Existe um plano central que contamina todo o restante da curta experiência de O Mundo Mineral (2021), de Guerreiro do Divino Amor, exibido na 24ª Mostra de Tiradentes entre os curtas da Foco Minas. A imagem em questão aparece no centro do filme, já perto do final, quando a já conhecida estética de motion graphics e colagens do cineasta dá lugar a uma câmera na mão, em estilo documental, que segue duas moças loiras e robustas a fazerem propagandas de um estande de tiros localizado ao redor de uma feira agropecuária. Tal imagem, que assemelha-se muito mais com aquelas capturadas pelo telefone celular de turistas curiosos, dá conta de evidenciar uma publicidade cruel que contorna o estado de Minas Gerais e parece estar no cerne da reflexão de Divino Amor.
Primeiro, uma apresentadora de televisão irrompe em tela, abrindo a porta de um mundo particular, o tal Mundo Mineral. Depois, adentramos a redoma deste mundo, que estabelece relações claras com o estado de Minas Gerais e seus atrativos naturais e gastronômicos. Entretanto, qualquer elemento cinematográfico que aparentasse prestar homenagem a uma cultura mineira logo dá vez a intervenções animadas que oferecem um ruído na miragem dessas planícies. Em O Mundo Mineral, não estamos diante de uma ode à cultura, mas de uma elegia vertiginosa que embaralha os caminhos da história comum desta terra e acaba por despejar nela uma lamacenta e derradeira paisagem de tragédia.
Retomo à cena que comentei no início do texto, pois ela simboliza acima de tudo uma relação catártica das forças de poder atuantes neste território. Primeiro, vemos Minas Gerais sendo representada através de animações de trens, queijos e uma montanha de café que mais parece com a lama descambando em água podre. Junto a isso, existe a narração cínica da moça loira, repórter jornalística, que rasga elogios às belezas naturais da região enquanto todas as imagens se deformam e destroem à medida que aparecem. Por fim entra a tal imagem, e aquilo que antes era um artesanato árduo, uma modelagem risível, agora descamba para um terreno mais real que nunca. Toda a destruição que Divino Amor forjava em motion graphics se materializa nas duas moças robustas, com roupas de militar e bonés de aba reta, recebendo olhares seduzentes dos marmanjos e oferecendo aulas de tiro para um sujeito indígena. Se nos planos anteriores a terra escorria como metáfora, diante de um cineasta que preza sempre por destruir e desconstruir aquilo que recorta, agora a terra vai se desfazendo bem ali, a partir da publicidade estapafúrdia e vaidosa que deflagra em um plano tão simples uma violência simbólica para lá de brutal.
Há ainda outra imagem chocante nessa relação entre o vendável e o invisível que o filme de Divino Amor carrega: em uma sequência quase irmã da que se passa no estande de tiros, um grupo de pessoas faz um passeio turístico ao redor da Vale, empresa responsável pelos desastres de Mariana e Brumadinho. Em meio ao passeio, uma câmera muito semelhante àquela que filma as moças de decote e roupas camufladas flagra turistas levando seus filhos para posarem diante das barragens da Vale. Enquanto isso, uma guia comenta ao fundo algo como “as barragens estão aí, são perigosas, não podemos tirá-las. Olhem estas aqui, foram construídas há muitos e muitos anos…“. Então o passeio continua, com um olhar turístico e embelezador a esta terra já triturada.
Entretanto, muito mais que provocar um choque qualquer com imagens diacrônicas – que por si só já carregam um contraste simbólico, uma violência sintomática, um duelo de interesses -, O Mundo Mineral é capaz de extrair deste contexto um riso que é da ordem do sarcasmo e da ironia. Pois tudo aquilo que aparece como imagem filmada – seja na feira agropecuária, seja no turismo pelas empresas da Vale – é também solidificado pela moça loira que apresenta este telejornal do inferno, entrecortado com uma sinfonia leve que dá o tom de derrota a todo o passeio. E, no duro, naquilo que encerra em si mesmo, O Mundo Mineral não é nada mais que isso, a construção de uma ruína, uma propaganda publicitária encenada para forjar através da lama e do destroço uma gama muito esotérica e excêntrica de sujeitos que representam o que de mais árduo e simbolicamente problemático uma terra produz.
Não estamos diante de um filme onde há qualquer possibilidade de vitória ou de inflexão para a esperança. O Mundo Mineral é uma elegia da terra, feita diretamente para ela, e, no fim, não haverá riso algum que possa nos salvar. Nem o do moço maromba que segura seu filho posando para a foto atrás de uma barragem.
