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“Vocês deveriam estar contentes por não entrar em Cannes”, diz crítico argentino

22/03/16 às 12:36 Atualizado em 14/02/18 as 15:39
“Vocês deveriam estar contentes por não entrar em Cannes”, diz crítico argentino

Admirador de obras recentes do cinema independente brasileiro, como Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós, e A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa, o crítico de cinema argentino Roger Koza, que mantém o blog Con Los Ojos Abiertos e é programador de três festivais de cinema (Ficic – Argentina, Ficunam – México e Hamburgo – Alemanha), acredita que os brasileiros “deveriam estar contentes” por não entrar regularmente nas principais mostras do Festival de Cannes.

A visão crítica de Roger aos grandes festivais não se aplica apenas ao evento francês, mas também a outros eventos considerados como os mais tradicionais e importantes do mundo: os festivais de Berlim, Veneza e Roterdã.

Ele enxerga uma padronização, à qual chama de “international style”, que reduz o espaço para filmes que realmente sejam “de risco”. A única ponderação positiva que o crítico faz é em relação às seções paralelas do Festival de Locarno, na Suíça.

“Os festivais ‘A’, Berlim, Veneza e Cannes, me parecem estar em uma absoluta crise, ou então assumiram que funcionam como um mercado paralelo não muito distante do Oscar”, opina o argentino.

Durante a 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o Cine Festivais fez uma longa entrevista com Roger Koza, que pode ser conferida no vídeo abaixo, realizado em parceria com a produtora Babuíno Filmes.

Se preferir ler o que o crítico disse, transcrevemos abaixo a conversa na íntegra.

 

 

Cine Festivais: No debate você citou o seu gosto pelo filme Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós. Aqui no Brasil os filmes mais arriscados/interessantes têm conseguido espaço, quando conseguem, em seções paralelas de eventos como Berlim e Cannes, ou em festivais um pouquinho mais arriscados como Roterdã e Locarno. Você acha que as competições oficiais dos festivais maiores têm se arriscado menos que as seções paralelas?

Roger Koza: Sobre os festivais que você denominou como de maior risco entre os festivais grandes, Locarno e Roterdã, tenho a impressão que cada vez têm menos espaço para o risco. Locarno ainda toma algumas decisões arriscadas, não tanto nas seções competitivas (Competição oficial e Cineastas do Presente), mas sobretudo na seção Signos de Vida. Ali é possível ver filmes de risco. No último ano estava 88:88, de Isiah Medina, provavelmente um dos filmes mais inteligentes e interessantes que vi no cinema contemporâneo recentemente.

Os festivais “A”, Berlim, Veneza e Cannes, nesse sentido que você fala, me parecem estar em uma absoluta crise, ou então assumiram que funcionam como um mercado paralelo não muito distante do Oscar. Cada vez mais os filmes premiados nesses festivais estão indo parar nas indicações ao Oscar. Isso para mim deveria ser alarmante, mas parece ser motivo de orgulho para os festivais. Eu acho que parte do inconsciente dos festivais nos dias de hoje pode ser observado no Twitter. Se um festival, como a Quinzena dos Realizadores, vive twittando que Cinco Graças (Mustang) é um filme que foi indicado ao Oscar… Eu estaria muito preocupado, no lugar deles, mas eles parecem estar absolutamente felizes.

Sobretudo a Quinzena, que foi a criação de uma seção paralela que se suponha que teria que colocar em dúvida o caráter mainstream que havia de algum modo se normalizado no Festival de Cannes. Me parece que estamos em uma situação bastante complexa e conservadora. Hoje acho que é necessária uma Quinzena da Quinzena. Para mim é absolutamente escandaloso que um filme como Cinco Graças, em primeiro lugar, esteja na Quinzena. Em segundo, que seja indicado ao Oscar e provavelmente ganhe. É um filme de um eurocentrismo espantoso a respeito de como olha para certas situações de desigualdade da mulher na Turquia.

Voltando ao caso de Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós, acho que é um filme que em outros tempos poderia ter sido selecionado para a Quinzena, para a seção Um Certo Olhar no Festival de Cannes, para Berlim, provavelmente nas seções Fórum ou Panorama. Poderia ter estado em Roterdã, em Locarno, inclusive na competição oficial. Algo aconteceu que esse filme não chega a quem decide as programações.

