Muito antes da tragédia que vitimou o então candidato a presidente Eduardo Campos e abriu possibilidade para novos significados sobre o filme (leia matéria sobre isso aqui), o curta-metragem Em Trânsito, de Marcelo Pedroso, se tornou uma importante obra que problematiza a questão do modelo de desenvolvimento econômico adotado pelos governantes brasileiros nos últimos tempos.
Em entrevista concedida ao Cine Festivais antes da morte de Eduardo Campos, Marcelo Pedroso falou sobre o processo de criação do filme, que está na programação do 25º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, e comentou a repercussão que ele teve em Recife. Leia a seguir toda a conversa com o diretor.
Cine Festivais: Como surgiu a ideia para o filme Em Trânsito e como a concepção do projeto foi mudando ao longo do processo de criação?
Marcelo Pedroso: A ideia inicial era fazer um documentário numa concessionária de carros do Recife. A gente queria filmar durante uma semana as pessoas no processo de negociação de compra de carros, escolhendo acessórios, negociando o número de parcelas. Queríamos que o filme terminasse com a imagem de um grande engarrafamento.
Depois que conseguimos a aprovação no edital, porém, achamos que esse recorte não era suficiente, e que mais questões precisavam entrar nessa equação. Então começamos a desenvolver um roteiro ficcional em que articulamos uma crítica ao modelo de desenvolvimento econômico do país nos dias de hoje, que privilegia a produção e o consumo industrial. A indústria automobilística é um grande elemento desse modelo e o filme busca pensar esse papel do Estado enquanto um propulsor do desenvolvimento econômico no Brasil.
CF: Geralmente o cinema trata tema políticos de maneira genérica ou alegórica. Por que você optou por usar as imagens e falas de políticos reais (Dilma Rousseff e Eduardo Campos)? De que modo esses políticos fazem parte desse sistema que você critica?
MP: Essa foi uma das escolhas mais difíceis do filme. A decisão de usar a imagem do Eduardo Campos demandou muito tempo. Eu tinha, evidentemente, a opção de colocar uma figura genérica, de um politico qualquer, representando o poder, mas, depois de muito debater com a equipe do filme, a gente chegou à conclusão de que queria que o real deixasse uma impressão no filme, que ele dialogasse com as coisas que estão acontecendo hoje.
Eu queria tensionar um pouco a esquerda brasileira por conta de uma série de novas diretrizes que entraram em sua pauta a partir do momento em que começou a chegar ao poder. O Partido dos Trabalhadores, por exemplo, teve a sua origem nas greves dos funcionários da indústria automobilística do ABC paulista, e de repente você ouve a presidente Dilma Rousseff afagando essa mesma indústria em uma fala no Salão do Automóvel de São Paulo.
Então há uma série de redirecionamentos históricos que a gente queria que o filme estivesse impregnado deles, e não que ele fosse algo genérico. Acho que as coisas exigem que a gente reflita sobre elas a partir dessa dimensão do real. Esse é o cinema que a gente acredita e está querendo fazer.
CF: O filme foi financiado através de um edital do governo de Pernambuco e traz uma crítica direta ao então governador do estado. Houve algum tipo de pressão após a finalização do curta-metragem? Essa era uma questão para você?
MP: Como eu disse, nós não começamos esse filme com essa intenção. Em todo caso, depois que o projeto mudou de concepção, ele serviu para testar os limites desse financiamento. Hoje o Estado brasileiro é o grande fomentador financeiro do cinema, então para nós era importante tentar aferir exatamente qual é o grau de independência que os realizadores têm e o quanto os filmes, uma vez prontos, servem ao Estado e aos governos que o ocupam.
Felizmente, a gente não teve nenhum tipo de represália nem de perseguição do governo. O filme foi feito, lançado, e ganhou prêmios inclusive no FestCine, que é financiado pelo governo. Desse ponto de vista, a gente não sofreu nenhum tipo de objeção à realização do filme tal como ele foi feito.
CF: Por que temas ligados ao urbanismo são muito presentes no cinema do Recife e como Em Trânsito se diferencia nessa questão?
