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“Infelizmente a fome não é de outro tempo, como às vezes pensamos”

30/10/18 às 13:13 Atualizado em 21/10/19 as 22:26
“Infelizmente a fome não é de outro tempo, como às vezes pensamos”

Nas exibições que já realizou do longa-metragem Raiva em diferentes países, o cineasta português Sérgio Tréfaut ouviu de espectadores reações de identificação com o ambiente retratado no filme. Embora ele se passe na região do Alentejo, em Portugal, assim como no romance que deu origem à obra (Seara de Vento, de Manuel da Fonseca, escrito na década de 50), houve quem enxergasse ali similaridades com a Síria, com a Itália, com a Grécia e até com a Geórgia.

Sérgio conta que foi questionado por programadores da Quinzena dos Realizadores de Cannes sobre o motivo de não ter adaptado para os dias atuais a história de um camponês que assassina um proprietário rural e seu filho. “O cinema social dos dias de hoje é contemporâneo. Penso que há um preconceito com um trabalho histórico, uma visão de que ele será necessariamente um telefilme, uma daquelas produções da BBC”, opina o cineasta.

Em entrevista ao Cine Festivais durante sua passagem pela 42ª Mostra de São Paulo, Sérgio falou sobre o processo de criação de Raiva, filme coproduzido por Portugal, Brasil e França que será lançado em nosso circuito comercial pela Pandora Filmes.

 

Cine Festivais: Você já havia feito um documentário (Alentejo, Alentejo) sobre a mesma região de Portugal em que se passa Raiva, que é uma ficção baseada no romance Seara de Vento, de Manuel da Fonseca. Queria começar perguntando qual foi a sua motivação inicial para realizar este filme. Quando você leu esse romance?

Sérgio Tréfaut: A leitura do romance eu fiz enquanto preparava este documentário sobre a região do Alentejo. O livro me foi recomendado porque continha as tensões e os conflitos ancestrais da região, e quando o li fiquei apaixonado; parecia um western, tinha uma forma meio épica, e senti imediatamente que seria um filme.

O romance é baseado em uma história real dos anos 30 que teve grande cobertura nos folhetins da época. Nos anos 50 o Manuel da Fonseca escreveu esse livro, que foi rapidamente proibido pela censura porque transformava o homem que matou a sangue frio um proprietário rural e seu filho em um herói. Não um herói típico do neorrealismo – que, como em alguns romances de Jorge Amado, acaba entrando em um militantismo de luta social –, mas uma espécie de cowboy solitário que recusa a participação na luta clandestina e quer resolver a sua vida sozinho.

Outra coisa que me incentivou a fazer o filme foi o fato de o autor do romance ter recusado por duas vezes convites para adaptações cinematográficas. Ele entrou em conflito com produtores espanhóis que queriam fazer daquela história, que para o autor tinha um sentido mítico muito forte, uma coisa meio romântica, em que o herói, um pobre camponês, tem um romance com a filha dos proprietários rurais, e por isso não a mata. A mesma recusa aconteceu com relação ao convite de produtores americanos para que fosse feita uma adaptação. Quando soube disso, aí é que falei: “agora vou fazer esse filme”.

 

Você disse em uma entrevista que Raiva é um filme “completamente fora de moda”. Queria te ouvir um pouco mais sobre este aspecto, pensando sobre um certo anacronismo da obra em relação ao que se espera dos filmes com viés social no cinema contemporâneo e também nos desafios de realizar um filme baseado em um romance dos anos 50.

O cinema social dos dias de hoje é contemporâneo. Quando, por exemplo, os programadores da Quinzena dos Realizadores assistiram Raiva, falaram assim: “nossa, por que você não o adaptou para os dias de hoje?” E isso eu não queria. Penso que há um preconceito com um trabalho histórico, uma visão de que ele será necessariamente um telefilme, uma daquelas produções da BBC.

No caso deste filme eu queria fazer algo bastante independente, completamente diferente, que se aproximasse do arquétipo. Isso é fora de moda: fazer um filme próximo do arquétipo, que pode se passar em qualquer lugar e qualquer tempo, em preto e branco, recuperando uma literatura (neorrealista) que hoje não é apreciada, que foi colocada numa espécie de marginalidade. Fui pegar naquela literatura o retrato de uma sociedade arquetipal, em que a relação de pobres e ricos é igual no Alentejo dos anos 50, na Caatinga brasileira, no mundo todo, em qualquer tempo, mas expurguei de alguma maneira a intenção de demonstrar que o mundo vai ser melhor, porque acho que o mundo será sempre essa coisa sinistra.

A partir daí, por exemplo, o título do filme deixou de ter aquele romantismo do título do livro – Seara de Vento parece nome de uma novela da Globo – para ficar apenas com o núcleo forte da raiva, que é o que motiva as transformações.

Acredito que dentro da dicotomia herói individual x luta coletiva o livro não descredibiliza a luta individual – ele a justifica, dá a ela uma razão –, mas também não descredibiliza a luta coletiva. No meu filme acontece exatamente a mesma coisa: há a necessidade de não se resignar.

 

No filme, a partir do momento em que você cria essa estrutura não linear, começando pelo final, deixa-se de ter uma expectativa pelo sucesso do herói. Isso já existia no livro ou foi uma opção para a adaptação cinematográfica?

