“Já morei em tanta casa que nem me lembro mais”, cantam de maneira descontraída um grupo de moradores da Ocupação Eliana Silva, em Belo Horizonte, em uma cena do longa-metragem Entre Nós Talvez Estejam Multidões. O trecho que antecede o refrão-chiclete da música de Renato Russo (“é preciso amar-a-ar”) é bem curto, mas desloca sensibilidades e ressignifica a canção a partir da luta pela moradia. A singeleza vista ali aparece em diversos outros momentos do filme de Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, que fez sua estreia nacional no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
“Acho que a busca do filme é justamente revelar de uma forma bem tranquila pra todo mundo, pro espectador, pro sujeito filmado, pro sujeito filmador, como as subjetividades e a nossa existência é complexa sempre. É algo que parece muito bobo, muito óbvio, mas que infelizmente parece que é negado historicamente e que muita gente se recusa a olhar pros outros como sendo sujeitos tal qual você. Então o filme faz uma aproximação dessa natureza existencial-subjetiva, tenta trazer isso para compor o que seria essa ocupação”, comenta Pedro.
O trabalho faz parte de uma trajetória de pensamento sobre as possibilidades da realização cinematográfica sobre e com as lutas populares. Ainda sob o impacto das revoltas de junho de 2013, foi lançado o curta-metragem Intervenção (2014, direção solo de Pedro Maia de Brito); em 2016 se consolidou a parceria de Pedro com Aiano Bemfica e a aproximação ao MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas), materializada em Na Missão, com Kadu (direção da dupla e de Kadu Freitas); dois anos mais tarde, a abordagem formal se radicaliza em Conte Isso Àqueles Dizem que Fomos Derrotados (direção de Aiano, Pedro, Camila Bastos e Cristiano Araújo); por fim, 2020 trouxe o lançamento de Entre Nós Talvez Estejam Multidões e o ainda inédito Videomemória, que estreia na programação do 22º FestCurtasBH.
Nesta conversa com o Cine Festivais, Pedro Maia de Brito comenta com detalhes o processo de realização desses filmes e as suas particularidades.
Cine Festivais: Queria começar nossa conversa retomando um filme que você realizou em 2014, o Intervenção. De alguma maneira é um trabalho que está respondendo àquele momento após as revoltas de junho de 2013, em que essas imagens de luta e de resistência popular talvez estivessem muito reiteradas dentro de uma certa “estética Mídia Ninja” que se colocou e foi vista em muitos filmes que tentaram falar daquele período, e acho que o Intervenção traz proposições e provocações estéticas diferentes e muito interessantes. É uma espécie de filme de tocaia, que nos coloca como testemunha daquele gesto de ataque à instituição policial que simboliza toda uma opressão histórica. E aí eu queria que você falasse um pouco do processo desse filme, que assinou sozinho, antes dessa parceria com o Aiano Bemfica e o MLB, mas que acho que já traz muitas das questões dos seus filmes posteriores.
Pedro Maia de Brito: Essa imagem foi realizada em 2013, inclusive. De forma quase que incidental. Eu estava com a câmera, vi aquilo e registrei. Somente algum tempo depois eu retornei a ela. De alguma forma ela se tornou um arquivo pessoal; algo que eu tinha vontade de dar vazão, que por bastante tempo ficou quieta no HD, até que em algum momento, revendo as coisas, organizando meu material, encontrei aquela imagem e pensei em uma proposta sonora, em um desenho espacial desse som para criar uma proposta narrativa que em alguma medida pudesse implodir simbolicamente, evidentemente né, tudo que naquele momento eu tinha e tenho acumulado sobre a instituição policial no Brasil. A maneira que eu encontrei de tornar essa imagem filme – talvez sendo restritivo sobre o que poderia ser um filme ao dizer isso, mas enfim –, em torná-lo um filme que me encantasse foi através dessa narrativa sonora e usando a perspectiva da câmera como a do espectador em primeira pessoa, de alguma forma colocá-lo dentro dessa ação como um participante dela, mais do que alguém que simplesmente observa. Existe uma vontade de trazer a presença, de colocar temporariamente o espectador dentro da ação que o filme propõe, talvez como uma forma de convocar, mudar essa perspectiva, ainda que simbólica e temporariamente, para quem sabe tocá-lo, instigá-lo de alguma forma a um determinado tipo de ação. Algo que sintaticamente pudesse ser também uma convocação.
