Antônio Carlos de Brito foi poeta, jornalista, letrista, professor – só para citar alguns exemplos. A trajetória multifacetada do artista falecido em 1987 que entrou para o cenário artístico e intelectual do País através do codinome Cacaso é contada no documentário Cacaso na Corda Bamba, que integra a competição brasileira de médias e longas-metragens do 21º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.
Amigo de Cacaso desde os tempos de faculdade e codiretor do filme ao lado de PH Souza, José Joaquim Salles encara o trabalho como um modo de resgatar a importância de Cacaso não só através de suas facetas mais conhecidas, como também por meio de seu lado cotidiano e familiar.
Em entrevista por e-mail ao Cine Festivais, os diretores falaram sobre o documentário.
Cine Festivais: Qual era a sua relação pessoal com Cacaso e com a obra dele? Como surgiu a ideia para o filme? Ela se relacionou com uma constatação de que as novas gerações pouco sabiam dele?
José Joaquim Salles – Me tornei amigo de Cacaso ainda na faculdade. As circunstâncias da vida naquele momento, inclusive o exílio, nos afastava e aproximava espacialmente, mas sempre estivemos conectados, razão pela qual em 1987, ano de seu falecimento, estarmos tocando projetos juntos, um roteiro cinematográfico, a ideia do livro “Na Corda Bamba”, que para mim só se materializou em 2004.
Desde sua partida, estive por todo esse tempo pensando em Cacaso, lembrando, procurando e infelizmente percebendo seu “esquecimento” para fora das relações afetivas. Me bateu, portanto, essa necessidade de resgate ao ver um personagem, como Antônio Carlos de Brito, que reunia o que havia de melhor como artista e intelectual sendo esquecido do universo cultural brasileiro. Ele era poeta/letrista/desenhista/ ensaísta/professor/jornalista/agitador cultural e guru de muitos mais…. Com essa intenção, e junto com meu parceiro PH Souza, assumimos a bandeira moral de relembrar Cacaso e apresentá-lo aos que não o conhecem.
CF: Gostaria que você falasse sobre como foi o processo de pesquisa de material de arquivo para ser utilizado no documentário, e contasse mais especificamente sobre como se deu conta da importância da gravação de 1987 que perpassa diversos momentos do filme (e é usada como guia da trajetória de Cacaso).
PH Souza – O filme traz uma pesquisa iconográfica muito forte, representativa e inédita. Tivemos a contribuição do Antonio Venâncio e Emily Pirmez na pesquisa de imagens em movimento e fixas, respectivamente, além da nossa pesquisa enquanto diretores.
José Joaquim Salles tinha um acervo pessoal, emotivo, e da própria pesquisa que já fizera para seu livro “Na Corda Bamba”, que muito contribuiu para o processo do filme. Eu me “enfiei” na Casa Rui Barbosa, onde grande parte da memória artística e intelectual de Cacaso está guardada, assim como batalhei os acervos privados, familiares.
É importante ressaltar que a maior parte dos grafismos feitos por Miguel Kruschewsky, inseridos no filme, são inspirados e muitas vezes transportados dos cadernos inéditos do Cacaso – espaço poético de experimentações, onde o poeta mostrava inclusive talentos para os desenhos, charges, conhecidos por amigos e familiares, mas totalmente desconhecidos do grande público.
Há imagens do acervo pessoal dos familiares e de amigos gentilmente cedidos, que nos proporcionaram uma reconstrução vasta do universo do homenageado. Quanto às entrevistas de arquivo, vale ressaltar a importância de termos conseguido, através do produtor Ney Murce, responsável pelo Projeto Brahma Extra – O Som do Meio Dia, as imagens do referido evento, onde Cacaso proseia e passeia por sua obra, conversando com amigos como Maurício Tapajós, que entrevista o poeta.
