Arma, vírus e cinema
No terço final do documentário A Invenção do Outro (Bruno Jorge, 2022), integrante da seção Exibições Especiais do 12º Olhar de Cinema, um grupo de indígenas da etnia Korubo vê sua própria imagem exibida na tela de um computador. A imagem que eles veem, nós não vemos; em vez delas, os rostos felizes, curiosos, um pouco desconfiados, mas aparentemente tranquilos dos personagens que acabaram de se reencontrar após alguns anos de afastamento. A cena é bastante emblemática, já que o documentário se propõe a filmar a maior expedição da Funai das últimas décadas na Amazônia. O objetivo da missão era tentar encontrar e estabelecer o primeiro contato de duas partes do grupo familiar dos Korubos, que estavam separados há algum tempo por conflitos entre aldeias.
A Invenção do Outro traz no título o difícil, porém inevitável encontro de alteridades, ontológico tanto em relação à atividade etnográfica quanto à prática cinematográfica, e tem consciência das contradições inerentes a este choque. O filme inicia com a imagem do desconhecido: um barco atravessa um rio de águas turvas. Chama a atenção logo no início o formato scope escolhido para filmar esta jornada. Aqui a paisagem dividirá o protagonismo com os rostos, muitas vezes filmados em close, no canto da tela, friccionando a relação meio/indivíduo/coletivo. Somos apresentados aos personagens: alguns funcionários da Funai, bastante adaptados a suas funções, que dominam a língua indígena da etnia, e os indígenas que parecem familiarizados com aquele universo estrangeiro: “Vocês já tão esquecendo zarabatana, né?”, diz um funcionário da Funai diante da caça de uma anta. “Arma é pra matar anta, ave é zarabatana”, responde o indígena empunhando um rifle que os acompanhará durante todo o trajeto.
A relação atávica entre cuidado e controle transparece no filme de Bruno Jorge, que já havia se aventurado a documentar outro encontro radical entre indígenas sem contato com a civilização branca em Piripkura (codirigido por Mariana Oliva e Renata Terra, 2017). Mas se na outra ocasião o diretor estava preocupado em realizar um filme político militante ao denunciar as relações entre o desaparecimento de etnias indígenas pelo desmatamento e a grilagem de terras, em A Invenção do Outro a sua atenção parece se voltar para o encanto e as contradições do encontro.
Jorge filma as encenações de batalha e o ritual do encontro entre os Korubos com certo fascínio, ao mesmo tempo que parece não confiar na força imanente daqueles corpos. A presença evocada pelos cantos, ritmos e movimentações ao contarem uma história impregna as imagens, mas o diretor adiciona um efeito sonoro de suspense e algumas câmeras lentas no intuito de reforçar o caráter espiritual dessas práticas. A força que emana dos corpos performando a vida parece não bastar para a narrativa que o diretor quer estabelecer. Aqui, o encontro com o cinema também é fatal. Ao adicionar elementos explicitamente narrativos em alguns momentos chave do documentário, Jorge evidencia também a violência inevitável que acompanha o olhar do outro por meio da narrativa cinematográfica àquele contexto.
Na primeira parte do filme, Jorge filma as interações entre os funcionários da Funai e os indígenas Korubo. Dois momentos são exemplares em apresentar a violência da relação inevitável entre cuidado e controle. Primeiramente, as sequências dos momentos de alimentação do grupo, que, junto com os animais caçados, consomem arroz e outros alimentos trazidos pela comitiva branca, satisfeitos com a abundância e a facilidade de acesso dos produtos. Em outro momento, já após o encontro com o grupo isolado, um médico da Funai examina e medica os indígenas sem contato. “Também fiquei com medo no meu primeiro contato, mas é assim.”, diz o indígena do grupo familiarizado com as práticas dos funcionários. A preocupação em relação à saúde é uma constante. A morte de indígenas por doenças “brancas” é uma recorrência histórica do processo de encontro de mundos tão diferentes. Em diversos diálogos, os funcionários da Funai demonstram cuidado para não contaminar os indígenas isolados com o vírus da gripe, que pode ser fatal naquelas circunstâncias. O encontro por si é um risco constante. O não encontro também é.
A vulnerabilidade dos grupos isolados se revela não apenas por suas condições de extermínio político, com interesses econômicos, mas também pelo fato de que o contato sempre será violento, seja pelo acesso a armas, pelo contágio viral ou pela captura das suas imagens e narrativas pelo cinema. A Invenção do Outro é um filme que revela, propositalmente ou não, a inexorabilidade deste encontro, dos seus riscos permanentes e das suas contradições.
*Filme visto no 12º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba