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Quando a História pede passagem: o processo de Modo de Produção

20/06/17 às 18:35 Atualizado em 10/10/19 as 01:07
Quando a História pede passagem: o processo de Modo de Produção

“A sensação que eu tenho é que cada filme nasce de uma parte do corpo”, sugere a cineasta pernambucana Dea Ferraz. No caso de sua filmografia documental, a frase resulta na seguinte divisão: Câmara de Espelhos, filme que investiga a visão cotidiana e o imaginário dos homens com relação às mulheres, “nasce das entranhas”, como uma busca por discutir o seu lugar como mulher no mundo; Modo de Produção, trabalho que acompanha o cotidiano de um sindicato de trabalhadores rurais em Pernambuco, “está muito mais no campo da racionalidade e do engajamento político”; e o ainda inédito Mateus, road movie que acompanha um casal de palhaços viajando pela Zona da Mata em busca de seus ancestrais, “vem de um lugar bem afetuoso”, sendo bem menos pesado que os anteriores.

Em Modo de Produção, nem toda a racionalidade inerente ao projeto poderia prever que entre a filmagem, em 2013, e o processo de pós-produção, finalizado em 2016, o País passaria por tantas mudanças. Diante do atropelo da História, o que era para ser uma reflexão indireta sobre a (falta de) influência do Porto de Suape na melhora da condição de vida de trabalhadores rurais que viviam naquele entorno ganhou novas camadas extracampo. “Parecia que não fazia mais nenhum sentido questionar uma escolha de desenvolvimento socioeconômico, porque a gente voltou no tempo para bem antes de Suape ou de qualquer obra dessa”, opina a diretora, fazendo referência às reformas impulsionadas pelo governo Michel Temer.

As decisões da pós-produção estiveram impregnadas por esse momento histórico. Escolhas de montagem teoricamente simples, como a necessidade ou não de colocação de letreiros, se transformaram em reflexões ainda não terminadas mesmo depois da estreia do filme no circuito de festivais, ocorrida em janeiro na 20ª Mostra de Tiradentes.

Durante o 6º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, no qual o documentário recebeu novas exibições, o Cine Festivais conversou com a cineasta Dea Ferraz a respeito do processo de realização do filme Modo de Produção.

 

Cine Festivais: Em filmes como ABC da Greve e Linha da Montagem, a questão dos sindicatos está colocada no cinema brasileiro, e desde então foi muito calcada em nosso imaginário pela trajetória do Lula. Você realizou as filmagens de Modo de Produção ainda no primeiro mandato de Dilma Rousseff na Presidência. Queria saber como que essa reflexão sobre o que é o sindicato hoje influenciou o projeto?

Dea Ferraz: Quando a gente pensou em fazer o filme, lá em 2013, ele tinha o desejo de começar a refletir e a questionar as escolhas de desenvolvimento socioeconômico que o País estava implementando, esse modelo de grandes obras que tinha uma presença grande em Pernambuco, entre outras, com a Transnordestina, a Transposição do Rio São Francisco e o Porto de Suape.

Este último era o foco do documentário. A gente via que o governo vendia uma ideia de oásis brasileiro, tinha toda uma mística em torno de Suape, e a verdade é que nada mudava naquele entorno. Fora o trabalho braçal, que trazia operários temporários, a maior parte das pessoas que trabalhavam ali vinha de fora. Havia uma massa de pessoas que estava sendo movida o tempo todo por um sistema que lhes é imposto, pela necessidade de sobrevivência.

A gente vai para dentro do sindicato muito mais entendendo o sindicato como um espaço de passagem daqueles trabalhadores. Era como se ali dentro do sindicato, nos atendimentos dos trabalhadores, a gente percebesse esse extracampo de Suape. Na real o foco não era o sindicato como instituição, era só o sindicato como esse espaço de aproximação com Suape, sobretudo porque parecia que aquele espaço condensava tudo o que eu estava querendo pensar a partir desses trabalhadores que ficam no entorno do porto.