E é curioso porque em alguma medida é um gesto que se repete nos demais filmes. Ainda que ali eu estivesse fazendo ele sozinho enquanto diretor, com auxílio de outros amigos, mas essa característica ela realmente já existia. Agora acompanhado de diferentes pessoas nesses outros três filmes lançados até aqui, há interesses que se compartilham, e principalmente a vontade de presença, de criar uma espécie de encontro entre algo interessante com alguém interessado e tentar mudar um pouco a chave da relação. Não é negar que existe uma mediação e um agenciamento, mas tentar talvez neutralizá-lo, ou quem sabe até na verdade potencializá-lo, porém de uma forma um tanto dissimulada para que haja uma sensação mais forte de presença e de participação de quem assiste com o que é assistido.
E aí chegando nesse encontro seu com Aiano Bemfica e nessa realização do Na Missão, com Kadu, gostaria primeiro de entender se aquelas imagens iniciais do curta faziam parte de um filme que vocês estavam planejando ou se eram parte de uma ação interna do movimento sem necessariamente haver essa ideia de uma obra “para cinema”. E depois que ocorreu o bárbaro assassinato do Kadu Freitas, como foi retornar a essas imagens junto com Aiano e Gabito (Gabriel Martins, montador) e fazer com que elas estivessem dispostas nessa obra.
No caso do Na Missão… eu tinha ido a Belo Horizonte e estava hospedado justamente na casa de Aiano, com quem já tinha uma relação de amizade de muitos anos. Estava mostrando esse filme (Intervenção) que tinha acabado de ficar pronto e conversando sobre cinema e vontades, e ele me disse: “vamos sacar essas imagens aqui”. E aí a gente assiste a um escopo de materiais mostrando protestos, ações diretas, imagens que estavam com o Aiano por conta de sua recente aproximação, naquela época, com o MLB. Então assistimos, conversamos, debatemos bastante sobre isso, e a gente pensou como essas imagens de Kadu tinham, diferentemente das outras inclusive, uma pulsão cinematográfica, tinham uma força… Elas eram diferentes, uma outra coisa. E a gente pensava que aquilo era um filme já pronto, mas não achávamos que as curadorias de festivais entenderiam aquelas imagens como um filme, que jamais seriam aceitas e compreendidas como tal. Entendíamos que aquela imagem já tinha sido vista por milhares de pessoas, que ela estava dentro de um outro ambiente, de um outro modo de circulação e fruição de imagens, e que dentro disso ela tinha uma finalidade talvez utilitarista com a qual ela tinha cumprido um papel, mas que talvez ela tivesse uma força de outra natureza e que então poderia ser interessante dar mais uma provocada, tentar provocar a partir da tela o universo cinéfilo, o universo intelectual, pela força da presença que existe ali.
A gente debateu possibilidades de abordagem e decidimos fazer uma conversa com Kadu, exibir [na comunidade de Izidora]. Foi algo que aconteceu de forma muito orgânica na relação entre nós, na relação com a imagem, e filmamos isso na cronologia que a própria montagem do filme apresenta. Então há uma organicidade, uma sinceridade, uma facilidade com que isso acontece porque se deu naturalmente. A gente fez uma conversa longa com Kadu, imagino que de 50 minutos mais ou menos, aquela cena no fogão, e após essa conversa seguimos, projetamos [as imagens de Kadu], fizemos uma outra conversa com um grupo maior de pessoas a respeito disso. Poucos dias depois já era o FestCurtasBH, e a gente encontrou com o Gabito. E após assistir o material e pensar bastante, numa conversa longa com Gabito, muito boa, instigante, a gente optou por montar o filme de forma cronológica e que ele entrasse nessas imagens de Kadu, provocasse o abismo, para nunca mais voltar ao outro filme que existe ali. Existindo talvez dois filmes que coexistem sendo um só.