Quando chega, chega a um segundo da programação final, e a única possibilidade de um cineasta como Queirós é que alguém que tenha visto seu filme o passe diretamente a um programador-chave de um festival dizendo-lhe: “este é o cinema do Brasil. Este é o cinema que verdadeiramente está na tradição de (Carlos) Reichenbach, (Julio) Bressane, (Glauber) Rocha, não porque é um imitador, mas como gesto criador. Tem que selecioná-lo”. Se for o contrário, se vier pelos filtros que geralmente colocam para os filmes…

É terrível, escandaloso e obsceno que hoje os festivais, inclusive a Quinzena, para poder ter o seu filme dentro desses festivais é preciso pagar para inscrevê-lo, 170 euros. Isso é uma vergonha, um sistema de arrecadação. Faça as contas: se 1000 a 4000 filmes se inscrevem, 4000 por 170 euros, é muito dinheiro. Me parece que estamos diante de um sistema muito perverso, que de algum modo devemos questionar, e acredito que estamos excessivamente domesticados com o intuito de que isso nos pareça aceitável.

 

CF: Nessas competições oficias, o que há muito são os grandes nomes, às vezes entre aspas e às vezes não. Você acredita que há um mainstream do cinema de arte?

RK: Sem dúvidas. Há um mainstream que eu denominei, junto com Nicolás Prividera, que é um cineasta e crítico argentino. Ele em algo momento começou a falar de um “international style”, tivemos uma conversa… E sim, creio que há um “international style” de cinema entre os filmes de arte que frequentam festivais. Alguns diretores latino-americanos são paradigmas disso. Pablo Trapero, Walter Salles, Pablo Larraín. São autores que frequentam festivais estrangeiros, em geral europeus, e por consequência se replica a ideia de que os autores são estes. Eventualmente, com um pouco mais de risco, Lisandro Alonso, Lucrecia Martel. No Brasil é mais complexo, há uma resistência aos filmes brasileiros, e vocês deveriam estar contentes por não entrar em Cannes (risos). É o contrário do que dizem.

Eu entendo que é importante estar em Cannes. Como disse o Eduardo Valente (assessor internacional da Ancine), é verdade que Cannes tem o poder absoluto, é o Vaticano do cinema. E o Vaticano decide quem são os santos. Naturalmente, sempre tem que ter uma cota de filmes “de risco”. Todos os anos vai haver um filme de Alain Guiraudie, Hou Hsiao-Hsien, de Tsai Ming-Liang ou de Godard. Mas essa é a cota de risco que eles devem manter para sustentar o sistema. Não é um verdadeiro risco selecionar um filme de Hou Hsiao-Hsien. E muito menos de László Nemes, o húngaro que ninguém conhecia. É fácil jogar a carta de risco com um filme sobre o Holocausto. É o que se espera.

O que não é fácil é selecionar um filme que se arrisque formalmente e seja sobre um astrônomo que vive em Curitiba. E que sua paixão é aprender sobre o céu e as estrelas e colocar em discussão as equações matemáticas que neste momento se estudam na Europa. Pode ser qualquer coisa… Isso jamais vai entrar, porque não é aquilo que se legitimou como o que o cinema latino-americano deve mostrar.

Há autores efetivamente do panorama de cinema internacional, do “international style”, e são os que vemos anos após anos nas competições de festivais importantes.

 

CF: Você acha que isso se reflete em uma estética domesticada?

RK: Há uma estética domesticada. Há uma estética regulada. De algum modo há uma poética do “international style”, que gira em torno de três ou quatro formas de expressão. Uma é um realismo sujo, no qual há câmera na mão, imagem granulada, uma sensação de vertigem. Logo temos uma espécie de “Instagram Aesthetic of the Beauty, of the Savage”. Falo em inglês de propósito, é uma ironia. É como um bom selvagem belo. Temos filmes que têm filtros que equivalem aos iPhones. Os diretores filmam e acreditam que a realidade se vê como nos iPhones. Há filmes preto e branco em que se vê um pobre homem camponês que vive agora no centro de uma cidade e é visto trabalhando e transpirando. O plano está a certa distância, pode haver um travelling de trás para mostrar o suor de todo o corpo. E aí há uma estética de certa beleza sobre o bom selvagem, aqueles que são o reservatório da ética do mundo. É quase um disparate. Isso é outra linha, o embelezamento dos pobres e dos despossuídos, e os nobres ignorantes. Isso seria um pouco da forma.

Há uma coisa absolutamente regular. Gente que não fala, planos longos para segui-los, espaços onde não haja sinais cidadãos, despolitização em geral do que contam, e se há politização é sobre o passado, sobre a década de 70. Essa é um pouco a sintonia. Não há filmes radicais e diferentes nesse sentido.

 

CF: Você acha que essa crise que você aponta passa por todos os grandes festivais, ou você vê alguma exceção?