Vamos filmar com esse foco e passamos três semanas no sindicato. É um processo de filmagem bem forte para mim. As salas eram muito pequenas, a gente se mexia muito pouco dentro delas e os atendimentos duravam muito tempo. Eu saía de lá a cada dia com muitos rostos na cabeça e com histórias que eram muito parecidas entre si.

Quando a gente volta para montar o filme em 2016 – e essa parada teve muito a ver com grana, porque de início o filme era um curta e depois virou um longa, por isso tivemos que tentar outros editais para poder finalizar o filme – a realidade do País era outra. Parecia que não fazia mais nenhum sentido questionar uma escolha de desenvolvimento socioeconômico, porque a gente voltou no tempo para bem antes de Suape ou de qualquer obra dessa. É óbvio que Suape está no filme, inclusive a gente abre e fecha o filme com imagens de lá, mas o que acontece pra mim é que Suape vira quase uma miragem. Por isso a opção de usar no começo e no fim o mesmo plano, é quase como se fosse o futuro do pretérito: a gente fez que ia, mas não foi, e o final do filme é quase um déjà vu. O plano final não tem som porque pra mim ali já não há mais nada a ser dito nem ouvido, tudo já foi colocado.

Uma coisa curiosa é que quando Ernesto (de Carvalho, montador) e eu começamos a olhar o material que filmamos em 2013 a gente tinha uma tendência a escolher sempre a câmera lateral, aquela que define o abismo entre o trabalhador e o atendente. Um abismo que é muito simbólico, que fala do espaço entre trabalhador e Estado, trabalhador e Justiça, trabalhador e o Capital… Quando a gente volta para 2016, acaba, instintivamente ou não, indo para as imagens da câmera que está muito mais no close, no rosto dos trabalhadores. Eu sinto que esse movimento e essa mudança de foco diz muito sobre esse momento do País. Foi como se de repente a gente se sentisse obrigado a olhar para os trabalhadores de outro jeito, e meio que compactuar com eles de alguma forma. Daí vem esses planos mais fechados naquelas pessoas.

Nunca teve um foco no sindicato no sentido institucional, de pensar e repensar o que são os sindicatos hoje no País, mas como o filme chega em um momento histórico de País em que todas essas questões estão sendo colocadas, automaticamente ele ganha também essa camada mais evidente do sindicato enquanto instituição.

 

A diretora Dea Ferraz

 

O filme sempre se chamou Modo de Produção?

O primeiro nome do filme era Canavieiros. Quando retomamos a montagem dele no ano passado, eu já estava incomodada com esse nome, sobretudo por uma questão de gênero, porque os trabalhadores eram homens e mulheres. Eu gostava da ideia de nomear o filme como Futuro do Pretérito, mas depois descobri que o Marcelo Pedroso também tinha pensado nesse nome para o Brasil S/A, então vi que não rolava. Foi o Ernesto quem sugeriu Modo de Produção, e para mim é um nome que faz muito sentido de diferentes formas.

O filme tem uma coisa de apontar para uma perversidade que é do sistema capitalista, essa exploração da força de trabalho. E também é modo de produção no sentido que remete à ideia de repetição de mesmas situações tanto na filmagem quanto na montagem, algo que foi bem intencional. Por isso o nome acabou ficando.

 

O nome Canavieiros remete a uma ideia de foco no indivíduo, enquanto que Modo de Produção passa uma ideia de foco no sistema. Ao mesmo tempo você disse que no começo tinha esses planos mais laterais que coletivizavam a abordagem, e depois houve uma trajetória indo pros rostos dos indivíduos. Isso não seria um paradoxo?

É engraçado porque desde que eu fui para o sindicato e que começaram as pesquisas eu nunca tive vontade de individualizar. Eu não queria saber a história pessoal no sentido de intimidade ou de construção de personagem. O que eu via era isso, uma massa de pessoas que são o tempo todo levadas de um lado a outro e que estão o tempo todo à mercê de algo maior que elas.