Depois disso eu fui para Recife, a montagem tomou tempo, a coisa aconteceu muito nas horas vagas de cada um, e um dia eu me lembro que eu tô na minha casa, Aiano me liga como quem está baqueado, assustado, cansado, triste, emocionado, falando algo como “Mataram Kadu, mataram Kadu”. Isso foi uma pancada muito forte… A minha relação era de outra natureza com ele; a minha proximidade era com Aiano, o Kadu era uma pessoa que eu tinha conhecido em algumas oportunidades e convivido muito pouco. Mas a feitura do filme, a relação com as imagens que ele produziu, a conversa com ele foi intensa, né? Uma entrevista, uma conversa, um momento como esse, sobretudo quando feito dentro de casa, na intimidade, comendo biscoito feito na hora, tomando café e conversando sobre tantas outras coisas simultaneamente… E Kadu era uma figura viva… Tinha uma presença muito forte. Não é à toa que aquilo que ele filmou é daquela maneira. Há um… (pausa) Enfim. Então esse processo se torna mais doloroso e ao mesmo tempo muito mais importante e comprometido em fazer o filme, uma vez que ele foi assassinado em função da questão que vivia para. (pausa) Enfim, a memória é uma doideira. Fico lembrando das coisas… Faz muito tempo que eu não revisito tudo isso.
Claro, imagino. Mas pelo que você está falando a concepção de filme já estava feita nesse primeiro encontro com o Gabito e antes que houvesse o assassinato do Kadu, correto? E é claro que esse fato impacta tudo…
Isso. O filme não estava montado, mas a gente tinha o roteiro de montagem. As ideias estavam organizadas, tudo estava planejado, a gente entendia de onde o filme partia e para onde ele ia. Nesse aspecto a morte de Kadu não impacta na montagem; o que ela modifica são as informações no final, as cartelas. Ela adiciona esse terceiro momento. Mas não houve alteração na forma do filme, em como as imagens se conjugam, uma vez que isso estava desenhado e concebido.
Certo. Você comentou que talvez se vocês inscrevessem apenas as imagens de Kadu elas não seriam entendidas por curadorias como um filme de cinema. E aí fico pensando nesse gesto de montagem, que é justamente de chamar a população de Izidora para assistir àquelas imagens e manter a integralidade daquelas sequências feitas pelo Kadu. Acho que ali o gesto da montagem é colocar o espectador de festivais de cinema, que muitas vezes se vê como parte de um local nobre no visionamento de imagens, em uma horizontalidade radical com a população de Izidora. Acho que isso provoca uma espécie de curto-circuito e pode ser entendido como uma provocação ao próprio circuito de festivais e também um questionamento sobre a quem são destinadas essas imagens, pois nesse caso a luta é o objetivo primeiro. Queria que você comentasse algo sobre isso.
A montagem do filme inclusive atribui a mesma duração à parte filmada por nós e à parte filmada por Kadu. Ao filmar a gente pensava em como aquela sessão em Izidora poderia suscitar um debate com os próprios moradores, e como o filme poderia talvez ser uma autorreflexão em torno dessas imagens, algo que enquanto filmávamos acho que já foi deixando de ser uma ideia por conta do quão forte tinha sido já a conversa com o próprio Kadu e como aquilo se tornava então o filme. Ao montar a gente privilegia e traz essa conversa para um primeiro plano e pensa como um assistir junto… como entrar nessas imagens pelo próprio filme poderia ser talvez o grande gesto que ele pudesse construir para acomodar essas imagens e fazer com que elas pudessem penetrar o circuito.
Eu acho que o organismo institucional está sempre atrás; mesmo quando ele acha que está adiante. Eu nem sei muito bem atrás do quê, mas eu sempre vejo que ele está correndo talvez atrás um espírito do tempo do próprio mercado. E eu não acho que parte do mercado que domina as curadorias atue de outra forma. Inclusive por isso foi até uma surpresa que Na Missão, com Kadu tenha circulado. Ele demorou um bom tempo para começar a ser aceito, e uma vez aceito por fulaninho A ou fulaninho B ele passa a ser aceito pelos demais, e isso mostra algo muito complicado com relação a curadorias e institucionalidade.
Sobre o gesto radical de horizontalidade… o abismo provoca isso. Você acaba sendo obrigado a lidar com o que não deseja, a ver as imagens sob uma ótica extremamente distante e que não é a sua, inclusive não é a nossa (como cineastas). Nesse sentido a gente parte de algo mais formal, de um momento de conversa, de algo comum, amansado para os bons olhos, para enfim penetrar, dar o chute na porta com o material que Kadu filma e colocar então quem não esperava, ou quem não desejava em uma situação pouco usual a quem não está próximo de determinadas lutas e ações. Então eu acho que ele força de fato esse universo, esse ambiente que você mencionou, a se relacionar com aspectos indesejados e distantes. O filme força a barra para que isso cruze e questione o que é cinema.
