Pare, sente e escute o que os descendentes dos quilombolas tem a dizer sobre suas terras e seus direitos! Eis o apelo urgente do documentário Remanescentes, de Raphaël Grisey. Os escravos fugidos dos engenhos de açúcar se refugiavam nos conhecidos quilombos. Nas serras, pedaços de mata e terrões, pequenas vilas residenciais cresceram e ali ficaram. Querem, agora, preservar suas características culturais e sociais e, principalmente, suas terras – talvez a principal base de uma identidade coletiva no mundo de hoje. Há mais de 2 mil comunidades quilombolas no território brasileiro, várias delas envoltas em conflitos por áreas que, apesar de garantidas a elas pela Constituição Federal, são alvos de interesse da especulação imobiliária, de fazendeiros, de empresas de mineração.
Ao que parece, a primeira intenção de Grisey é registrar o tamanho do imbróglio. São vários os quilombolas articulados que explicam à câmera desde a natureza do problema até as complicações mais recentes. Discursam com paixão, certos de sua dignidade, vibrando com a luta. Estamos num espaço em que a militância mais institucionalizada – aquela ligada a partidos políticos e organizada hierarquicamente – ainda não chegou. Ou seja, não há a artificialidade da representação de palanque, que vomita um discurso pronto no megafone e anima uma claque cuja conexão à causa nem sempre é orgânica. Aqui não, as falas dos quilombolas emocionam quem as ouve porque a indignação que estão expressando vem do fundo, é de verdade.
São também inúmeras as assembleias e debates que tentam reunir os diversos atores – quilombolas, antropólogos, agentes do Incra – em conflito. Discussões ásperas, incompreensão de processos legais, promessas não cumpridas e acusações fazem parte dessa realidade e Grisey as filma com o melhor da tradição do cinema de observação, entregando, antes de tudo, energia. É importante frisar, porém, que não há a inocência epistemológica de achar que a câmera está registrando a vida como ela é. A câmera de Grisey presta atenção ao que está à sua volta e sabe que, para que os pedaços concomitantes da cena à sua volta rendam sentido maior, a câmera às vezes precisa segui-los.
Um exemplo: em uma das assembleias mais beligerantes, uma mulher, aflita, sai da sala, abandonando a discussão. A câmera fica mais um pouco, mas depois a segue e a encontra do lado de fora, conversando com outra participante. Por algum tempo, assistimos a esse diálogo sem ouvi-las; o áudio segue sendo o da assembleia. Apenas depois o som direto chega e entendemos a queixa específica. Não importa se a questão foi logística (o microfonista demorou para seguir o câmera) ou foi uma solução de montagem. O efeito de sentido da sequência – alusivo à sobreposição de vozes, silenciamentos e rupturas – é expressivo no retrato da complexidade em torno do tema.
Há outras tônicas em Remanescentes. Quando descansa das discussões inflamadas, o olhar documental ganha uma missão descritivista e registra bem o espaço, fonte da celeuma. Em outras sequências, é a poesia do cinema que está presente ao propor analogias imagéticas. E há, ainda, espaço para discussões conceituais sobre as raízes do problema, como a definição de raça.
A recepção crítica ao documentário certamente alertará para uma confusão de registros, mas a mistura tem seu poder de representação por adequar as formas à busca da espiritualidade e do caráter cultural dos quilombolas. Sem nossa terra, nossa cultura desaparece, pensa uma das entrevistadas. O documentário de Grisey liga o foco sobre a questão, num doc cidadão que não deixa de ser ótimo cinema.
Nota: 9,0/10 (Excelente)
* Filme visto na 9ª CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte