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Cinema que nutre a vida: uma conversa com Joana Oliveira

01/03/21 às 14:18 Atualizado em 10/02/22 as 15:25
Cinema que nutre a vida: uma conversa com Joana Oliveira

A amizade de mais de 20 anos entre a brasileira Joana Oliveira e a ugandense Kevin Adweko começou na Alemanha, onde se encontraram pela primeira vez no fim do século passado. Embora tenham se revisto presencialmente uma única vez até 2013, a relação persistiu ativa a ponto de Joana pensar em um projeto audiovisual que propiciasse a ambas um reencontro mais demorado. “A desculpa do filme me proporciona também visitar essa minha amiga”, resume a cineasta.

Exibido na Mostra Aurora, espaço competitivo da 24ª Mostra de Tiradentes dedicado a cineastas que dirigiram até três longas-metragens, Kevin aposta na ideia da autorrepresentação para filmar o reencontro entre essas duas amigas. Como aponta de modo direto a sinopse da obra, “é um filme sobre uma amizade entre mulheres”.

Na entrevista a seguir, Joana Oliveira falou ao Cine Festivais sobre o longo processo de realização, que durou cerca de oito anos do projeto inicial – previsto para ser filmado na Alemanha e no Brasil – ao lançamento do filme – que acabou rodado em 2017 e 2019 na Uganda, país natal de Kevin, e para onde ela retornou há alguns anos.

Cine Festivais: Minha primeira pergunta é sobre algo que me parece importante para o filme, que é a ideia da nutrição. No segmento brasileiro você estabelece isso logo na primeira cena, trazendo um paralelo com a natureza e a noção de replantar. E acho que a ideia da nutrição está presente no filme de diferentes formas, tanto com relação ao personagem do seu pai, no momento em que vemos ele no hospital, quanto também no que se refere à relação entre você e Kevin, visto que a amizade é algo que pede uma nutrição constante, ainda mais quando se trata de pessoas que se encontram tão distantes geograficamente e nutrem essa relação há 20 anos. Então gostaria que você falasse o quanto essa ideia da nutrição foi importante no seu processo criativo, no modo como estruturou o filme.

Joana Oliveira: Vou começar falando um pouco desta cena que você citou, de quando estou conversando com meu pai no hospital. Na verdade quem tem um familiar que passou por um câncer sabe que aquilo ali não é bem uma nutrição. É a quimioterapia, que de certa forma está tentando fazer com que meu pai fique vivo o máximo possível de tempo. Não é bem uma nutrição mas ao mesmo tempo tomar quimioterapia em um câncer terminal é na verdade fazer um cuidado paliativo para diminuir a dor do paciente, mas também de certa forma se agarrar no último fio de vida.

Queria também falar que essa coisa da autorrepresentação está presente no filme o tempo todo. Aquele que está lá não é meu pai. Não sei se vou desiludir as pessoas que assistiram ao filme (risos), mas quem aparece naquela cena é um dos melhores amigos dele, que também sofreu muito com todo o processo do meu pai. A gente filmou essa cena dois meses depois que meu pai morreu, então eu acho que a verdade que a cena passa tem muito a ver com essa coisa de tentar entender o que passamos. Não só eu, mas também esse grande amigo do meu pai. Pra você ter uma ideia, meus primos me mandaram mensagens assim: “Joana, como você conseguiu filmar o Marcos?” E quando eu contei que não era, eles não acreditavam. Minhas irmãs e meu irmão sabiam disso, mas outros familiares não. E aí eu falar dessa coisa da nutrição naquela cena é um pouco também essa vontade de a gente manter a pessoa viva. “Olha que genial essa coisa da floresta, de que os filhos conseguem ajudar os pais a ficarem vivos”. A gente abre o filme com o cacto sendo replantado, e tem a ver com isso: como que eu quero tentar resistir ao fim da vida? Como que a gente quer resistir ao fim das coisas?

E o Kevin nasce da vontade de que a amizade minha e da Kevin não morra. Então tem tudo a ver com a nutrição. Aí já vou falar de fora do filme: a ideia de montar um projeto com a Kevin vem de uma vontade de que de alguma forma a gente consiga ter um projeto em comum a partir do qual a gente possa manter essa relação e estendê-la o máximo possível. Eu só tinha convivido com a Kevin em 1999, a gente chegou até a morar juntas… Eu morava escondida na moradia de estudante dela, então aquele quarto ali era o quarto da Kevin mas era nosso quarto, num momento em que eu fiquei sem ter casa na Alemanha. E depois em 2005 fui como estudante e tive um pouco menos de convivência com ela porque estudei no norte da Alemanha e ela morava no sul, então a gente conseguiu se encontrar no início e no final da viagem, e foi muito bom. Mas desde 2005 eu não a via.