Sei lá, eu sempre gosto de pensar em Sam Fuller dizendo que “cinema é campo de batalha”, e de fato é. Filmar é algo muito árido, muito duro. Então filmar nessas condições é uma coisa já de uma outra ordem. Uma equipe de filmagem em uma situação como essa vivenciada por Kadu tem a tendência de se proteger, o que é natural, a própria integridade física vem em primeiro lugar. Ou até mesmo dos caros, e de difícil acesso, equipamentos que as equipes profissionais costumam ter. E Kadu na verdade filma como Kadu, como uma liderança política, como alguém que tem um entendimento completamente distinto, de forma extremamente única – sendo o filmador, porém também sendo o agente político que segue sendo enquanto não filma. E acho que aí é que reside o curto-circuito. É quando a câmera, o dispositivo está em uma outra mão atuando sob uma outra perspectiva. E se cinema talvez seja linguagem, acho que Kadu coloca em xeque justamente a sintaxe que a gente está habituado. É um cinema que vai se fundar muito mais por um conjunto de sensações, no caso dele o medo em alguma medida, o susto do rompante da ação policial e sobretudo a indignação dele, como aquilo está presente no corpo, na mão que treme, no rosto que se enerva, na voz que se exalta. Então se a gente vinha em uma tendência de polidez, de busca por algo limpo – digo a gente enquanto um sujeito do cinema, sem me furtar a isso –, um esmero ora técnico ora de uma reprodução de uma sintaxe estrangeira, e ali não há essa preocupação. Então talvez haja não uma questão de humanidade, mas uma presença no filmar e no enxergar que ela é de uma natureza distinta do que o cinema se habitua a fazer, e acho que é justamente por isso que não se entenderia como cinema; não apenas pela dureza das imagens, mas sobretudo pela finalidade do filmar. E quando isso é conjugado, e mais do que conjugado se torna uma única coisa, eu acho que sim, abre a possibilidade para esse curto-circuito. Até ali então a grande questão seria de não se entender isso como cinema. Hoje em dia você acha que se entenderia?
Apenas o vídeo do Kadu? Tenho muitas dúvidas. Acho que não.
Eu também sigo achando que não.
Acredito que você e Aiano fazem essa mediação com essa institucionalidade dos festivais. Mas aí eu queria aproveitar para falarmos do Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados. Você citou as sensações provocadas pelas imagens do Kadu, e acho que de maneira distinta o Conte Isso… também faz uma aposta nessas sensações. E aí eu acho que naquela noite em 2018 na qual o filme foi exibido no Festival de Brasília em conjunto com o longa-metragem Bloqueio me pareceu que foi criado ali um outro tipo de curto-circuito, porque a sessão trazia filmes que rompiam com uma série de expectativas associadas às próprias lideranças progressistas, aos próprios slogans que a gente vê circularem nos palcos dos festivais de cinema. Naquele época a gente estava na véspera das eleições presidenciais, em algumas sessões ainda ecoavam os gritos de “Fora Temer”, e eu senti que naquela sessão as pessoas não sabiam direito como reagir àqueles filmes, que não davam respostas muito claras, ou talvez as respostas esperadas. E no caso do Conte Isso… isso se dá pelo fato de ser um filme radicalmente anti-personalista. É um filme em que essa ideia de coletividade prevalece, e ao mesmo tempo é um filme que vai responder a um certo “clamor estético” dessas institucionalidades do cinema, no sentido de que é um filme que a gente pode entender tanto como um filme de conquista de território, quanto como um filme de guerra, um faroeste de conquista de bandeira. E naquela época vocês já estavam filmando o Entre Nós Talvez Estejam Multidões. Então eu queria que você comentasse sobre esse impacto que teve o Conte Isso… e sobre esse gesto de radicalidade de linguagem.
