O catálogo da Mostra Cinema de Montagem, distribuído despretensiosamente no início da sessão de abertura do evento, se revela mais como um pequeno livro sobre montagem do que como um mero guia com sinopses dos filmes da programação. Há 15 textos breves escritos pelos mais diversos montadores brasileiros, desde Eduardo Escorel, advindo do Cinema Novo, até Jordana Berg, parceira de longa data de Eduardo Coutinho.
Em comum, entretanto, é o objetivo da maioria deles em tentar definir, muitas vezes sem qualquer resposta exata, o que de fato é a montagem, uma indagação talvez menos comum em outras funções do cinema. E é dessa reflexão existencial que parece se dar a faísca para a mostra, que fica no Caixa Belas Artes, em São Paulo, até o dia 23 de setembro, e depois fará a sua segunda edição no Rio de Janeiro entre os dias 6 e 18 de outubro (saiba mais no site oficial do evento).
Se a montagem tem um certo ar de mistério até para os próprios montadores, não é de se espantar que seja uma etapa pouco valorizada pelo público e pela história do cinema, exceto por alguns casos pontuais. Muitas vezes, a boa montagem é considerada aquela que inclusive é imperceptível ao espectador, na qual nenhum corte é capaz de chamar sua atenção para além da imersão no enredo.
Embora o ofício possa ser visto como uma mera ordenação de cenas já roteirizadas e descarte do material indesejado, a realidade é em geral mais complexa que isso: a ilha de edição é o lugar onde o filme tem uma terceira oportunidade de ser escrito, após o roteiro e a filmagem, em um verdadeiro laboratório experimental de tempo, ritmo, intensidade e centenas de decisões feitas a partir da relação diretor-montador – na medida em que o material bruto fornecer essas possibilidades, é claro.
O próprio termo “montagem”, escolhido para dar título à mostra em vez do semelhante “edição”, traz uma certa carga de significado que aponta nesse sentido. A “montagem”, palavra de origem europeia, remete aos tempos da moviola, nos quais os negativos eram cortados e colados manualmente com fita adesiva, uma construção de certa forma mais cuidadosa e artesanal do filme, enquanto a “edição” vem da adaptação da função para a plataforma digital, nascida nos filmes e comerciais norte-americanos, o que passaria uma impressão de algo mecânico e insensível, contradizendo a ideia de que a montagem é um profundo exercício da percepção sobre o que pode de melhor ser feito com o material captado.
A curadoria da mostra, feita por Eva Randolph, Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes, busca explorar esse desejo de decifrar a montagem na seleção dos filmes. Para isso, o trio de montadores não se atrelou a qualquer período histórico ou país, garimpando diversos filmes brasileiros e estrangeiros que possam enriquecer a gama de possibilidades dos tipos de montagem, com preferência a filmes raramente ou nunca exibidos no Brasil, o que deu espaço a obras em geral distantes do mainstream e que tiveram certa liberdade para uma maior criação e desenvolvimento no processo de pós-produção.
Uma exibição de Limite (1931), dirigido e montado por Mario Peixoto, foi responsável por abrir a programação, acompanhada pela música improvisada do Coletivo Abaetuba, favorecendo uma espécie de montagem ao vivo no que diz respeito a uma inédita combinação de som e imagem.
Também ganhou espaço na mostra o formato de curta-metragem, entre eles O Dedo (2005), do português Luís Miguel Correia, que aborda de forma cômica os casos em que o montador não é o diretor e é preciso haver uma certa cumplicidade para construir uma boa relação entre os dois, evitando que um corte excessivamente o trabalho – ou um dedo – do outro.
Como em 71 Fragmentos de Uma Cronologia do Acaso (1995), de Michael Haneke, em que o destino é desmontado e remontado na busca de justificar, sem sucesso, assassinatos em um banco, a mostra também disseca seu objeto de estudo, mas não pretende fornecer uma conclusão fechada sobre o ofício da montagem. Ela é indeterminada em sua essência: como o próprio tempo, não há como definir por onde um filme começa a ser construído e quando ele termina absolutamente de ser polido. As possibilidades são infinitas.
Mesmo com significado em aberto, o que fica em evidência é a importância da montagem, escancarada principalmente pelos filmes experimentais em exibição, em que as barreiras entre as funções são quase fundidas em uma única, responsável por decidir como trabalhar em cima de um material muitas vezes já existente há anos.
Com o convite a masterclasses e mesas de debate gratuitas, essa mensagem de relevância é reforçada e faz do evento um lugar em que o montador se sente bem representado e no qual o público geral tem a oportunidade de se debruçar em um universo pouco explorado até então.