Então em 2013 resolvo montar o projeto, e foi por causa dele que a gente conseguiu se ver mais em três outros anos: em 2014, quando a produtora Luana (Luana Melgaço) entrou no filme e a gente conseguiu uma verba nossa para eu ir à Alemanha ficar cinco dias filmando a Kevin, só para ver se funcionaria, e tal, e ainda era um projeto sem financiamento – a gente dividiu a passagem em dez vezes. Depois, já com um pequeno financiamento, eu fui em 2017 com a equipe, começamos a filmar, e também em 2019. E nessas duas outras vezes a gente vai para Uganda, porque a Kevin tinha voltado para lá. Então a desculpa do filme me proporciona também visitar essa minha amiga. E aí, já na Uganda, conhecer ela em outro registro, que não o da Alemanha.

Achei interessante essa informação de que em 2014 você foi filmar a Kevin na Alemanha. Eu sei que em um primeiro momento a ideia era que ela viesse ao Brasil, só que isso não foi possível, mas fico me perguntando, e queria saber se você já se perguntou, como seria se a Kevin ainda vivesse na Alemanha. Quais são as questões que saem e entram do filme a partir do momento em que ele é filmado na Uganda? Que tipo de diferença isso traz para o seu olhar para ela como cineasta e como amiga quando Kevin estava na Alemanha, e depois quando efetivamente o filme se concretizou na Uganda?

Quando viajei à Alemanha fui sozinha, com uma câmera emprestada, só para fazer uns testes mesmo. Até foi o Ricardo Alves Jr., cineasta aqui de Belo Horizonte, quem me emprestou a câmera, e eu fui morrendo de medo que acontecesse algo com ela. A ideia era fazer um jogo de câmera para ver se funcionava, para a Kevin entender mesmo se ela queria se colocar nesse projeto, estar no filme, porque muitas vezes eu acho que as pessoas são um pouco irresponsáveis… Quando você vai fazer um filme você tem que ser responsável com aquele e aquela que estão cedendo a imagem, o som e a vida. Então era uma coisa de responsabilidade com a personagem. Não queria jogar a Kevin em uma coisa que ela não entendesse. E foi muito legal porque a gente conseguiu fazer com esse material um teaser de estudo de personagem para tentar financiamento.

Assistir a essa pequena edição do material filmado na Alemanha foi ótimo porque os temas estavam todos lá presentes. O mais forte de todos sobre a amizade, sobre um reencontro, sobre eu querer que a Kevin estivesse em um momento muito especial para mim, que era meu casamento, e a gente falar sobre isso. Eu até já tinha feito a festa de casamento, mas nesse material que a gente gravou na Alemanha ela finge que ainda não tinha acontecido… pra ver se a gente conseguiria reencenar momentos da nossa vida. O meu casamento com o Gustavo está no filme não à toa, porque ele foi o ponto detonador – eu gostaria que a Kevin estivesse no meu casamento, a gente não se via há muito tempo, eu queria falar sobre essa amizade, e por isso montei o projeto do filme.

Naquela primeira filmagem já estava também a questão da maternidade, a gente conversando sobre ela ser mãe solo. Quando eu estava na Alemanha, nesses cinco dias que eu fiquei na casa dela, ela descobriu que estava grávida do Adam. Lembro dela muito brava comigo porque a gente não podia ficar mais tempo juntas. Tem um momento em que ela pergunta: “por que você só veio por cinco dias?” E eu: “uai, não é assim não, você nunca foi pro Brasil” (risos). Então acho que as questões principais estavam ali já.