MP: Acho que isso é uma questão aqui porque o urbanismo que a gente está vivendo em Recife é catastrófico. Então, evidentemente, tem um grupo de pessoas enorme, não só do cinema, que está reagindo a isso. A cidade e o estado conheceram um boom econômico a partir dos anos 2000, e essa riqueza tem um impacto na organização social, na vida coletiva. Isso atingiu um ponto muito alto a partir da especulação imobiliária e da verticalização vertiginosa que aconteceram nos últimos anos.
Muitos filmes debatem isso falando da verticalização e da mudança de paisagem da cidade. O que Em Trânsito faz é debater um pouco a questão urbana a partir do modelo de transporte, com foco no engarrafamento, na estagnação da mobilidade urbana, a partir desse modelo que privilegia o transporte individual.
Penso que o que está acontecendo no Brasil corresponde a um ideário da sociedade brasileira como um todo, tanto da direita quanto da esquerda, já que essa noção de progresso está sendo disseminada há muito tempo, até antes da Ditadura Militar.
CF: Como foi a reação da plateia do Recife ao filme e como ele se ligou ao movimento Ocupe Estelita?
MP: O filme foi lançado no festival Janela Internacional do Cinema do ano passado, em uma sessão no Cine São Luiz lotado. O curta recebeu uma ovação grandiosa, as pessoas já estavam aplaudindo de pé antes de o filme terminar, rolou uma comoção muito grande.
Ai o filme fez carreira em festivais e eu estava segurando o lançamento na internet, porque tinha um pouco de receio que o curta sofresse uma apropriação política por setores ainda mais conservadores que aqueles que a gente estava criticando.
Nesse momento, o Cais José Estelita, lugar histórico da cidade de Recife, era alvo de um projeto pernicioso e agressivo das construtoras, e em maio passado, no dia que a demolição do cais foi iniciada mesmo sem alvará, um grupo de pessoas realizou uma ocupação permanente do local.
Acho que foi um dos momentos mais lindos da historia recente do Recife, o movimento chegou a juntar 10 mil pessoas para debater sobre a cidade, ver shows, ver filmes… a cidade cresceu muito do ponto de vista democrático, redescobriu uma possibilidade de mobilização popular, mas no dia 17 de junho fomos covardemente expulsos do local pela força da repressão policial enviada pelo governo do estado.
Como já havia uma demanda para liberarmos o filme na internet, decidimos que aquele era o momento ideal para isso e fizemos isso demarcando que estava acontecendo em apoio ao movimento. Em três dias houve mais de 8 mil acessos e passamos das 15 mil visualizações totais. (NR: O filme foi retirado do ar após a morte de Eduardo Campos, como Pedroso contou na outra entrevista que concedeu ao Cine Festivais)
CF: Como você escolheu o protagonista de Em Trânsito?
MP: Quem me apresentou ao Elias foi uma colega da época em que eu fazia mestrado. Já tinha feito um filme de três minutos com ele para um projeto chamado Vurto, e fiquei impressionado com o domínio de cena dele. Quando o roteiro do Em Trânsito ficou pronto, nós fomos visitá-lo e decidimos que ele era a pessoa certa para o filme.
O Elias continua morando na rua atualmente. Ele mora em um bairro do Recife há aproximadamente seis anos, tem apoio dos moradores do local e uma rede afetiva e social em torno que ele não quis abrir mão. Até chegamos a procurar uma casa para ele. Pagamos o cachê pelo filme e repartimos o dinheiro quando o filme recebe alguma premiação. Nós ainda somos próximos, eu o visito de vez em quando e mantivemos a nossa relação.
CF: Conte um pouco sobre o longa-metragem Brasil S/A e comente a seleção dele para o Festival de Brasília.
MP: Em Trânsito e Brasil S/A são filmes irmanados que nasceram da mesma inquietação e de uma reflexão sobre o Brasil dos dias de hoje, apesar de terem várias diferenças. O longa-metragem é uma ficção alegórica em que os personagens correspondem a arquétipos de um certo modo de vida no Brasil.
A seleção para Brasília foi muito massa, não só pelo espaço e pela oportunidade de lançar esse filme na capital federal em tempos de eleições e pós-Copa do Mundo, mas também pela qualidade da curadoria. Acho que o festival fez um gesto de olhar para um tipo de cinema diferente. A lista tem vários cineastas que eu admiro o trabalho e do qual eu sou próximo. Espero que o diálogo com os outros filmes seja bem interessante.
>>> Confira a cobertura do Cine Festivais para o Festival de Curtas de São Paulo