O documentário biográfico sobre Cícero Dias inicia-se com registros do túmulo do artista plástico, da mesma forma que, em O Homem de Areia (1982), a morte inicia a obracom o sepultamento de José Américo. O filme em questão encerra assim uma trilogia de Vladimir Carvalho que trata das vidas de personalidades nordestinas no campo das artes, sendo O Engenho de Zé Lins (2006) o segundo trabalho dessa coleção. Munido de entrevistas e imagens que restauram as memórias brasileiras sobre o pintor modernista recifense, Cícero Dias, O Compadre de Picasso destaca-se também pelo saudosismo composto por imagem e trilha.
Guiado majoritariamente pela contribuição do próprio Cícero através da voz de Othon Bastos, o documentário desenvolve a ideia de liberdade cultivada pelas artes e políticas que seguem e perseguem o percurso do artista plástico, do Recife para o mundo. Frederico Morais, crítico e historiador da arte, nos alerta logo de início da influência do contexto para o trabalho do artista.
O documentário reúne as cores do engenho de Jundiá (no município de Escada, em Recife, onde nasceu e cresceu o artista) e os sons de bambu queimando para criar esse quadro audiovisual das reminiscências de Cícero. O resgate dessa memória ainda carrega as imagens de luto que refletem o humor de toda a trilogia de Carvalho. Figuras da arte nacional resgatadas, o discurso brasileiro de autonomia (Lisboa como a “continuidade do Recife“) e as falas de Suassuna são elementos celebrados no molde dessas obras. Todavia, na moldura de O Compadre de Picasso,conduz-se uma melancolia em relação às imagens, confirmada pela trilha sonora, que parece solenizar um projeto modernista do começo do século XX, na busca de uma identidade brasileira consciente (em muitos casos até civilizatória).
No início de seu trabalho, é pelo “sexo vivo” de traços oníricos beirando a loucura que o artista se insere no projeto modernista, e na mira dos tradicionalistas revoltados. Cícero foi um artista sem medo de explorar tendências. Nesse regime erótico e mental, ele irá recusar a imposição perversa das etiquetas e ocupar, no filme, os espaços não convencionais e turbulentos destinados aos precursores, inovadores, visionários.
Nesse sentido, o documentário de Vladimir Carvalho questiona até que ponto Cícero Dias se relaciona com seus contemporâneos, à luz (ou sombra) dos acontecimentos da primeira metade do século passado. No Brasil, expõe em locações atípicas, hora comparado ao russo Chagall pelo lirismo inventivo e pintura popular, hora distinguido do mesmo pela sua relação com o carnal.
De toda forma, Cícero, o “agitador de operários”, é “convencido” a mudar-se para Paris, longe do Estado Novo de Getúlio Vargas. Lá conhece sua esposa Raymonde (representada também pela voz de Fernanda Montenegro) e frequenta os mesmos ambientes que Fernand Léger, Man Ray e Picasso, este que seria depois padrinho de sua filha.
Porém, a influência surrealista e abstrata na obra do artista recifense entrará em conflito com a agenda “consciente” modernista no Brasil, que irá alienar Cícero do circuito intelectual brasileiro por outros tempos.
No Brasil de O Compadre de Picasso, fotografia e desenho sonoro ficam divididos entre o projeto artístico-político de um país e a lembrança saudosa de Cícero Dias sobre o Recife que, eventualmente, dessincronizam.
Por mais que esgotem-se as transições por debaixo de pontes sobre canais fluviais e privilegie-se na montagem o tempo de Cícero antes de Picasso e vozes masculinas inabaláveis, o filme de Vladimir Carvalho deixa clara sua intenção, no fim dessa trilogia, de não deixar que algumas forças políticas decomponham essas memórias do sépia para o nada.
Nota: 7,5/10 (Bom)