Quem nos pediu para sermos juízes?
“Eu não estou pedindo para você ser juíza”. Com esta frase, Cléber (Marcello Crawshaw) interrompe bruscamente as intenções de Joana (Carol Martins) de fazer uma investigação moral sobre a situação familiar na qual ele a envolveu. Na abertura do filme, vimos Joana e sua bicicleta serem arrastadas por um carro, dirigido por uma mulher, com uma criança sentada na poltrona da frente. O atropelamento, filmado e editado pelo garoto de 12 anos, “hita” na internet, e aos poucos, com o decorrer dos acontecimentos encadeados, vai revelar algumas incertezas da personagem, uma jovem ecologicamente consciente, afetivamente responsável, entre outras qualidades morais em alta na contemporaneidade.
Os eventos que se sucedem em O Acidente, primeiro longa-metragem dirigido por Bruno Carboni, vão aos poucos adicionando dados que subvertem as expectativas de ajuste moral da história, dos personagens, da posição do espectador diante do filme. Após o acidente inicial, a protagonista se vê envolvida em uma disputa familiar pela guarda de Maicon (Luis Felipe Xavier). O pai militar solicita a Joana que deponha em juízo, relatando o “acidente” como uma prova da impossibilidade emocional da ex-mulher para cuidar do menino. Ao mesmo tempo, a mãe busca a personagem para expor seus motivos. Imbuída de um ímpeto justiceiro, a protagonista procura investigar qual situação seria a melhor para o garoto, como se ela pudesse decidir. Em meio a esta disputa, Joana descobre que está grávida, mas a notícia parece mais aprazível para a sua namorada Cecília do que para ela mesma. Joana não sabe o que fazer com a sua vida, mas acha que pode decidir o que é melhor para a vida acidentada da família que cruzou o caminho da sua bicicleta.
Em um tempo em que estamos algoritmicamente coagidos a ver o que nos agrada, o que nos identifica com o que é correto, as ambiguidades presentes nos personagens de O Acidente causam certo alívio, e essa ambiguidade se expressa sobretudo pela anti-dramatização das atuações e pela direção austera de Carboni, fazendo um uso estratégico desta austeridade dramática para construir seu conto moral: se não podemos saber o que o personagem sente diante da situação posta, como vamos julgá-lo? “Eu não estou pedindo para você ser juiz.”, interpela o filme a cada novo acontecimento.
Bresson é uma referência incontornável. O distanciamento emocional entre o que é filmado e o espectador, fundamental para a produção de um olhar, é talvez a relação mais evidente a ser construída pelo filme de Carboni. Mas O Acidente encarna em Maicon, seu personagem mais querido, ainda outro olhar, o do assombramento Lumièriano. Com um canal no Youtube onde posta vídeos de passarinhos em poça de água e botas boiando no lago, o menino de 12 anos filma o mundo prosaico para extrair das imagens algo que não existe, como ele mesmo diz. Tal qual a imagem de ultrassom do feto, que, após um aborto espontâneo, teima em estar na parede: a imagem do que não existe. Assim como também não existe mais o casamento de Joana, a protagonista assustada, e sua companheira controladora, Cecília, apesar das imagens aparentemente felizes de um casal bem resolvido.
É com a crença, ou com a esperança, de que o cinema ainda seja a arte de tornar visível o invisível, ou de filmar o que não existe, que O Acidente exercita sua encenação através do distanciamento dos planos frontais no rosto opaco da protagonista, da atitude blasé do pré-adolescente perante a crise familiar, do luto solitário de Cecília após o aborto da companheira. Na cena do segundo encontro entre Maicon e Joana, eles conversam sobre as motivações do menino para filmar o cotidiano: “para ter certeza que aconteceu”, diz Maicon, ao que Joana responde com a proposta de filmar a água jorrando de um copo sobre a mesa do bar. O que vemos em seguida é cinema: uma imagem que se dissocia do mundo, que perde a sua referência, e, portanto, a sua moral. É acidente, qualidade circunstancial da matéria. Quem nos pediu para sermos juízes?
*Filme visto no 12º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba