nota na opção da montagem por apresentar duas vezes as imagens de um dos primeiros contatos do diretor com os índios, uma sem legendas e outra com. O empoderamento proposto pelo filme à comunidade indígena, assim, passa bastante pela questão do lugar de fala.
A potência do filme de Carelli está também em entender que há sempre um ruído de comunicação, mesmo em um filme que se propõe a ser “com”, e não “sobre” os Guarani Kaiowá. A passagem de uma câmera para os índios gravarem as constantes ameaças a que estão submetidos é um gesto final que abre novas possibilidades de existir e resistir em meio a esta shoah à brasileira.
* Filme visto no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Sessões do filme na 40ª Mostra de São Paulo
– Dia 25/10 – 15h50 – Espaço Itaú Frei Caneca 2
– Dia 29/10 – 15h40 – Caixa Belas Artes – Sala 1