“Realizar o filme me fez reatar laços que estavam apenas suspensos, esperando para serem resgatados.” É assim que o cineasta Douglas Soares define a experiência de voltar ao Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, onde passou boa parte da adolescência. Além de sua própria vivência no conglomerado de favelas, foram as histórias contadas por seus tios e avós que encheram seu imaginário de relatos históricos e lendas assustadoras. Hoje, ele as transmite às novas gerações – já afastadas da tradição oral – por meio do curta-metragem Contos da Maré, que aposta num mosaico de relatos fabulosos ilustrados a partir do hibridismo entre ficção e não ficção.
O filme, que recebeu o prêmio de melhor documentário em curta-metragem no último Festival de Brasília, será exibido no 25º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. Antes do evento, que acontece entre os dias 20 e 31 de agosto, o diretor Douglas Soares conversou com o Cine Festivais sobre o que o motivou a filmar Contos da Maré e falou a respeito da sua relação pessoal com curtas-metragens e documentários. Leia a seguir a entrevista completa.
Cine Festivais: Muitos documentários com requintes autobiográficos parecem girar em torno da construção de uma identidade. Arrisco dizer que é como se, no resgate da memória viva do Complexo da Maré, por meio de seus conhecidos e familiares, você buscasse a si mesmo. Isso aconteceu em algum nível? Por que você resolveu fazer essa busca do passado em seu filme?
Douglas Soares: Acho que mais do que tentar contar uma história biográfica e pessoal, eu pretendia contar histórias para uma geração mais nova, e que vive na favela. Desde 2007 senti a necessidade de fazer este filme. Constantemente eu me lembrava das histórias que meus tios e avós contavam, de quando chegaram no Complexo da Maré e de como a favela se ergueu. E, por ser o primeiro neto de minha família materna (que mora quase toda no complexo), comecei a perceber que meus primos mais novos, aos poucos, iam sabendo cada vez menos destas lendas urbanas. Resgatá-las serviu como registro e memória para eles.
CF: Como é sua relação com o Complexo da Maré hoje? Realizar Contos da Maré mudou sua maneira de ver o local?
DS: Até os meus 14, 15 anos, eu frequentei bastante a favela. Meus pais moravam em outro bairro da zona norte do Rio, mas, com a chegada da minha adolescência e o ritmo acelerado da minha formação escolar e universitária, houve um afastamento natural desse núcleo familiar. Realizar o filme na Maré me fez reatar laços que estavam apenas suspensos, esperando para serem resgatados. Também serviu para que eu percebesse os avanços e mudanças geográficas que o espaço sofreu nos últimos anos.
CF: Contos da Maré também parece nos mostrar a importância da imaginação como algo complementar à realidade e essencial à composição de nossa memória. Transferindo a relação para o modelo narrativo de seu filme, qual a importância da ficção e seus recursos num documentário como esse? De onde veio a ideia de pedir que os entrevistados colocassem máscaras relacionadas aos contos que narravam?
DS: Sempre pensei que o uso da “ficção” e a fabulação, nesse curta em específico, seriam necessários para atingir os climas e intenções que eu propunha. Dentro de um curta com estrutura clássica documental, justificada pela narrativa oral que é inerente à propagação de lendas e contos, colocar os personagens para interagir com o espaço, personificando as próprias histórias narradas, seria o diferencial dentro da narrativa do documentário. Ligaria, assim, os personagens ao ambiente que os fez brotar.
CF: Em Contos da Maré, é notável sua preocupação em criar uma atmosfera alusiva ao teor sombrio e sobrenatural das lendas. Com a exceção dos filmes de Marco Dutra, Juliana Rojas e outros poucos nomes, os gêneros que trabalham o clima de suspense, o terror psicológico ou o horror são muito pouco explorados no mercado brasileiro. Por que você acha que isso acontece? Você pretende se aprofundar na investigação desses gêneros em sua carreira?
DS: Juliana Rojas e Marco Dutra certamente são referências para este curta. Sou um fã desse cinema de gênero que eles realizam, e adoro filmes de terror e climas, mas não é uma linha narrativa na qual eu pretendo me aprofundar. Também não saberia responder o porquê de o gênero ser pouco investigado na cinematografia brasileira. Talvez devamos buscar um terror mais nacional, mais nosso, e menos espelhado no que o cinema americano realiza. Nisso, Ju e Marco são imbatíveis.
CF: O curta-metragem ainda é muito visto como uma etapa transitória, um passo da aprendizagem necessária para se fazer um longa-metragem. Contos da Maré, além de curta, é documentário, também um gênero pouco valorizado. Como é sua relação com o curta-metragem e com o mundo dos documentários? Você ambiciona fazer um longa de ficção?
DS: Ainda que eu tenha escrito roteiros de ficção para outros realizadores, as minhas ideias como diretor são sempre para documentários. Há algo que me excita nas histórias reais, na possibilidade de manipular o que parece verdadeiro, mesmo que o tratamento final seja bastante ficcional. Por enquanto, as histórias imaginadas são possíveis e felizes no formato do curta-metragem. Quando surgir algo maior, e eu me sentir preparado para tal, certamente será o momento do longa. Algo que, no momento, eu não ambiciono.
CF: Esta será sua primeira vez no Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo? Como é participar de uma mostra voltada apenas para esse formato?
DS: Eu acompanho o Festival de Curtas desde 2007, como público. Em 2011, participei pela primeira vez com o filme A Dama do Peixoto, que dirigi junto com Allan Ribeiro (que, neste ano, também está com seu novo trabalho, O Clube). Contos da Maré é meu terceiro curta-metragem, e poder participar com ele num festival voltado para o formato curta-metragista é se sentir melhor recebido. Quando que, em outro grande festival, um curta teria a atenção concebida como nessa entrevista, por exemplo? Em festivais como esse, me sinto bem entre amigos que realizam e buscam coisas parecidas, mesmo que por caminhos diferentes.
Leia também:
>>> Entrevista com o diretor Allan Ribeiro