No primeiro projeto de filme a gente filmava a Kevin na Alemanha. É engraçado que a mesma dinâmica que existe no filme pronto (“Joana tem problemas no Brasil e vai para a Uganda ver a amiga”) era o projeto anterior (“Kevin tem problemas na Alemanha e vai para o Brasil atrás da amiga”). Mas essa construção nunca decolou muito, porque na verdade o filme era sobre eu indo atrás da Kevin. O filme sempre foi sobre isso. Então quando ela voltou a morar na Uganda e o filme se reconfigurou, acho que ele deslanchou muito mais rápido. Antes era muito travado… No sentido de eu não conseguir defender o filme – eu acho, assim – dentro dos financiamentos. É uma sensação que eu tenho. Mas eu nunca tinha pensado em me filmar na Alemanha com a Kevin. A intenção era que uma fosse pro país da outra de alguma forma para a gente viver esse reencontro desde um outro lugar. Os nossos encontros sempre tinham sido em um país onde as duas eram estrangeiras. Como seria quando uma estivesse frente a frente com a realidade da outra?

Você comentou que quando foi fazer esses cinco dias de “filmagens-teste” na Alemanha tinha a preocupação de explicar para a Kevin como seria esse processo e de evitar certos vícios éticos/estéticos que o cinema já incorreu muitas vezes, sobretudo quando há diferenças de lugares sociais, de raça, etc. entre realizador e retratado. Penso que a mudança de locação para a Uganda acrescenta uma outra camada, do retrato de países africanos. Fico pensando em imagens muito recorrentes, como a de crianças negras correndo atrás de carros de pessoas brancas. É um clichê que costuma me incomodar em filmes que retratam o continente, e que não está no seu filme. Então me parece que era uma preocupação sua se afastar de alguns clichês, e por outro lado fico pensando na inserção da personagem da Joana ali naquele contexto. É um filme que está muito interessado nessas relações micro, entre Joana e Kevin, e fico me perguntando até onde vai esse contato da personagem com o entorno – a paisagem, as pessoas etc. Então gostaria que você comentasse sobre isso: de um lado a preocupação em não recorrer a certos clichês, a certas exotizações, e por outro lado como você pensava que aquela personagem poderia estar não apenas colada à experiência da amizade com a Kevin, mas que também estivesse atravessada pela Uganda e pelas pessoas daquele país de alguma forma.

A primeira coisa é o respeito com a personagem. Eu e Kevin chegamos a conversar sobre coisas como “vamos mudar nossos nomes?”, “vamos colocar menos de nós mesmas no filme?”. A discussão com ela sempre foi muito clara e sincera, ela sabia exatamente tudo o que estava sendo feito, como estava sendo feito. Chegava a assistir planos, viu a montagem final… Sempre com muita confiança em mim. É muito emocionante como ela confiou. Mesmo. E a gente tinha nossa ética em relação ao que poderia estar e o que não poderia estar. Até onde a gente ia e até onde a gente não ia na exposição das nossas vidas pessoais. E foi até uma regra imposta à equipe, uma coisa assim: “quando uma de nós duas disser ‘não’, a gente para”. E muitas combinações entre eu e Kevin antes de filmar cada cena, antes de a equipe entrar. Então a Kevin entrou no projeto de cabeça e estava muito consciente das coisas que estavam sendo feitas com a imagem dela. Também com as imagens dos filhos dela, né? Kevin e os pais da criança não são casados, ele mora na Alemanha e ela na Uganda, então foi tudo muito discutido também com a família alemã e com a família da Uganda com relação ao uso de imagem.

Sobre a Uganda, acho que é muito importante saber que eu não fui atrás do país da minha amiga tentando explicá-lo. Acho que muitos filmes que eu vejo e que eu não gosto são de pessoas tentando dar conta de um país com suas complexidades… E eu não entendo nem o Brasil, sabe? Não era sobre isso o filme, e sim a respeito da minha relação de amizade com a Kevin, os nossos pequenos dramas e como a gente está no mundo.

A gente filmou na Uganda um total de três semanas da primeira vez e duas semanas na segunda vez. Montamos o filme como se fosse uma viagem só, mas foram duas viagens diferentes de filmagem, muito por como a gente conseguiu financiar o filme. E aí é isso… Eu sou muito amiga da Kevin. Como você filma uma pessoa que é muito amiga no Brasil? Você vai filmar a sua relação de amizade, você não vai tentar dar conta do país. Qualquer tentativa de fazer diferente seria não ser amiga. (risos) Sabe? Seria uma outra coisa. No meu primeiro longa-metragem, que se chama Morada, eu filmei a relação da minha avó com uma desapropriação. Acho que é quase isso assim: como você filma sua avó no Brasil? Como que eu filmo a Kevin na Uganda? São filmes completamente diferentes esteticamente falando, mas estou falando de ética. Não tem sentido exotizar nada dentro da nossa relação. Não era a vontade do filme.