O nome Canavieiros já estava associado a essa massa, porque todos os trabalhadores são canavieiros. Era muito mais uma associação a essa massa do que a uma individualização. Embora a gente fosse priorizar a câmera lateral, era a massa (que interessava). O rosto não era tão interessante, e sim a repetição daquele atendimento, daquelas fragilidades, porque eles aconteciam o tempo todo. E acho que Modo de Produção tem muito essa preocupação com a massa.

Quando a gente decidiu na montagem olhar mais para o rosto desses trabalhadores, eu não sinto que a gente individualiza, no sentido de criar personagens. Eles continuam sendo essa massa. A diferença é que olhar para eles, pelo menos do meu ponto de vista, começou a fazer mais sentido, porque era como se eu tivesse a sensação de que ao deixar que eles aparecessem em close havia quase uma possibilidade de libertá-los.

É bem louco isso, porque ao mesmo tempo que eu entendo que o close muitas vezes aprisiona, acho que nesse caso tem um sentido de libertação, sabe? Eu preciso olhar para esses rostos, eu preciso olhar para esses olhos, eu preciso olhar para essa cor de pele, para esse corpo físico que está na minha frente, porque se o sistema não olha, eu vou olhar. Era quase isso, entende. Era mais uma vontade de libertar do que de aprisionar, porque aprisionados eles já estão.

 

Com relação ao acesso da equipe de filmagem àquele espaço, como se deu o processo?

O pessoal do sindicato foi super tranquilo, não colocou nenhuma dificuldade e acolheu a equipe muito bem. Já a relação com os trabalhadores foi para mim um mistério. A equipe era muito enxuta, não tinha nem como ser de outro jeito. Essa necessidade determinou muitas escolhas dentro do filme, de não usar luz, de não colocar manta de som. Era uma sala pequena: se a gente transformasse aquilo em um alien, ia ser difícil (para os trabalhadores).

Os trabalhadores foram avisados fora da sala pela produção que havia uma equipe de filmagem, assinaram permissões de direito de imagem, mas nós nunca demos orientação no sentido de “não olhe para a câmera”, até porque nunca foi intenção minha fingir que não estava ali, tanto é que a gente deixa na montagem que essa quarta parede se quebre em alguns momentos.

Agora, acho muito curioso o fato de que a grande maioria entra na sala e não se relaciona de nenhuma maneira com a equipe. Eu fiquei pensando sobre isso, e acho que tem algumas camadas. Tem uma coisa da urgência e da dificuldade de lidar com o advogado, que é o que importa para eles, mas ao mesmo tempo fico pensando o quanto isso diz também desse lugar de estar à mercê. Às vezes pensava sobre isso do poder que é automaticamente concedido ao advogado e à equipe enquanto pessoa física mesmo. Nós somos brancos, a maioria dos trabalhadores não é, sei que existe uma diferença desses lugares. Talvez exista uma associação nesse sentido (entre o lugar da equipe e o lugar do entrevistador do sindicato).

 

Houve cineastas que influenciaram na realização do projeto?

Eu sempre gostei muito do trabalho do (Frederick) Wiseman, assim como dos irmãos Maysles. Tem uma vontade de dialogar com essa escola, mas antes de filmar eu não revisitei a obra deles nem de outros diretores. Durante o processo de montagem eu descobri os filmes do (Raymond) Depardon, principalmente Delitos Flagrantes, no qual ele vai para dentro de uma instituição judicial da França. É uma coisa mais ligada aos pequenos delitos que acontecem na rua. Ele acompanha essas pessoas tendo conversas com seus advogados, e o filme é impressionante porque fica grande parte do tempo nessa câmera lateral, com planos longuíssimos. Depois que o assisti eu vi essa similaridade, e na verdade me deu coragem para acreditar mais no material que tinha, nesse tempo dilatado e nessa experiência física que podia ser o filme, porque eu tinha uma vontade de reproduzir um pouco a minha experiência física também durante a filmagem. Tem um sentimento meio claustrofóbico naquilo tudo. Era o dia todo meio sem se mexer direito filmando aqueles atendimentos, e ouvindo, e ouvindo, e ouvindo…

 

Com relação aos letreiros que aparecem no início (explicando a ideia inicial do projeto) e no fim do filme (situando o trabalho no contexto político atual), como você os encara e porque os manteve no corte final?