Eu gosto muito de analogias, e pensando enquanto você falava… tem um lugar comum não sei se da crítica, mas pelo menos do jornalismo que cobre cinema, de dizer: “ah, tal filme é uma carta de amor ao cinema”. Partindo desse pressuposto eu acho que Na Missão, com Kadu é uma carta-bomba ao cinema, então. Na Missão, com Kadu torna-se um filme comentado de modo inesperado, vai se tornando um filme importante ao momento do cinema, e quando a gente está na elaboração, ainda somente eu e Aiano, do Conte…, a gente pensa em correr para outro lugar, fazer outro filme, e não cair no conto da repetição. Então pensamos em um filme que avançasse por outro flanco dentro de questões similares, dentro dessa ideia de arquivo, luta por moradia, esses pontos de intersecção que compartilham. E aí no Conte… primeiramente vem isso, o sujeito dele é coletivo, seu personagem é a própria ação. É um filme que se permite uma criação muito grande via montagem e desenho sonoro, porque ele parte de imagens que possibilitam isso. A gente fez nesse filme a pesquisa de assistir ao arquivo, voltar a ele, discuti-lo, para delimitar o nosso caminho por esse terreno que é o filme. A gente recusa um tanto de possibilidades que haviam ali nos arquivos, inclusive a instância do inimigo nessa guerra, nesse bangue-bangue, que são gêneros e possibilidades de cinema que me instigam muito.
Inclusive no Na Missão, com Kadu quando a gente tinha que mexer no som do filme para adequá-lo à sala de cinema eu busco as frequências graves, eu tô pensando n’O Resgate do Soldado Ryan ali. Nesse caso do Conte… eu estava sempre com o filme de guerra em mente na montagem, e pensando na verdade em não dar cartaz ao inimigo; ser um filme de iminência mas não de concretização dessas tensões. Então apesar de algumas daquelas ocupações terem sofrido despejo e violência/brutalidade policial a gente opta por não entrar nessa vereda porque a gente entende que essas imagens já são oficialmente e constantemente veiculadas e reproduzidas, e que a gente enquanto produtor de discursos não teria mais motivo para dar continuidade a elas. Então optamos por um filme da noite, que privilegia a ação, que se torna justamente uma impossibilidade da derrota uma vez que a luta segue como a tônica.
É curioso pensar um filme como o Sieranevada, do Cristi Puiu, como um estudo do espaço; eu gosto muito desse filme porque pra mim é um estudo de possibilidades de filmar um espaço com bastante rigor. E depois de sair da sessão desse filme eu liguei pra Aiano, e a gente conversou pra caralho, e foi eu acho quando a fagulha foi riscada pela primeira vez, justamente de uma reflexão nossa sobre possibilidades dentro de um espaço. Então o Conte Isso… é um filme que acho que tem uma outra relação com seus aspectos formais, tem o rigor na abordagem da ação, na definição assertiva de quem é o personagem, na construção minuciosa do espaço, na concentração das ações nesse espaço, em uma montagem que cria quase que uma coisa hiperrealista, claro que por conta da natureza das imagens que foram feitas, onde opta-se por criar uma quarta situação… são três ocupações presentes no filme, três ações distintas, mas a gente cria uma quarta que é justamente a que não existe. Em vez de buscar fazer um documento daquilo a gente cria na verdade uma nova realidade para a ação política.
O curioso é que quando o filme é passado em ações de formação do movimento social, visto por quem já viveu momentos como aquele, ele consegue acionar a memória das pessoas, inclusive a memória física das pessoas, tendo conseguido talvez criar, por força do cinema, uma experiência similar àquela. Contudo, pensando nessa relação da espectatorialidade, ele interrompe essa ação, né? Ele corta bruscamente. No Intervenção há um corte brusco, no Na Missão, com Kadu há um corte brusco que encerra o filme e no Conte… mais uma vez isso acontece, tirando ele da ação de repente. Acho que quando a gente mais coloca o corpo e a tensão e o espectador está lá dentro, talvez finalmente entendendo o que está acontecendo, por conta da bandeira – mas não necessariamente entendendo, porque é um filme que fica bastante no campo da sensação -, aquilo é interrompido, como quem diz: “olhe, massa, você chegou até aqui, mas veja bem, isso não é a coisa em si”. Então há esse conclame, esse chamado que se dá dessa forma. “Se isso lhe interessa de alguma maneira, busque fora do universo do filme, vá para o concreto”.
