facebook instagram twitter search menu youtube envelope share-alt bubble chevron-down chevron-up link close dots right left arrow-down whatsapp back

Tornar a cidade pano de fundo é um gesto de violência, diz diretor de O Castelo

28/08/15 às 16:43 Atualizado em 20/11/19 as 15:11
Tornar a cidade pano de fundo é um gesto de violência, diz diretor de O Castelo

Depois de se destacarem no circuito de festivais com E, documentário sobre estacionamentos na cidade de São Paulo que venceu a Mostra de Cinema de Tiradentes em 2014, os diretores Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos voltaram a trabalhar em uma obra que aborda temáticas urbanísticas da capital paulista.

Com a adição de Guilherme Giufrida ao grupo, o agora quarteto de diretores realizou o curta-metragem O Castelo, que fez parte da programação do 26º Festival Internacional de Curtas de São Paulo.

A obra acompanha o cotidiano do complexo residencial e comercial Cidade Jardim, localizado à beira do Rio Pinheiros, na capital paulista. Como sugere o título, há no filme uma tentativa de aproximar a ostentação financeira e a preocupação com a segurança dessa construção paulistana com as fortificações da Idade Média.

Formados em Audiovisual pela Universidade de São Paulo, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos realizaram outros filmes que circularam recentemente por festivais; ela realizou De Castigo e ele, A Era de Ouro, codirigido pelo cearense Leonardo Mouramateus. Os dois trabalhos foram exibidos na última Mostra de Tiradentes e em outros eventos pelo País.

Em entrevista por e-mail ao Cine Festivais, Helena e Miguel falaram sobre as questões levantadas pelo curta-metragem O Castelo e discorreram sobre temas que permeiam as suas preocupações artísticas desde E.

 

Cine Festivais: Que motivações levaram vocês a escolherem esse local à beira do Rio Pinheiros como foco do novo trabalho? Havia a preocupação de não repetir o que havia sido feito no E?

Helena Ungaretti: Começamos a pensar este projeto em 2007, pouco depois do lançamento do complexo de luxo retratado no filme. Na época (e até hoje!), o local nos impressionou pelo tamanho, pela proposta, por nos parecer a epítome de características marcantes da nossa cidade e cultura. Ainda que o filme que fizemos este ano seja bastante diferente do projeto que começamos a desenvolver em 2007, a vontade de filmar esse espaço nos acompanha desde lá.

Miguel Antunes Ramos: Nesse sentido, é um projeto anterior ao E, e que partiu de outro lugar. Mas curiosamente, vendo os dois filmes, acho que eles partilham um ponto de chegada, um certo universo em comum.

 

CF: O modo de filmar de O Castelo passa uma ideia de intrusão naquele espaço. Vocês tiveram autorização para filmar ali? Como foi o processo de produção e quanto durou a pós-produção?

HU: Sim, tínhamos autorização. Mas ainda assim nos sentíamos como intrusos, incomodados e incomodando. Filmamos o espaço pouco menos que uma semana. Já a pós durou quase nove meses.

MAR: O processo de montagem foi bastante árduo, o filme que filmamos era muito diferente do que ele se tornou, mais curto, dividido em blocos com cartelas. Inicialmente tentamos fazer um filme mais observacional, em que o espaço expressasse suas contradições ‘sozinho’. Ao longo da montagem percebemos que o filme que queríamos não estava acontecendo, e lidando com o material fomos encontrando esse outro filme ali dentro.

 

CF: Talvez até mais do que no E, o som tem papel vital para a proposta de O Castelo. O início ao som do abaixar de uma ponte levadiça e a maneira com que imagens banais ganham ares de narrativa ficcional são exemplos deste trabalho. Qual foi a ideia inicial de vocês sobre o tema e como se desenvolveu o processo de edição de som da pré até a pós-produção do filme?

HU: Como o filme não tem vozes – nem diálogos, nem narração, nada – a construção sonora se torna, ao meu ver, ainda mais importante, essencial para a construção do discurso do filme. É o som que cria climas que direcionam o entendimento e ajudam a levar o espectador por sequências de imagens que poderiam ser percebidas como levemente fastidiosas. E na maioria dos casos o som cria sentidos dos quais as imagens não dariam conta sozinhas, como no último bloco do filme, “O Levante”.

MAR: Essa concepção sonora veio durante o processo de montagem, quando da escolha de seguir o caminho que o filme acabou tomando. Inicialmente o filme tinha entrevistas com moradores e usuários do complexo, uma proposta mais naturalista. Lidando com o material, percebemos que havia uma insipidez muito grande em tudo que era difícil quebrar, assim como era difícil de fugir de um lugar muito esquematizado nas entrevistas, muito dado a priori. Por isso a escolha por tentar, através de uma forma rígida, 3×4, com cartelas, com um som maquinal, ressignificar uma certa fantasmagoria dos espaços que vivenciamos ali dentro.

 

CF: É também pelo som que tanto E quanto O Castelo ganham uma atmosfera muito particular, que dialoga, a meu ver, com gêneros como a ficção científica, o suspense (no caso do último) e até o mesmo o terror. Isso foi pensado por vocês conscientemente? Vocês enxergam isso no resultado final dos filmes?