Esta captação se deu cerca de três ou quatro meses antes do falecimento de Cacaso. Trata-se, portanto, de um dos últimos registros do poeta em um espaço, que em diversos momentos, refletiu, homenageou e falou da carreira e amigos. Foi natural a entrada desse depoimento pela força da fala de Cacaso e pelo seu poder de compreensão de sua própria trajetória até ali. É possível ver um cara sincero, coerente e sem afetações ou vaidades. Portanto, podemos afirmar que o filme teve este compromisso de resgatar também imageticamente Cacaso.
CF: Até pela característica multifacetada de Cacaso, o filme apresenta uma quantidade grande de entrevistados. Houve muita gente que foi ouvida e ficou fora do corte final? O processo de montagem teve como preocupação evitar a monotonia e a repetição da presença de alguns dos entrevistados?
JJS: Foram muitos entrevistados e tal escolha teve um peso tanto por essa personalidade agregadora de Cacaso – que circulou em rodas completamente diferentes com desenvoltura e profundidade, que nos fez sair de cara com uma lista de 120 nomes – quanto pela dificuldade que fomos encontrando de conseguir mostrar esses muitos Cacasos sem contar com uma memória de imagem em movimento que desse conta do poeta, letrista.
Também gostaríamos de revelar o Cacaso homem, amigo e tudo o que foi influenciando sua construção de pensamento, personalidade, que refletiram não só nas relações, mas sobretudo em sua obra. Tudo isso foi compreendido e destrinchado pela nossa montadora Fernanda Teixeira, que ao meu ver, com maestria, utilizou todos os depoimentos filmados (33) de forma orgânica e que trouxe essa fluidez do discurso, das histórias no filme.
CF: O filme de abertura do É Tudo Verdade (As Incríveis Artimanhas da Nuvem Cigana) fala de um movimento da época de Cacaso (a Nuvem Cigana, inclusive, é citada no filme). Como se relaciona esse desejo de retomada da importância da poesia marginal com as questões do Brasil de hoje?
JJS – Cacaso foi um incentivador, partícipe e um teórico dentro desse movimento da poesia marginal. Parte da turma que formou a Nuvem Cigana foi aluna de Cacaso no curso de Letras da PUC, ou frequentou suas aulas na ESDI, seus cursos livres na EAV no Parque Lage, ou frequentavam sua casa na condição de amigos.
Charles e Chacal fizeram parte da Vida de Artista, antes de montarem a Nuvem Cigana. Era um desejo do próprio Cacaso montar um “poemão” com todos os poetas da geração mimeógrafo, que acabou originando a antologia “26 Poetas Hoje”, junto com Heloisa Buarque de Hollanda. Estavam todos no mesmo caldo cultural e político.
PHS – Acho muito simbólico que neste momento político de extremos tenhamos no É Tudo Verdade uma seleção que joga luz e privilegia o discurso narrativo, o poder da escrita, da poesia e literatura, como veículo primordial de análise crítica e, sobretudo, de expressão.
Ao olhar para a obra do Cacaso, sua vida pessoal, o que mais salta aos olhos é a vontade, a liberdade de expressar o que se sente e pensa, sem ser leviano, partidarista ou raso. Cacaso jogou com as palavras em favor de um pensamento livre, em favor da ironia, da crítica ambígua e muitas vezes mordaz. Por méritos próprios e também por retrocessos de nosso país, a poesia do Cacaso sobrevive e ajuda a responder sua pergunta ao meu ver.
CÉLULA MATER [Na corda bamba, 1978]
Unidos
Perderemos
OBRA ABERTA [Na corda bamba, 1978]
Quando eu era criancinha
O anjo bom me protegia
Contra os golpes de ar.
Como conviver agora com
Os golpes? Militar?
Sessões de Cacaso na Corda Bamba no 21º É Tudo Verdade:
– 14/4 – 21h – Cinearte (São Paulo)
– 15/4 – 13h – Cinearte (São Paulo)