Talvez o curto-circuito do filme seja justamente onde você coloca: esperam-se respostas. Para quem conhecia o Na Missão, com Kadu, ou para quem está habituado de uma forma geral a como um cinema engajado se comportaria de uma forma típica ou ideal, esse filme talvez mais bagunce do que explique qualquer coisa. Ele não vai lhe revoltar, ele vai lhe convidar a participar e entender as ações como acontecem, com um investimento formal muito grande. Acho que é uma forma interessante de se abordar linguagem, ou talvez de propor linguagem; como que a gente pode fazer algo que não seja proselitista, panfletário, didático, professoral, mas que ainda assim esteja falando muito fortemente, incisivamente sobre as ações práticas da política; sobre onde está a ação prática e a linguagem, como elas se fundam e de que maneira uma interfere na outra; ate onde isso pode chegar.
E eu acho que essa influência que você cita do Sieranevada, para quem tenta compartimentar o que seria um tipo de cinema engajado e o que seria esse cinema autoral de festival, ela quebra um pouco com isso. Então queria que você falasse um pouco mais dessas referências talvez inesperadas dentro de uma expectativa a respeito desse cinema de luta.
Nisso das referências acho que o Sieranevada… a gente já tem as provocações e as vontades colocadas, e o Sieranevada meio que gera um insight… falo de insight e pareço o Doria falando, um faria limer (risos) É uma epifania, junta as peças. E produz uma nova conversa a partir das ideias que surgem. Você está falando de referências e eu não me considero um cinéfilo, mas acho que sou um diletante, talvez. E aí eu gosto muito de ver o filme sem pensar no filme. Gosto de ver para onde o filme me leva. A minha experiência talvez seja essa, e acho que isso tem a ver com o sentir: “tô sentindo coisas enquanto tô pensando outras”. No Conte… ali na montagem eu tô pensando em The Thing, tô pensando em Star Wars, eu tô pensando n’A Bruxa de Blair. Referência é uma coisa quase que metafísica, né? Não acho interessante pensar referência como um norte do filme, uma coisa a ser alcançada. Acho que a gente tem que alcançar outras coisas; não novas, mas outras. E é o que faz pensar, o que instiga. Esse filme todo o pensamento dele na montagem é de um cinema de gênero, de um cinema de guerra, de um cinema de horror. Que é da extensão constante e irresolução da tensão que existe na ação proposta pelo curta. Enfim, eu sou complicado para falar de referência porque eu gosto muito de muita coisa, e muita coisa diferente. Talvez eu pense o que essas coisas me provocam e o que eu gostaria de provocar para poder chegar aos lugares em cada filme.
E o que você queria provocar com o longa? Que tipo de relações inesperadas, como de A Bruxa de Blair, sugiram quando você estava pensando no Entre Nós Talvez Estejam Multidões?
O longa parte menos desse lugar do cinema. Uma referência para esse filme são os murais mexicanos. A pintura muralista é uma referência enquanto forma, enquanto compreender pequenas ações, pequenos momentos, pequenas cenas como algo que vai compor um panorama. Mas não pensando filmes que passem por aí, e sim a própria pintura, em como o muralismo consegue contar episódios da história, ou desejos revolucionários, ou simples orientações a determinados povos como mural, como pequenas cenas que compõem uma obra maior. A gente partia de uma noção de blocos autônomos estruturantes, e aí a gente pensava o filme através dessas relações, quase uma coisa dialógica, e não dialética, como é no caso do Conte…
Acho que no longa a gente está caminhando para um outro lugar. O filme tinha um interesse maior que era de entender os sujeitos. A gente já tinha ali em Na Missão, com Kadu uma questão fundante disso no Brasil que é a brutalidade, a violência, a desproporcionalidade… enfim, eu poderia passar bastante tempo adjetivando a polícia, esse Estado, e o quão escroto e perverso ele é. E no Conte… está a dimensão da própria luta, da ação em si. E o Entre Nós Talvez Estejam Multidões tem um primeiro plano que deixa claro o sentido coletivo e organizacional daquilo, mas que também já apresenta o procedimento estético que vai dar tom ao filme, porque aquele lugar está estabelecido de alguma forma. A coisa não está concluída, há muito a ser feito, a ameaça segue latente, mas há um conjunto de sujeitos ali que estão juntos, organizados e tensionam a permanência e a vivência em seus lares recém-conquistados arduamente. E aí o filme parte em busca desses sujeitos. Ele não declara isso, acho que nenhum dos filmes da gente declara porra nenhuma (risos), ninguém lhe diz onde você está, você é jogado na coisa, e é isso. Isso talvez distancie um conjunto de espectadores, mas aproxima outros, e assim são as coisas.