RK: Não vejo exceção alguma em festivais importantes. O único que tem um certo ar, em linhas gerais, entre esses, é o de Locarno. É a única zona onde há respiro. Não em todo seu conceito de programação, mas há um lugar para certo risco. Dos importantes é o único. Acredito que Roterdã, que costumava ser um festival muito poderoso nesse sentido, sobretudo com o cinema latino-americano, seleciona os mesmos filmes ano após ano. Mudam os títulos, mas sempre há camponeses sem falar, ou personagens ultraviolentos, e essa é a oscilação. Acredito que Roterdã, em relação ao cinema latino-americano, está inteiramente perdido.

 

CF: Você acredita que essa situação dá um peso maior para festivais regionais como aqui em Tiradentes, ou outros eventos do tipo em todo mundo.

RK: O produtor (Paulo de) Carvalho falou um termo chave para a circulação, para a discussão, a produção e a exibição, que é a descentralização dos centros de poder. Me parece que é por aí o caminho. Este festival de Tiradentes é uma coisa absolutamente anômala. Não é o que costumamos pensar como festivais no mundo. Estamos em região de 20 mil habitantes, não é um centro de poder econômico. Sim, vem gente de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, provavelmente, ver filmes brasileiros. Acho que é um modelo bastante inovador, não conheço muitos fora do Brasil.

O País, que tem uma cota às vezes, ao meu gosto, excessiva de nacionalismo, organiza este tipo de evento, essa é a parte boa. Esse é um foco de atenção para mim quase exemplar, de como descentralizar e estabelecer uma discussão sobre o cinema contemporâneo, nesse caso do cinema nacional. Me parece que Tiradentes, nesse sentido, está na linha de vanguarda.

 

CF: A facilidade trazida pelas câmeras digitais fez com que o número de filmes recebidos pelos curadores aumentasse substancialmente. Ao mesmo tempo, muito se diz que a influência de agentes de venda e de coproduções é decisiva para entrar em grandes festivais. Qual é a sua visão, também como programador, sobre esse cenário?

RK: É um problema. Quanto mais importante é o festival, maior a presença de agentes de venda. Há momentos que em Cannes, por exemplo, já não olhamos de que nacionalidade é o filme, mas sim quem é o agente de vendas. Então há três da Fortissimo, alguns da Wild Bunch, três da Match Factory. Sempre são essas as casas matrizes. São os McDonald’s da distribuição. Os McDonald’s de arte. Não te vendem hambúrguer, mas sim sushi e salmão.

São eles que de algum modo regulam o mercado, e que vem precedidos pelas casas matrizes das coproduções. O Festival de Roterdã, da Alemanha, o Atelier de Cannes. É uma espécie de fabricação coletiva global unificada. São feitos com casas matrizes comuns, se distribuem com casas matrizes comuns.

O festival está de algum modo relacionado… já não se discutem sobre os filmes, discute-se também quantos temos este ano da Match Factory. Isso é muito grave. É todo um sistema, é o FMI do cinema o que estamos falando, isso é muito sério.

Quanto menor é o festival, menor é a presença de distribuidores e de agentes de venda. O que significa, e isso é algo mais obsceno. Quando você dirige um festival pequeno… – não é o caso de Tiradentes, que está mostrando filmes brasileiros. Mas se amanhã Tiradentes decide agregar uma sessão de filmes estrangeiros, e tem que fazer um acordo com os agentes de venda, eles vão cobrar mais a Tiradentes que a Hamburgo, o que é escandaloso, porque pagar aqui 400, 700, 1500 euros, é escandaloso.

Frente a isso, os festivais pequenos têm mais espaço para encontrar filmes que chegam sem agentes de venda, sem coprodução, sem nada. O contraponto disso é a quantidade excessiva de filmes que são feitos hoje em dia. Na realidade me parece que este tipo de câmeras (digitais) permitiu que qualquer um possa se sentir cineasta. Essa democratização é positiva.

Ao mesmo tempo, é corrosiva, porque nem todo mundo é cineasta. Todos sabemos escrever, todos podemos escrever um e-mail, mas nem todos podemos imediatamente nos tornar escritores ou cineastas. Ademais, está em moda fazer cinema. É cool fazer cinema. Me parece que os cineastas, se querem ser cineastas, deveriam sentir mais a urgência do trabalho e a necessidade de filmar, não filmar porque é cool.

Em um universo de 5000 filmes que lhe chegam em digital, dessas 5000 devem haver 100 que são boas, 40 que são muito boas, dez que são muito interessantes e dois ou três que são obras-primas. O filme do Adirley Queirós (Branco Sai, Preto Fica) é para mim uma obra-prima. Agora, esse filme estava escondido, realmente. Por sorte, se fez visível, e correu um pouco o mundo.

