Tendo como um dos seus eixos temáticos a relação do cinema com o processo de abertura rumo à redemocratização pós-Ditadura Militar (1964-1985), a 11ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto começou na noite desta quinta (23) com um tom marcadamente político. Foram citados na cerimônia de abertura assuntos atualíssimos, como o feminismo e a ocupação de escolas, e houve protestos da plateia contra o presidente interino Michel Temer.
A cerimônia aproveitou um dos conceitos da CineOP deste ano, a discussão da relação entre Cinema, TV e Educação, para fazer da abertura um falso programa de auditório acontecendo ao vivo.
O restaurador Chico Moreira (1952-2016) foi o homenageado da temática Preservação, com o Troféu Barroco sendo entregue pelo curador Hernani Heffner à viúva e ao filho de Moreira. Já na temática Histórica e Educação o nome em destaque foi o cineasta Eduardo Coutinho (1933-2014), que foi representado no palco pela produtora Laura Liuzzi, integrante da equipe dos filmes As Canções e Últimas Conversas.
Na sequência foi exibida a obra-prima de Eduardo Coutinho, Cabra Marcado para Morrer. Cânone indiscutível da cinematografia brasileira, o filme se insere perfeitamente na proposta do festival de colocar em discussão as permeabilidades possíveis entre TV e Cinema.
É importante lembrar que Coutinho se tornou conhecido do grande público primeiramente como jornalista do programa Globo Repórter, e que foi com Cabra que a sua autoralidade como cineasta foi reconhecida. Essa transição se nota em tela no momento em que uma pessoa filmada reconhece o diretor e pergunta se a produção “é da TV?”, recebendo como resposta algo parecido com um “é reportagem, mas é cinema”.
Cabra Marcado Para Morrer é cinema da melhor qualidade, que só se fortalece após cada revisão na tela grande, inclusive ganhando novos significados conforme o momento político do País vai se modificando.
Previsto como filme de ficção baseado na história real da vida e da morte do líder camponês João Pedro Teixeira, o trabalho teve as filmagens interrompidas pelo golpe de 1964 e só veio a ser concluído como documentário em 1984.
O microcosmo representado pela figura de Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro que foi perseguida pelos militares e viu sua família se desestruturar, com os muitos filhos sendo criados por diferentes pessoas, dá conta de uma gama muito mais ampla de consequências que o regime militar trouxe para o Brasil.
É simbólico demais, por exemplo, o fato de não ter restado uma foto sequer de João Pedro vivo – a imagem que sobrou é a do Instituto Médico Legal, com ele completamente desfigurado após o assassinato. Nesse sentido, as cenas resgatadas do filme de 1964, e o documentário de 1984 em si, são meios de expor e de se colocar contra toda uma política de apagamento de memória perpetrada pelos militares – e é muito interessante que a desafiadora montagem de Eduardo Escorel tenha mantido no corte final um momento em que Coutinho interrompe o pensamento de um entrevistado, demonstrando o quão desafiador é o trato com a memória.
Além de fechar um momento histórico brasileiro ao mostrar o período de reabertura e as consequências da Ditadura, Cabra Marcado Para Morrer aponta para uma repetição cíclica de sua tragédia, e isso pode ser notado principalmente em duas passagens da parte final: a primeira, quando ficamos sabendo que a cidade para a qual Elizabeth Teixeira se mudou está prestes a desaparecer graças à construção de uma usina hidrelétrica; a segunda, quando Elizabeth faz o seu discurso mais enfático sobre a luta contra a desigualdade social.
A 11ª CineOP continua nesta sexta (24) com a exibição de filmes como Jango, de Silvio Tendler, e Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman, além de uma nova sessão especial dedicada a Eduardo Coutinho.
*O repórter viajou a convite do festival
Foto: Leo Lara/Universo Producao