Essa estrutura corresponde a muitos westerns e muitos thrillers; você primeiro é apresentado a uma morte para depois tentar entender porque aquilo aconteceu. No caso de Raiva eu filmei pensando que seguiria a ordem narrativa do livro, mas depois fui percebendo que no romance as qualidades, as estratégias e as valências que existem na arte da escrita fazem com que o leitor tenha paciência e disponibilidade para seguir até o fim, o que é diferente no cinema. Por isso, já na montagem, entendi que seria mais interessante para o espectador ser colocado perante um início em que tudo que é incompreensível acontece nos primeiros dez minutos. Depois disso ele tem o restante da duração do filme para tentar entender as razões que levaram àqueles assassinatos.

Um parêntese engraçado é que o próprio autor do livro, Manuel da Fonseca, fez uma adaptação para o teatro logo depois da Revolução dos Cravos, na década de 70, que se chamava A Casa Cercada. A estrutura também trazia os assassinatos para o começo, mas o tom era bem diferente, muito militante, panfletário, com os atores explicando porque os personagens eram assim ou de outra maneira. E em Raiva eu investi exatamente no contrário, num silenciar do discurso, num silenciar da argumentação, deixando o julgamento para o espectador.

 

Aqui no Brasil, tanto na literatura quanto no cinema, Vidas Secas é um dos grandes trabalhos que retratam a fome. Você teve ele como uma inspiração?

Li Vidas Secas na minha adolescência, e revi algumas vezes o filme do Nelson Pereira dos Santos antes de fazer Raiva. Outro filme importante nesse processo foi Terra, do Alexandre Dovzhenko.

Infelizmente a fome não é de outro tempo, como às vezes pensamos. Quando exibi meu filme na Itália, os italianos diziam que aquele lugar lembrava o sul do país; os gregos disseram que parecia a Grécia; na projeção em Moscou havia um sírio que disse que se lembrou do seu país, e os russos diziam que parecia a Geórgia. E a questão no meu filme vai além da fome, é um retrato de pessoas desprovidas de tudo, que perdem o trabalho e acabam entrando em uma situação ilícita. Acho que o tema da relação entre ricos e pobres esteve, está e estará sempre presente, por mais que digam ser algo fora de moda.

 

Como você tem uma carreira como realizador de documentários, queria que dissesse como se dá sua relação com atores nos filmes de ficção?

Não se trata exatamente de uma transição para mim. Treblinka passou em alguns festivais como um documentário e em outros como uma ficção, é um filme com muitos atores, calcado no texto. Eu já havia feito outro longa-metragem de ficção (Viagem a Portugal) com atores, fiz um curta-metragem com atores…

Neste filme em particular o desafio foi o de nivelar pessoas que tinham registros muito diferentes – umas vindas de um teatro muito exagerado, outras vindas de televisão, outras de um tipo de cinema muito particular, e outras que são não atores, como o próprio protagonista. Tudo isso foi um grande desafio e um enorme prazer. Se você pegar o Diogo Dória, por exemplo, que representa o papel do grande proprietário rural, foi um desafio colocá-lo no mesmo tom dos outros. Eu dizia “olha, Diogo, você tem que ouvir as moscas enquanto está falando”.

Eu nunca busco trabalhar algo de realista na ficção. Não é que eu não goste de grandes autores desse tipo, como os irmãos Dardenne, mas eu procuro uma coisa que é mais inspirada em Pina Bausch, que tenha uma liberdade grande e que não seja simplesmente uma possibilidade de reencontro com a realidade, mas uma representação.

 

Como Raiva é um filme de poucas palavras, no qual há uma valorização do silêncio, queria que você falasse a respeito da concepção sonora que vocês construíram.

A gravação foi feita por um ótimo engenheiro de som, o Olivier Blanc, com quem trabalho tanto em documentários quanto em ficções, e a mixagem é de um grande profissional francês, o Bruno Tarrière, que faz umas misturas sutilíssimas. Ele trabalhou com uma paixão no filme que é uma coisa fantástica.

Um vento é composto de 15 elementos, e aí às vezes a sensibilidade do Bruno e a minha nem sempre foi equivalente. Nós conversamos muito, porque eu queria que os sons dos passos, das pequenas coisas, tivessem uma enorme presença neste que é um filme bem silencioso. O brilho das vozes era importante, e eu queria que os sons dos ventos estivessem presentes pontualmente, mas que não afetassem demais. Isso também faz com que o filme seja frágil, porque é necessário ouvi-lo em um volume bastante correto. Se for muito abaixo, parece que você não ouve nada. E se for muito acima, logo no começo há um tiroteio com sons fortíssimos, e aí é capaz que o projecionista resolva abaixar e você não ouça nada depois. É uma mixagem muito delicada.

 

Para terminar, gostaria que você dissesse como pensa o seu lugar dentro do que está sendo produzido hoje no cinema português.

Eu nasci em São Paulo, sou filho de pai português com mãe francesa, fui ainda criança para a França e lá tive minha educação. Estudei filosofia, não cinema, e nos meus primeiros documentários meus filmes eram muito de quem sabia o que queria dizer, mas não sabia como queria filmar. Eles têm o seu mérito porque dizem o que querem muito claramente, só que minha exigência com o lado cinematográfico só veio a partir dos últimos trabalhos.

Então acho que meu parentesco com os realizadores de Portugal se dá mais pelo modo de produção do país, que permite imensa liberdade àquilo que caracteriza o conjunto do cinema português nos últimos 30 anos. Precisamente por causa dessa liberdade é que tenho um fascínio e uma veneração por um filme como A Fábrica do Nada, que exprime essa liberdade totalmente, e por um cineasta de uns anos atrás que é o rei da liberdade, que é o João César Monteiro. É isso que eu acho bonito no cinema português.

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