Em alguns lugares da borda litorânea, na foz oceânica dos rios, o acúmulo de sedimentos forma depressões que são inundadas por água salgada, ligando-se ao mar por canais. No vocabulário geomorfológico, elas recebem o nome de laguna, termo que também batiza a cidade catarinense que ambienta Sermão dos Peixes, novo documentário de Cristiano Burlan, de Hamlet e do premiado Mataram Meu Irmão.
Somos apresentados à Laguna pelo mar, lentamente, num longo plano-sequência do ponto de vista de quem chega ao local por uma balsa. Desembarcados, logo se sugere que aquela comunidade é pequena, subdesenvolvida e, o principal, é uma cidade de pescadores. O mundo gira em outra rotação num lugar em que a atividade principal é a pesca. Com um relógio que privilegia a madrugada e a manhã, o pescador local é um viajante cotidiano, convive com chegadas e partidas diárias.
Numa observância naturalista, Burlan registra essas dinâmicas de maneira desapaixonada: os ruidos de motor e maquinarias são perenes, o navegar do barco é moroso e dormente, o mar é dessaturado, o horizonte não resplandece e se anuvia quase sempre. Em oposição a – ou complementando – essa perspectiva formal, inserções líricas em preto e branco buscam sensorialidade nas espumas de ondas e no quebrar do mar nas pedras.
Em Laguna, o alvo dos pescadores é a tainha, peixe de águas quentes. Os botos, também presentes por ali, perseguem as tainhas até quando as águas mais rasas e as pedras se tornam obstáculos para eles. É quando o pescador joga a rede e encesta os peixes. Essa parceria entre homem e boto dá tom fabular à narrativa e é forte em sua alegoria pois o boto, no folclore amazônico, era aquele que se transformava num rapaz elegante, trajando terno e chapéu brancos, disposto a seduzir moças, engravidá-las, levá-las para o fundo do rio, entre outras variações da lenda. Era, portanto, um inimigo, ou concorrente, dos homens de um vilarejo.
O longa de Burlan, além de fazer essa reversão, mostra um ambiente masculinizado, sombreado pelo tédio e um tanto perdido no tempo. O Sermão de Santo Antônio (do Padre Antônio Vieira), inspiração para o título, brota com significados múltiplos. No texto, o padre tipifica peixes, enumerando seus vicios e vaidades, com óbvia pretensão metafórica. A crítica destinava-se à prepotência dos colonos, que viviam da exploração dos mais fracos (os índios), mas eram subjugados por outros (os portugueses da metrópole), em estrutura tão voraz quanto a cadeia alimentar marítima, onde o tamanho do peixe determinará seu predador e sua presa.
A apresentação de pequenos conflitos – como a legislação limitadora de alguns tipos de pesca e os servidores aposentados que começam a pescar e ameaçam o ganha-pão dos pescadores – vai, sutilmente, indicando Laguna como um microcosmo das relações sistêmicas que estabelecemos com o outro a fim de manter nosso lugar numa estrutura.
Nota: 8,0/10 (Ótimo)
Sessões de Sermão dos Peixes no Festival de Cinema Latino-Americano:
– 7 de agosto – Cinusp – Cidade Universitária – 19h