O Entre Nós… busca justamente a afirmação desses sujeitos de forma que eles possam transcender os lugares que lhes são comumente reservados não apenas no cinema, mas desde o tweet, até a reportagem jornalística e a fotografia. Aparentemente a pessoa que é militante está condenada sempre a ser retrata como militante. As pessoas parecem que não podem simplesmente viver, terem vontades, sonhos, frustrações, outros talentos, outros anseios. E acho que a busca do filme é justamente revelar de uma forma bem tranquila pra todo mundo, pro espectador, pro sujeito filmado, pro sujeito filmador, como as subjetividades e a nossa existência é complexa sempre. É algo que parece muito bobo, muito óbvio, mas que infelizmente parece que é negado historicamente e que muita gente se recusa a olhar pros outros como sendo sujeitos tal qual você. Então o filme faz uma aproximação dessa natureza existencial-subjetiva, tenta trazer isso para compor o que seria essa ocupação, quem e o que ela é: um bairro, onde vivem pessoas, que são organizadas em volta de determinadas lutas e reivindicações, mas que ainda assim é uma galera que toma uma, que está ali curtindo seu filho… Enfim, acho que é algo da ordem do singelo, é quase que profetizar o óbvio, dizendo “oh, gente é gente, e acabou-se”, saca? O desejo do filme é esse.
E a partir desse gesto do filme fiquei pensando no Edifício Master, do Eduardo Coutinho. Ali ele está em Copacabana, bairro de classe média do Rio de Janeiro, e o gesto do Coutinho é propor uma aproximação com esses moradores deste prédio, e é uma aproximação que com certeza traz uma hierarquia diferente daquela que vocês estabelecem, mas que traz esse sentido de ir em busca dessas existências, dessas pequenas histórias. É claro que a ocupação traz questões outras, a começar por toda essa estigmatização sobre a qual você falou, mas ao mesmo tempo tem uma proximidade nesse sentido de vocês como diretores realizarem essas entrevistas e buscarem o particular em meio a esse todo, a partir dessa ideia do “filme de conversa”…
Eu reassisto ao Edifício Master todo ano, e inclusive reassisti antes de filmar o Entre Nós Talvez Estejam Multidões. Coutinho eu ainda acho que seja o maior cineasta da história do cinema. Tá ali, talvez seja o maior, ou pelo menos tá na fileira da frente. Eu inclusive estive poucas vezes no Rio de Janeiro na minha vida, mas em uma delas eu fui ao Edifício Master e conheci alguns dos apartamentos, conheci o prédio, fazendo o personagem de alguém que queria alugar um apartamento. Enfim, eu gosto muito que o filme seja relacionado a ele porque de fato há uma vontade similar. Acho que Coutinho também tem algo de singelo no seu cinema, e isso me parece interessante.
E sim, é um filme de conversa, mas que talvez seja muito mais um filme de escuta, assim como Na Missão, com Kadu escuta bastante naquele momento à beira do fogão. É um momento de conversa não sobre coisas, mas sobre pessoas, como o próprio Coutinho falava bastante sobre o que ele entendia que um filme deveria ser. Assim como você fala do particular em meio ao todo. No nosso guia de ideias da produção do filme era epigrafado um raciocínio de Hegel, que dizia que “a verdade surgirá do encontro entre o geral e o particular” – não sei se estou fazendo a citação exata -, e acho que isso é uma boa síntese para o filme. Como que a gente consegue trazer um “geral”, que seria a própria construção de um lugar, de uma comunidade, um senso que a gente tem perdido bastante, mas como a particularidade dessas pessoas, desses sujeitos pode formular a concepção de um espaço. Isso é norteador para todo o pensamento do filme, e formalmente a gente tenta trazer isso. Se a gente está filmando um espaço, como registrá-lo? E aí acho que o registro mais adequado é aquele em que a gente consegue ter uma visão do espaço, uma visão do corpo e que a cena possa se desenvolver em si, não para a cena. Aquilo que acontece diante da naturalidade da presença da câmera e da nossa própria vivência dentro do espaço – a gente está vivendo em uma creche, suspendendo a nossa realidade para poder participar de uma realidade que é outra. Esse processo é longo, dura quatro, cinco meses no segundo semestre de 2018, nessa véspera de eleição e ao longa dela. Enfim, o pensamento de como filmar o espaço e de como recortá-lo norteia nossos aspectos procedimentais de câmera, a fotografia e a imagem do filme e os próprios tempos e durações.