Você apontou uma ética estabelecida junto com a Kevin, então queria ouvir alguns exemplos de limites que foram definidos tanto por você quanto por ela. Acho que uma frase que está na entrevista que você deu para o catálogo da mostra sintetiza um pouco isso: “o filme não é mais importante que a minha amizade”.

Essa questão de “o que eu quero esconder e o que eu quero mostrar?” está presente o tempo todo no filme. Vou falar de um exemplo específico, que é a cena em que eu e ela estamos conversando e bebendo à noite nesse lugar aberto que tinha na casa dela. A gente resolveu fazer esse teste porque uma coisa que a gente sempre fez foi sentar pra beber e conversar, mas existia um limite ali porque quando a gente está alterada pela bebida podemos falar coisas que não queremos que apareçam, tem algo de vulnerável nisso. O que aconteceu foi que a gente filmou e depois na montagem eu selecionei as partes que talvez pudessem entrar, mas avisando a Kevin o tempo todo. Tem depoimentos meus que também não tinham nada a ver entrar no filme, coisas pessoais minhas. Mas eu acho que esse é um ponto que é o limite, tipo “nesse momento a filmagem rolou pra esse lado e talvez a gente tenha gravado coisas que nem eu nem ela queríamos que estivessem”. Como pessoas, né? E acho que a equipe entendeu muito esses limites.

Também me lembro muito que no Morada, que é o filme que eu fiz com minha avó, tem uma cena que talvez ela não quisesse expor, e eu mostrei o corte antes. Porque estou filmando relações muito, muito pessoais, assim. Só tô filmando essas mulheres porque eu as admiro. Não tem sentido eu trair isso.

A motivação da personagem Joana para deixar o Brasil e viajar para Uganda encontrar a Kevin está muito relacionada à perda do bebê, uma informação que vai aparecendo aos poucos até chegar na cena da conversa entre as duas amigas sobre o tema, na qual há um trato mais frontal da questão. Talvez por ver o nome do André Novais Oliveira nos créditos de Kevin, por ele ter participado da primeira versão do roteiro, me veio à cabeça a cena de Temporada em que a personagem da Grace Passô revela a uma amiga que passou pela experiência de perder um bebê; também é um momento muito delicado do filme. Então queria que você comentasse como foi o pensamento para incluir esta cena no roteiro, e também se você vê alguma intersecção com essa cena que eu citei do Temporada.

Então, quando o André fez parte do filme, numa primeira fase do roteiro, não existia nem o tema do aborto espontâneo nem o tema de o meu pai estar doente. Isso foi acontecer depois. Havia o tema da maternidade no sentido de a Kevin ser mãe solo e eu estar me casando e querendo ser mãe em algum momento. Essa perda específica de uma gravidez foi algo que aconteceu, mas foi em 2015. E aí eu resolvo colocar no filme, porque foi junto com o meu pai adoecendo – meu pai teve um processo de doença longo, e eu o tratando. Mas o André já não estava trabalhando nesse projeto.

Na verdade é muito louco isso: eu nunca li o roteiro de Temporada, e enquanto o André estava filmando ele eu estava na Uganda filmando Kevin. E aí quando eu vi o filme dele, que foi lançado bem antes, eu fiquei muito, muito tocada. Sou próxima do André, ele sabe dessa história, mas eu não sei se tem alguma intersecção, nunca perguntei para ele. Eu trabalhei como assistente de direção do André no filme Quintal e fiquei muito próxima da mãe dele (Maria José Novais Oliveira, a Dona Zezé), muito mesmo, e foi muito duro quando ela morreu. E você deve ter reparado que o Renato (Renato Novaes Oliveira), irmão do André, aparece comendo um pastel em Kevin. Isso é uma homenagem pra mãe dos meninos, uma pessoa incrível, que me marcou muito. E aí quando eu falei com o Nato, fiquei até com vergonha: “nossa, chamar um cara com o histórico do Renato como ator pra fazer isso?” E na hora ele falou: “nossa, eu vou demais!”.

E a questão da narrativa em si, do modo como o filme se encaminha para aquela cena em específico?