A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa, praticamente circulou apenas no Brasil. Eu a programei na Argentina, no Ficic, e no Festival de Hamburgo, mas não foi um filme que rodou o mundo. O filme foi feito graças à existência dessas câmeras (digitais), mas ali há alguém que trabalhou por anos aqueles jovens, entendeu o espaço, escreveu junto com eles o roteiro, e que finalmente fez o filme. Aí há trabalho, necessidade de cinema, e isso é o que temos que encontrar, mas é bastante difícil.

 

CF: Qual é a sua visão sobre o atual momento do cinema brasileiro?

RK: Em princípio o que penso é que a geração de (Glauber) Rocha e (Julio) Bressane, este que segue e tem alguns discípulos, como (Bruno) Safadi… Me parece que entre essas duas gerações houve uma grande descontinuidade, porque no meio dessas gerações houve um golpe de Estado. Isso em toda a América Latina gerou uma descontinuidade geracional. Há um salto geracional entre eles e nós.

Agora me parece que o Brasil tem duas gerações em continuidade, a de Walter Salles e a de Karim Aïnouz, ou agora de Adirley Queirós… De 2000 para cá há duas gerações justapostas que estão buscando, mas ainda não é muito claro qual é o rumo do cinema brasileiro.

O que está claro é que na década de 60, sobretudo no final de 60 e 70, havia um movimento que era algo do mundo, e que o Brasil incorporou, no qual a figura de Rocha era a figura de intersecção. Ele entendeu muito bem que tinha que roubar certas expressões… certas estéticas da Europa, apropriar-se delas, mesclá-las com tradições daqui e fazer algo completamente distinto.

Na Argentina também havia cineastas dessa natureza, mas me parece que esta descontinuidade fez com que os cineastas do nosso tempo, tanto no Brasil e na Argentina, são filhos sem pais, fazem um cinema da orfandade. Eles estão reinventando, constituindo uma nova tradição, e alguns olham novamente para trás porque sabem que seus pais existiram e foram assassinados, simbólica ou fisicamente.

Hoje me parece que o mais interessante que encontro do cinema feito no Brasil são esses filmes laterais: Branco Sai, Preto Fica, Avanti Popolo, de Michael Wahrmann, que é um caso estranho, pois é um uruguaio que viveu em Israel, se sente brasileiro e filma aqui. Me parece que é um filme importante.

Me interessa o que faz Allan Ribeiro, é um cineasta que trabalha em uma zona muito peculiar, que mescla algo de vanguarda com algo extremamente popular. Me interessou em certa medida, entre o que vi recentemente, um filme de gênero, A Misteriosa Morte de Pérola. É um filme de uma hora. Acho que aí Guto Parente trabalha com uma excessiva tensão formal um cinema de gênero. Acho que a primeira meia hora é notável. Na segunda metade, quando o ponto de vista muda, o filme perde um pouco da intensidade, mas me interessa saber o que vai fazer a partir de agora este diretor, há ali algo para prestar atenção.

O ponto de intersecção desse cinema de autor que nasce hoje é o caso de (Gabriel) Mascaro. Ele está em uma linha de risco. Dizer que há ali um cineasta é importante, porque muitos filmam, mas nem todos são cineastas. Ventos de Agosto foi um filme em que se viam coisas geniais e outras que pareciam viagens turísticas muito cool pelo Norte (sic) do Brasil.

É charmoso a moça no barco, nua, quem não quer ver esta moça assim? Todos (querem), inclusive os que não têm como objetivo se relacionar com mulheres. Se banhar com Coca-Cola? Muito cool. Ver que a terra respira? Muito cool. Mas há momentos em que se entra em uma zona estranha. O filme tem um pano de fundo quase filosófico, que está relacionado à finitude, com as mortes, dos homens, dos animais… Me parece que ele está no risco.

No novo filme de Mascaro, Boi Neon, acho que ainda mantém alguma coisa estranha, do “international style”, mas há um olhar. Esta cena que poderia ser lamentável e patética termina sendo genial, que é a cena final, em que há um momento de sexo entre uma grávida e o personagem principal. A ideia de que um vaqueiro tenha o sonho de ser designer de moda é uma ideia interessante. E filma bem, além de ter um diretor de fotografia extraordinário, que é o mexicano que agora está trabalhando com o Apichatpong Weerasethakul.