Para a gente fechar a nossa conversa eu gostaria que você falasse sobre esse contexto eleitoral presente no filme. Sei que é um projeto que vem de antes desse período, mas vocês decidiram filmar ao longo do processo eleitoral, e isso é interessante de ser visto a partir dessa perspectiva de particularização de indivíduos; há moradores que votaram em Bolsonaro, por exemplo. Essa questão mais macropolítica aparece em alguns momentos, mas nunca em primeiro plano ou tematizado de maneira frontal. Como que vocês pensaram sobre isso no período das filmagens e durante a montagem?
Com relação a Bolsonaro é interessante pensar que os momentos em que ele aparece gerando tensão entre os moradores são justamente os momentos em que a câmera treme, trepida, onde ela perde a estabilidade e a coisa se torna inesperadamente instável. Isso dentro do todo do filme, de sua montagem, sua fotografia, é algo interessante, porque o filme não tem essas tensões dentro da própria cena, e é justamente nesses dois momentos em que essas discussões acontecem que a coisa se torna instável, quando ele (Bolsonaro) provoca essas tensões entre moradores e moradoras.
A gente estava no meio de um processo eleitoral tendo esse escroto do Bolsonaro como um provável futuro presidente do Brasil, e a gente brincava com essa questão do Darth Vader, essa ameaça fascista que está ali exercendo uma pressão de fora para dentro, mas que pouco deve ser percebida enquanto personagem; aquilo não pode tomar conta. Acho que se Bolsonaro tomar conta do filme, das pessoas e da maneira como elas se afetam no seu cotidiano, a gente entendia que seria um filme tomado pela paranoia. É óbvio que uma ocupação está muito mais suscetível a ser atingida primeiro e de forma mais aguda uma vez eleitos sujeitos como Zema, em Minas Gerais, ou o Bolsonaro no Brasil, mas a paranoia do se tornar vítima se dava de forma muito mais aguda nas classes mais altas e nos ambientes mais próximos ao centro. Então era muito diferente você lidar com a perspectiva que existia dentro da ocupação e lidar com a perspectiva de fora da ocupação, de um ambiente central de classe média, classe alta. Na ocupação Bolsonaro está sendo visto como uma dificuldade extra a uma luta que já é árdua. A luta vai se intensificar agora com essa eleição. Fora da ocupação a gente via as pessoas falando “fudeu, nós vamos morrer, nós vamos ser perseguidos, o mundo vai acabar”. Acho que isso mostra muito a diferença entre dois mundos. A ascensão do fascismo faz com que uma parte entenda que na verdade vai precisar lutar mais, enquanto que uma outra parte dessa sociedade vai entender que na verdade o seu fim chegou. Isso talvez mostre bastante de nossa formação histórica, econômica, social.
Mas ele enquanto presença no filme… assim, Bolsonaro não tem que ganhar filme. Não acho que vá ser um filme sobre Bolsonaro que vá mudar porra nenhuma. E acho que a gente não tem que fuder com o filme da gente, nem fuder com o que é o retrato, a memória, a voz dessas pessoas para dar cartaz a ele. O filme é sobre cada morador e moradora que aparece, e também sobre aqueles que não estão presentes no filme. Bolsonaro perpassa porque é um momento histórico e isso exerce essa força exterior que eu mencionei. Mas o filme mostra que isso vai exigir ainda mais luta, mais organização, ainda mais força, clareza e cabeça erguida pra lidar com isso. E nos momentos onde ele perpassa a gente está lidando com isso enquanto um elemento a mais do que já estava em jogo. Como Joice fala no início do filme, “Bolsonaro não vai pro debate porque diz que está com caganeira, mas eu nunca deixei de trabalhar por causa de gases”. É isso. Bolsonaro é um cagão. A gente vai fazer um filme sobre um cagão? Não vai. A gente vai fazer um filme sobre uma pá de gente foda que está justamente fazendo o oposto do que ele faz, mesmo que em condições que sejam tidas como adversas. É isso. Assim como a Polícia Militar não pode ser personagem no Conte…, Bolsonaro não pode ser personagem do Entre Nós Talvez Estejam Multidões.