O filme fala da relação entre essas duas mulheres, e existe um tabu na sociedade que é falar sobre a perda de bebês. Acho que as mulheres são muito cobradas para ter filhos e filhas, e uma perda de uma gravidez é muitas vezes vista na sociedade como uma falha, digamos assim. E aí eu descobri toda uma corrente de mulheres que ficaram sabendo que eu tinha perdido esse bebê e que foram me apoiando. Muitas mulheres falando “eu também perdi, eu também perdi”. E eu ficava pensando “caramba, ninguém fala disso!”. Então para mim era importante.

O filme é super feminista, com mulheres nas cabeças de equipe, um filme sobre mulheres. Então eu também queria falar sobre o que a sociedade nos exige, que é sofrer um luto caladas. Falei muito sobre isso, do mesmo modo que falava sobre a morte do meu pai. E eu sentia muitas vezes as pessoas um pouco constrangidas de tocar no assunto, porque tem a ver com luto, tem a ver com… talvez uma “falha” do corpo. Não sei, assim, mas é um tema muito pouco tratado na sociedade. E antes de filmar eu falei muito sobre isso. Achava que era um tema importante de ser tocado, não pela minha experiência pessoal, mas para ter um tipo de interlocução com tantas e tantas mulheres que passam por essa situação tendo que viver meio sozinhas com essa dor e esse luto que é muito real.

A Kevin acompanhou tudo isso, então quando a gente foi pra filmar eu já tinha um pré-roteiro que tinha os temas que eu queria abordar, e a perda do bebê era um deles. Dentro dessa construção narrativa que vai construindo aos poucos, é como um reencontro com uma pessoa que é próxima mas que a gente não vê há muito tempo: primeiro você vai conversando coisas como “como você tá?”, “tá trabalhando aonde?”, e depois podemos aprofundar, e aí que vão aparecendo assuntos mais caros e pesados para mim e para a Kevin também.

Pensando nisso que você colocou dos interditos, separei um trecho da sua entrevista no catálogo da mostra em que você fala do início da sua vontade de fazer cinema: “queria filmar o mundo e contar histórias, mas não sabia se era relevante ou se era apenas uma vontade” Me atentei para esse termo relevante, porque muitas vezes esse tema da amizade entre mulheres não é visto como relevante, não aparece em tantos filmes, proporcionalmente, na história do cinema. Somado a isso queria trazer um outro momento do filme, a sequência da cena do rafting seguida pela conversa em que Kevin fala de modo frontal sobre o racismo. Gostaria de saber primeiro como você lida com essa noção de relevância e também como foi a construção narrativa e as conversas até chegar nessa cena que eu citei.

Acho que a primeira coisa que é importante falar é que as mulheres… – e isso é um pouco a história de toda a minha vida tentando ser diretora –, a gente não é criada para acreditar nas nossas histórias. Eu não sou professora à toa, ser professora universitária de uma geração novíssima das meninas é quase que uma vontade minha feminista mesmo, para que elas passem por menos trabalho do que eu passei. Eu estudei na EICTV, em Cuba, e era uma das poucas mulheres da turma. São 40 alunos por ano e eu era a única mulher na minha especialidade. Virei representante de turma e briguei muito para que se selecionassem mais mulheres. As comissões de seleção eram todas compostas por homens, e aí você via que 80% dos alunos eram homens. Na aula de direção de ficção, especificamente, eram seis alunos apenas, eu era a única mulher, e a gente só teve professor homem para minha especialidade. Fora dela tinha uma professora de direção de documentário e duas que dividiam a disciplina de direção de atores. Mas eu tô falando de ter aulas com professores homens em que, né, como que eu vou defender os temas dos filmes que eu quero fazer? Não tem nada a ver com o olhar que estava sendo feito ali. Então acho que aprendi muito assim. Quando eu não escrevia eu tentava filmar alguma coisa de outras pessoas que não era profunda em mim, e ficava muito ruim (risos), porque eu queria filmar os temas relevantes a mim, e tive que batalhar muito, a vida inteira, para me impor como diretora.

Sobre a construção dessa temática do racismo… A primeira ideia do filme era trazer a Kevin para o Brasil, que ela visse essa loucura racial que a gente vive por aqui e me expusesse também como essa amiga branca privilegiada. De certa forma isso está nessa versão final que foi filmada na Uganda. Comigo o tempo todo querendo trazer o tema do racismo para o filme… Kevin e eu tivemos várias conversas, e acho que só funcionou essa conversa sobre o racismo quando a Kevin se sentiu também confortável o suficiente para falar sobre o tema. Foi uma conversa que a gente filmou algumas vezes. Na primeira viagem para Uganda, em 2017, a gente fez uma cena mas a conversa não fluía. A Kevin não queria. Eu esperei ela querer abordar esse tema e ficar à vontade para conversar mesmo. E aí na hora que ela falou “eu quero”… E assim, a gente conversou exatamente dos temas que ela ia falar. A câmera frontal. Sabia que ia ser uma abertura de coração e que ela ia dar, de coração, o depoimento.

