É possível traçar aproximações estilísticas, narrativas e formais entre os dois longas-metragens de ficção de Kleber Mendonça Filho, O Som ao Redor e Aquarius. Uma delas, aparentemente banal, diz respeito à escolha do diretor por dividir ambos os trabalhos em três partes devidamente nomeadas.
No filme anterior, essa estratégia parecia se estabelecer mais por um jogo de palavras (Cães de Guarda, Guardas Noturnos e Guarda Costas) do que por uma organicidade estrutural. Neste novo trabalho, que aposta em um tipo de cinema mais narrativo, as cartelas (O Cabelo de Clara, O Amor de Clara e O Câncer de Clara) correspondem mais ao desenvolvimento do roteiro, embora também não sirvam como uma algema de estrutura.
Há dentro do filme, porém, uma divisão muito mais interessante estabelecida de maneira implícita. Já a partir da escolha do título do filme (Aquarius, e não “Clara”), ou da composição da cena inicial com fotografias da Praia de Boa Viagem, é possível notar que as marcas do tempo evocadas pela canção de Taiguara se refletem não apenas na protagonista Clara (Bárbara Colen, quando jovem, e Sonia Braga, na maturidade), mas também no edifício, cuja estrutura se choca com a estética dos espigões ao redor.
Tal como um móvel que, visto por uma determinada perspectiva, remete a uma experiência de prazer no passado, o edifício Aquarius se manterá como organismo vivo enquanto evocar memórias. As fases dessa relação simbiótica entre Clara e o prédio ganham representação através das mudanças de cores às quais o segundo é submetido ao longo do tempo.
Aquarius rosa
Carros verdes, amarelos e de outras cores vibrantes fazem um contraste gritante com os modelos cinzas, pretos e brancos que predominam nos pálidos veículos atuais. (De modo parecido, edifícios cor-de-rosa não são nada comuns nos dias de hoje).
No prólogo do longa-metragem, situado em 1980, o carro não representa para o senso comum um problema central para a mobilidade urbana e o meio ambiente, tão discutido em muitos filmes recentes; longe disso, a posse do automóvel traz um senso de liberdade que naturaliza até mesmo sua presença em um ambiente como a praia.
É nesse contexto que somos apresentados a Clara. Seu gosto pela vida, pelos amigos, pela música, vem antes das convenções sociais. Traços de sua personalidade vão se desenhando por suas ações: ela chega atrasada a uma festa de família, oferece comida ao porteiro do turno da noite, dá atenção especial a outras crianças.
Se na continuação da história uma das principais marcas da trajetória de Clara é a resistência, a figura que serve de inspiração para tal atitude é a tia Lúcia (Thaia Perez), que comemora seus 70 anos na festa mostrada no prólogo.
No plano coletivo, há uma menção à participação da tia na luta contra a Ditadura Militar, que naquela época ainda estava no poder. No plano individual, ela discursa contra o apagamento, pela família, da memória de Augusto, seu companheiro e amante. Em um rápido momento, é possível perceber o desconforto de um familiar com a menção àquele que não deveria ser nomeado.
O discurso de coragem serve como impulso para o marido de Clara tomar a palavra para relembrar as dificuldades e comemorar o tratamento vitorioso de sua mulher contra o câncer de mama. Como ele revela, houve familiares que se afastaram durante o período mais difícil dessa batalha: “a vida não vem com manual para essas situações”, diz ele em tom conciliatório. Eis aí uma verdade, mas também é certo que reside na diferença entre o calar e o falar uma das principais formas para se ilustrar o significado do verbo resistir.
Aquarius azul
A elipse que nos leva a uma Clara já madura, mais de 30 anos depois daquela festa, traz consigo sugestões sobre o legado emocional construído por ela ao longo deste período. São elementos que remetem a esse passado não visto os livros, os discos, o longo cabelo – diferente do estilo Elis Regina adotado depois do tratamento contra o câncer – e o prédio, agora azul, que na atualidade surge como um OVNI urbanístico não só pelo seu formato horizontal, mas principalmente pela ausência de grades e pelas poucas barreiras entre a porta do apartamento e a rua.
Somos apresentados a uma pessoa aberta ao mundo, segura de si. O perigo do contato com o outro é a princípio negado, como na cena em que três jovens negros, que em outros filmes somente poderiam representar tipos ligados à criminalidade, adentram uma quadra esportiva para… se juntarem a uma sessão de terapia do riso.
A estranheza de alguns com a demora do filme em apresentar o seu conflito narrativo mais evidente – ou seja, a disputa entre Clara e a imobiliária que deseja adquirir aquele apartamento para enfim conseguir implodir o edifício, propiciando a construção de mais um arranha-céu “ultramoderno” na orla recifense – não leva em conta que acima dessa oposição concreta está um choque entre subjetividades completamente diferentes.