Isso ainda é uma questão de reflexão para mim e para Ernesto (montador). A gente ainda conversa muito sobre esses letterings. Os letreiros iniciais nunca foram uma questão. Eu sentia a necessidade de localizar aquele espaço, de dizer o que era a cana-de-açúcar e o que era Suape, imaginando que as pessoas não tem que saber o que é Suape, principalmente quem não é de Pernambuco. Cria-se ali uma espécie de localização: qualquer espectador no mundo pode entender o que é a cana-de-açúcar e o que é um porto cheio de contêineres e imaginar os impactos que isso pode causar.

Os letterings finais, sim, foram motivos de discussão. Eles não existiam no início. A gente colocou numa época, depois eu tirei, achava que estava tudo no filme. Quando a gente começou a corrigir cor, o Pedrinho Sotero, fotógrafo do filme, veio falar que tinha que ter, veio argumentar, e aí voltamos a pensar nisso. Aí, com muita dificuldade, a gente chegou num texto que eu achava que estava ok, mas falei: “é uma duvida. Vamos botar e sentir como isso bate em Tiradentes (sessão inaugural do filme).” Aí em Tiradentes isso virou foco central de muitas discussões sobre o filme. Na própria comissão julgadora (Júri Jovem da Mostra Olhos Livres) alguns me falaram como os letterings tinham interferido na decisão, e eu achei isso bem engraçado.

Acho que tinha uma vontade de colar o filme com um momento histórico do País, e aí acho que isso faz muito sentido para mim, porque eu penso que fazer cinema também é falar do tempo em que a gente vive. Tinha um desejo de posicionamento, de dizer “estou deste lado”, mas eu fiquei pensando muito a partir de Tiradentes que talvez isso (o letreiro final)… é como se eu não acreditasse muito que todas as pessoas fizessem o link do filme com o momento que a gente vive. Porque é obvio que se a gente pensa o filme dentro dos festivais, sabemos que o link é feito, mas e fora dos festivais? Será que todas as pessoas vão fazer esse link? E aí nessa duvida eu acabo por botar o lettering, tentando colar o filme com esse momento histórico e também dizer ao espectador: “olha só, era ruim, vai ficar pior.” É uma forma de fazer isso.

Eu lembro que em conversas em Tiradentes ouvi visões de que o lettering reduzia todas as camadas de reflexão e compreensão que o filme apresentava a uma única interpretação. Eu discordo. Acho que as camadas estão postas no filme todo, e não é um lettering que vai desfazê-las. Disso eu discordo totalmente. Mas fico incomodada com a ideia de que eu precise de certa forma explicar alguma coisa para o espectador. Isso me incomoda ainda hoje. Quero entender até onde vai meu incômodo com ele. Acho que o filme está lá, essas camadas estão lá, e aí confiar no espectador também faz parte. Também é um ato politico.

Isso ainda é uma coisa que eu estou pensando sobre desde Tiradentes, mas eu resolvi manter o lettering justamente porque eu ainda estou pensando sobre, porque acho que essa discussão merece ser discutida. Se eu tiro o lettering isso não existe, a gente não vai mais falar sobre nada. E eu acho massa que essas discussões aconteçam. Mesmo que seja para fragilizar de certa forma o filme. Porque faz parte de uma construção do que a gente quer como cinema, do que a gente pensa sobre cinema, de até onde o cinema pode ir ou não, como ele se posiciona ou não nesse momento que a gente vive, que tipo de engajamento é possível. E aí o lettering acaba suscitando até hoje tantas reflexões sobre esse lugar do cinema que eu acabo achando legal que ele exista.

 

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>>> Rodrigo Pinto escreve sobre Modo de Produção

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