HU: Sempre pensamos o E como uma ficção científica – daquelas que retratam um futuro não muito distante distópico. Acho O Castelo menos preciso nessa relação com os gêneros, mas sim, tem uma atmosfera sonora pesada que dialoga com esses gêneros, e nesse sentido também com o som do E. Os dois curtas, inclusive, foram editados e mixados pela Confraria de Sons e Charutos. Acho que o Daniel Turini e o Fernando Henna fizeram um ótimo trabalho em ambos.

MAR: Acho que os dois filmes são um tanto áridos nas imagens – espaços vazios com carros parados no E, e planos fixos dos espaços encastelados n’O Castelo. Em ambos, o som ajuda a narrar, a criar dramaticidade e variação em imagens a princípio áridas. Acho que a parceria com os meninos da Confraria é muito importante nesse sentido.

 

CF: Outras características comuns aos dois filmes são os planos ponto de vista de dentro de máquinas e os planos abertos que quase não mostram pessoas (esta última só muda um pouco na parte final de O Castelo). Talvez sejam esses aspectos, somados ao trabalho de som, que me passem a impressão de um diálogo com filmes de terror. Isso alguma vez passou pela cabeça de vocês, seja durante a realização ou depois que os filmes já estavam prontos?

HU: Acho que no caso do E (mas minha memória pode estar me traindo) não mostrar pessoas era um statement, uma estratégia para construir o clima de ficção científica do filme, além de ser uma característica inerente aos espaços que estávamos retratando e à cidade que estávamos querendo mostrar. Já em O Castelo isso aconteceu de forma um pouco mais acidental. Inicialmente imaginamos pessoas no filme, e inclusive chegamos a entrevistar várias pessoas. Durante a montagem optamos por cortar as entrevistas.

 

CF: Na entrevista que você concedeu a mim sobre o E você disse que “às vezes a ironia tenta esvaziar o objeto, como se ele não tivesse importância e a gente estivesse rindo dele. Acho que, pelo contrário, a gente está tentando dar importância ao objeto”. No caso de O Castelo, havia uma preocupação de ir além, estética e tematicamente, de uma mera ridicularização da ostentação das classes ricas? De que maneiras?

MAR: Havia. Houve durante todo o tempo do projeto a tentativa de fazer um filme que falasse sobre o espaço mais do que aquilo que se espera de um filme sobre um complexo de luxo, ou sobre a classe alta. Nesse sentido que veio a escolha por não usar as entrevistas – elas não acrescentavam nada à imagem pré-concebida que se poderia ter de um morador de um prédio de alto luxo. Por mais que tenhamos nos esforçado no sentido oposto, as entrevistas eram todas clichês.

No caso, acho que a sisudez e sobriedade do filme buscam justamente propor um olhar que não desmereça à priori o objeto. Buscamos enquadrar o espaço com propriedade – um olhar atento ao conjunto tem de reconhecer que há potência e grandiosidade na cidade tornada skyline, um pano de fundo do restaurante, para além da violência e do luxo. Nesse sentido, nosso intuito sempre foi o de tentar filmar o espaço “por inteiro”, de forma que a violência e também a potência emergissem das imagens.

Acho que na montagem final há uma certa contraposição entre a literalidade dos subtítulos e a sobriedade das imagens que vai nessa direção de buscar um olhar que não se defenda numa crítica primeira, mas que olhe para o espaço para retirar desse olhar atento uma crítica mais completa sobre a violência do lugar – o tornar a cidade um pano de fundo é em si um gesto de violência potente.

 

CF: Você cita Jia Zhang-ke como uma de suas influências, e talvez uma das cenas mais lembradas do cinema dele seja a do prédio decolando em Em Busca da Vida, na qual a realidade surreal chinesa permite esse diálogo com o fantástico. No caso de O Castelo, a inserção da parte final (“O Levante”) tem a ver com essa mesma concepção de absurdo?

MAR: Acho que não. Acho que no Jia Zhang-ke o prédio decolando fala da surrealidade da china contemporânea, como se qualquer coisa fosse possível no desenvolvimento violento que eles vivem.

No nosso caso, percebemos no contato com as imagens que os espaços estão quase sempre vazios – as únicas pessoas que vemos são funcionários. Assim, pensando sobre as resistências e fissuras possíveis nesse castelo, nos veio isso, que a fissura teria de vir de dentro – quase um wishful thinking. Acho que o clipe do Emicida, recém-lançado, vai numa direção semelhante.

 

CF: Nos seus últimos quatro filmes há convergências temáticas e estéticas evidentes. Talvez a “Era de Ouro” seja o ponto um pouco mais fora da curva, até pela parceria com o Leonardo Mouramateus, mas mesmo nele se nota preocupações costumeiras, como a impessoalidade do espaço (bem marcante na cena em que a moça olha pela janela para o homem com quem conversa pelo celular, e este não a vê). Você enxerga essa mesma coerência nessas obras? Quais serão os próximos passos daqui para frente (dirigir um longa, seguir realizando curtas)?

MAR: Acho que tem convergências sim, um olhar para a cidade e para os conflitos e potências que emergem dela. Atualmente estou finalizando meu primeiro longa, um documentário chamado Banco Imobiliário, sobre o mercado imobiliário de São Paulo.

Acho que o próximo passo é continuar a fazer filmes, nos formatos e tamanhos que forem possíveis.

 

Leia também:

>>> Entrevista sobre o curta-metragem E

>>> Acompanhe a cobertura do 26º Festival Internacional de Curtas de São Paulo

Entre em contato

Assinar

Siga no Cine Festivais