Então é isso, o filme é uma construção narrativa dos temas que eu achava importantes de serem discutidos. São oito anos de projeto e eu queria ter nele temas que realmente são relevantes na minha vida, sabe? Pensar o meu lugar no mundo enquanto mulher, mas também enquanto mulher privilegiada dentro do Brasil, sendo branca. E também pensar no privilégio que eu tive de conhecer a Kevin e a gente manter essa relação já há 22 anos. Essa construção narrativa do filme foi muito pensada. (pausa) Muito pensado mas muito sofrido também, tá? Não é uma coisa super fria, nem nada. A gente falou demais.

Partindo dessa última fala, “muito pensado, mas muito sofrido”, me vem à mente a questão do controle possível, tanto o controle da cena quanto o controle das situações trazidas pelo roteiro. A direção do filme é muito pensada a partir de uma ideia da precisão. Há alguns momentos em que certas ações estão ocorrendo fora do quadro, e pequenos movimentos às vezes nos dão a ver uma noção mais completa da cena, em outras vezes não. Então queria que você falasse um pouco sobre essas escolhas.

Já falei em outras entrevistas que eu acho que um filme é um milagre. Sério! Porque assim, você ter essa ilusão de controle é um pouco ingênuo. E aí vem esse trabalho muito longo com o filme, de tentar entender até onde dá pra controlar, onde não dá, o que pode surgir que a gente não estava pensando. A equipe ficou muito preparada para tudo o que pudesse acontecer. Não à toa eu escolhi a Cristina (Cristina Maure) para fazer a câmera – a gente dirigiu dois curtas juntas, o Rio de Mulheres, que é um documentário, e o Diário do Não Ver, então a gente já tinha muito essa conexão –, o Gustavo (Gustavo Fiorovante, diretor de som) também. Pra você ter uma ideia, a Cristina não fala inglês – quer dizer, ela “se defende”, digamos assim (risos) Mas ela é uma pessoa muito intuitiva. Ela sabia o que eu queria, a gente montava os planos, mas sabíamos que alguma coisa poderia sair do que a gente imaginava que ia acontecer. E nisso acho que a equipe foi muito assertiva. Você imagina a Cristina sem falar inglês, dentro daquele carro, na situação que estava acontecendo quando a gente vai levar a Jerica para a escola. Aquilo é totalmente espontâneo, e ela consegue assumir que ali ia ter um descontrole.

O filme tem planos muito precisos em vários momentos, mas tem outros lugares nos quais sabíamos que não ia adiantar tentar esse controle. Acontece também na feira, no próprio rafting, que não deu certo a primeira vez e tivemos que refilmar. Mas acho que essa coisa de controlar a narrativa e ser preciso tem muito a ver com o processo longo mesmo. Quando a gente voltou da Uganda em 2017 eu revi o material, tinha feito esse roteiro da Uganda sozinha, e entro pra montar essa versão sabendo que não dava um longa-metragem ainda. Montei com a Clarissa Campolina por quatro ou cinco semanas, a gente teve assessoras que assistiram ao filme, todas ligadas à narrativa nesse primeiro momento. Quando a gente consegue o dinheiro para poder voltar para Uganda eu chamo outra roteirista (Laura Barile) para trabalhar comigo, pra gente ver essa montagem e entender o que faltava e como faltava. Chamo a Tatiana Carvalho Costa para ser minha assistente na Uganda e para a gente entender como que a gente ia conseguir abordar essa questão racial com a Kevin, mas de uma forma que ela se sentisse confortável. Então os temas existiam e a busca por como narrar foi constante. Em 2019 a gente filmou bem menos que em 2017, mas já eram filmagens precisas para entrar nessa ideia de filme, dessa viagem da Joana. A gente achava importante que fosse feito e concebido como uma viagem só. E aí quando a gente vai em 2019 é justamente para poder deixar o filme… você usou a palavra “preciso”. Com um rebuscamento estético mesmo.

Foto do topo: Marina Mascarenhas

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