Ele é o exemplo de cineasta que está em uma zona de risco. Um tipo muito capaz, um cineasta com um olhar, que é reconhecido no âmbito internacional e que começa a ter certos condicionamentos. Minha pergunta é: ele poderia fazer hoje um filme como Doméstica? Ou o anterior, Avenida Brasília Formosa. Acho que já é difícil para ele propor um filme assim. O ideal seria que não perdesse isso, e que siga em evolução.

Este é um pouco do panorama do que tenho visto. E o cinema industrial brasileiro é horrível. Vi algumas coisas que me parecem terríveis.

Queria falar que A Misteriosa Morte de Pérola, me parece que é um filme que pode ser posto em discussão com outro filme que por aqui teve grande êxito, mas que para mim é ruim, terrível, que é O Lobo Atrás da Porta. Esse filme é abjeto, trabalha de uma forma o gozo da violência, que pouco tem a ver, por exemplo, com o trabalho do Tarantino. É outra maneira de se colocar. Acho que ali há justamente o cinema da crueldade, da sordidez latino-americana, em chave de gênero.

Em contrapartida, o que se vê em A Misteriosa Morte de Pérola é distinto, por isso parece que são dois filmes para se por em choque, que trabalham o gênero de perspectivas estritamente distintas e quase opostas.

 

CF: Aqui no Brasil os filmes são feitos basicamente com apoio de editais. É assim também na Argentina? Você acredita que isso pode formatar de alguma forma o olhar dos cineastas?

RK: Não sei no Brasil, mas tenho a impressão que o dinheiro que os cineastas recebem não resulta em uma formatação dos filmes. Uma vez que o cineasta tem o dinheiro na mão, acho que não se formata nem à estética nem aos temas. Em última instância dizem que vão fazer isso e fazem outra coisa depois. Um burocrata, por mais boas intenções que tenha, é um burocrata. A princípio podemos dizer isso.

Na Argentina é assim. Para os filmes de ficção há um sistema para recepção dos fundos, para o campo do documentário há escalas de importância em um sistema de produção, e não há nesse sentido, no meu ponto de vista, nenhuma forma de modelar esteticamente nem idelogicamente os filmes.

Os problemas dos fundos passam a existir quando eles são de coprodução de festivais. Aí passam a haver sim decisões de outro estilo, que mudam o filme. Mas se é só o Estado que dá dinheiro… o que acontece é que muitas vezes para o Estado dar dinheiro deve haver um coprodutor estrangeiro, é aí que está a armadilha.

 

CF: Você está com o catálogo do Festival Fronteira nas mãos. Há dois anos você participou como júri do Olhar de Cinema, em Curitiba. Queria que você comentasse a sua impressão sobre o evento.

RK: Bom, eu não tenho interesse em ir ao Festival do Rio, por exemplo, que dura duas ou três semanas, no qual acontece uma confusão que existe em muitos festivais latino-americanos que acham que ter muito é o que vale. Há uma substituição da qualidade pela quantidade. Então não me interessa ir ao Festival do Rio, tampouco ao de São Paulo (Mostra). Se me convidam, eu vou, porque sempre há filmes para ver, mas são festivais elefantes, não são aqueles em que particularmente eu acredito que alguém pode encontrar com os pequenos filmes que não são pequenos.

Mencionei “elefante”, e há um famoso texto de Manny Farber, um crítico americano extraordinário, que define os “elefantes brancos” em contraposição com os “cupins”. Acho que há “festivais cupins”, que comem o poder aos poucos e sobrevivem. Acho que esses são Curitiba (Olhar de Cinema), Fronteira, Tiradentes… Eu, como programador de três festivais, prefiro ir a estes.

Por mim, se me convidam para cá, venho todos os anos. Jamais entrei nos últimos quatro anos, exceto no início da minha carreira, para ver o que estão exibindo no Festival do Rio. Em Tiradentes fui pesquisar desde que vi o filme do Adirley Queirós.

Quando vi que um festival havia estreado mundialmente Branco Sai, Preto Fica e A Vizinhança do Tigre, disse: “quem são, o que é?”. Entrei no site e não entendi muito bem o que era, depois fui entendendo.

O de Curitiba é um pouco mais ambicioso, é um festival internacional, mas aí acho que há um ponto de resistência absoluto a respeito de um cinema que circula nos festivais e que vai homogeneizando as estéticas, os problemas que os filmes apresentam e um tipo de espectador, porque um festival modela seu espectador.

Por isso vamos terminar dizendo que o grande cinema de autor é O Filho de Saul, ou Dheepan, de (Jacques) Audiard, porque estiveram em Cannes.

Me parece que o cinema de autor de hoje está nas periferias ou escondido.

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