Nesse sentido, o entendimento de Ana Paula (Maeve Jinkings), filha de Clara, sobre o imbróglio, está muito mais perto da visão de mundo dos funcionários da construtora Bonfim do que do ponto de vista da mãe. É uma questão de olhar: há quem mire de modo turvo, distante, a ponto de não enxergar a cor da nova fachada do prédio ou a máscara que recobre o rosto de outra pessoa que só queria agradar. Olhares de mãe e filha são díspares, por isso é interessante a importância que a montagem dá à cena em que a protagonista identifica em Júlia (Júlia Bernat), namorada de seu sobrinho, um novo tipo de cumplicidade.
Em um dos melhores momentos do filme, a discussão entre mãe e filhos sobre a venda do apartamento termina em lágrimas e na exposição de ressentimentos. O interessante em momentos de conflito como este é que, mesmo sendo evidente a composição de Clara como uma heroína positiva, o diretor não se furta a demonstrar algumas das contradições da personagem. Uma delas aparece na fala em que a protagonista revela ter cinco apartamentos, o que sugere que ela se sustenta pelos aluguéis, sendo uma peça – embora bem menor, evidentemente – da engrenagem lógica que rege o crescimento urbano da cidade, a mesma responsável pelo assédio a seu apartamento.
A falta de um apoio integral por parte da família é um dos fatores de uma desestabilização de Clara que ganha peso com as atitudes da construtora para constrangê-la, como a liberação do apartamento de cima para uma festa orgíaca. Tal como a empresa de segurança privada de O Som ao Redor, a Bonfim vende um futuro com maior segurança – que viria com a construção de um novo edifício no local –, mas entrega como complemento medo e paranoia, essenciais para o funcionamento desse tipo de negócio.
Dois planos panorâmicos semelhantes resumem essa mudança de perspectiva. O primeiro, filmado de dia, parte da praia e termina dentro do apartamento com Clara na rede, o que naquele momento pode ser encarado como demarcador de sua liberdade. O segundo, que se passa à noite, começa com um casal que faz sexo em um matagal, passa por garotos jogando bola e termina da mesma forma que o anterior. A trilha sonora mais pesada, com elementos de percussão antes não ouvidos, anuncia: há perigo na esquina.
Aquarius branco
Um plano aberto mostra um edifício vizinho ao Aquarius recoberto por uma grande rede de proteção da cor branca. O vento forte faz com que o pano tremule, ganhando um sentido de invasão iminente ao prédio de Clara. Em outra cena, a protagonista está dançando em seu apartamento e vemos passar pela sua janela um pano branco. Uma ideia fantasmagórica, ligada a elementos do sobrenatural, vem à cabeça, mas logo no plano seguinte Kleber traz uma justificativa terrena para aquela visão: a rede será usada no trabalho de pintura da fachada do local.
É importante notar que esse processo de empalidecimento do prédio (do rosa, para o azul, para o branco) ganha seu toque final por um desejo de Clara, e que ela toma essa decisão depois que tem preocupações e pesadelos com relação à segurança do apartamento, indo se certificar de que a porta de entrada realmente estava fechada. É o momento em que a lógica do “você mora em um prédio fantasma” e do “precisamos fazer um prédio moderno para trazer segurança” é entendida pela protagonista e começa a ser retrabalhada pelo viés da resistência.
A mudança de atitude passa primeiro por um conflito aberto com a construtora, personificada por Diego, personagem de Humberto Carrão. Na cena em que Clara discute com ele sobre caráter e cultura, ricos e pobres, todo um discurso que o filme vinha construindo é explicitado de maneira didática e bem menos complexa do ponto de vista cinematográfico. (O didatismo desnecessário, aliás, surge em outros momentos, o pior deles quando a cunhada de Clara diz sobre as empregadas: “a gente explora elas, elas nos roubam”).
O que se segue é um entendimento de que a necessidade de reagir passa por assumir o que há de semelhança com os membros da construtora: a classe social abastada, os privilégios trazidos pelos “contatos importantes”, a proximidade, mesmo que indesejada, com quem se torna um adversário (Diego é afilhado de um parente de Clara).
Enquanto Francisco, o senhor de engenho/proprietário de imóveis em O Som ao Redor, mergulhava à noite em um mar repleto de tubarões – por ser ele mesmo, no plano simbólico, um deles -, Clara entende que para seguir suas convicções e continuar nadando na área de perigo precisa impor barreiras a quem a rodeia. Para isso, recomenda-se o uso de máscaras, para evitar que o mau odor seja liberado na hora do mergulho final.
* Aquarius foi exibido na competição oficial do Festival de Cannes 2016