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Por um cinema gay menos careta: Daniel Nolasco fala sobre Sr. Raposo

07/02/18 às 17:12 Atualizado em 11/10/19 as 11:38
Por um cinema gay menos careta: Daniel Nolasco fala sobre Sr. Raposo

Entre as intenções que o cineasta Daniel Nolasco tinha ao fazer o curta-metragem Sr. Raposo estava a de ir contra o modelo de representação cristalizado em nosso imaginário a respeito de portadores de HIV. Quando exibido na 21ª Mostra de Tiradentes, no entanto, o filme provocou diferentes leituras, inclusive de quem achava que o trabalho estava aderindo mais uma vez à narrativa do soropositivo que definha até chegar à iminente morte. “Confesso que fiquei relativamente surpreso com interpretações do filme completamente opostas à proposta dele”, diz o diretor.

Sr. Raposo é baseado em um conto em que Geovaldo Souza (que adota o nome artístico Acácio), parceiro de Daniel Nolasco na vida real, narra a própria experiência como portador do vírus HIV desde 1995. O tom fatalista, contudo, não é o que predomina no filme, que adota uma estética estilizada com uma abordagem de frontalidade em relação ao sexo, tendo inclusive o BDSM como uma de suas inspirações.

Nolasco é formado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e se insere em uma geração de cineastas que trazem novas abordagens ao cinema queer no País (embora seu trabalho não se restrinja ao cinema queer, como comprova o documentário Paulistas, seu primeiro longa-metragem, que chega ao circuito comercial neste mês). Ele mesmo se situa em uma corrente de cinema que se opõe a “uma lógica assimilacionista do tipo ‘todos nós somos iguais, vamos todos nos inserir e sentar na mesma mesa da sociedade brasileira’”, que para ele tem como principal exemplar no Brasil o longa Hoje Eu Quero Voltar Sozinho.

A entrevista a seguir foi concedida por Daniel Nolasco ao Cine Festivais durante a 21ª Mostra de Tiradentes e complementada posteriormente por e-mail.

 

Cine Festivais: Tem uma frase no Sr. Raposo (“basta você ligar a televisão para ver as imagens da minha morte”) que se conecta com todo um imaginário sobre portadores de HIV construído desde a década de 80. Com a evolução do tratamento da doença, o tempo de hoje pede um outro tipo de representação sobre o tema. Gostaria que você começasse falando sobre como você queria que o seu filme lidasse com esse tema.

Daniel Nolasco: Trabalhei durante dois anos no Antônio Pedro, o Hospital Universitário da UFF, no departamento de Oncologia. Nessa época participei de um seminário em que foi apresentada uma pesquisa sobre as propagandas do Ministério da Saúde em relação ao HIV/AIDS, e a pesquisadora verificou que mais de 90% dos anúncios eram voltados para quem não tinha o vírus. Ela concluiu que se ignorava completamente a vida sexual das pessoas que contraíram o HIV, e que isso era uma contradição nos dias de hoje, em que a evolução dos tratamentos permite que pessoas com HIV levem uma vida completamente normal, apesar de a mídia ainda tratá-las com o estigma dos anos anteriores. A partir disso comecei a pensar sobre como essa ausência de representação afetava essas pessoas. O Sr. Raposo tinha essa pretensão de pensar uma nova forma de se comunicar sobre essa questão.

 

Você também tinha esse desafio de lidar com uma experiência real, que é a história do Acácio, portador do HIV…

Sim. Para mim o fator mais cruel na propagação desse imaginário é o impacto que isso tem em quem descobre que tem o vírus. Essa pessoa não vai ter nenhum referencial, justamente porque toda informação produzida é sobre a prevenção. Isso se reflete muito no caso do Acácio. Ele descobriu que tinha o HIV em 1995 e achou que era questão de tempo para morrer, até porque vários amigos dele já tinham morrido da doença. Então ele organizou a vida esperando a morte, pensando nesses passos (adoecer, emagrecer, morrer) muito cristalizados por esse imaginário criado por Filadélfia [filme de Jonathan Demme]. Acontece que o tempo foi passando, Acácio continuou vivendo a vida dele, e chegou o momento em que ele percebeu que não iria morrer e teria uma vida normal, mas até isso acontecer se passaram dez anos. Esse é o grande desfavor que faz essa campanha midiática da prevenção pelo medo, que cria toda essa imagem de morte e ignora pessoas que estão vivenciando a situação.

 

Pensando nesse imaginário já cristalizado e ultrapassado sobre os portadores de HIV/AIDS, me pareceu que o movimento do seu filme é o de se opor a ele. No entanto, no debate em Tiradentes houve algumas pessoas – que provavelmente já tinham esse incômodo com um modo clichê de representação da doença – que entenderam o seu filme de um modo rigorosamente contrário. Por que você acha que esse ruído aconteceu?

Acho que é uma junção de duas coisas. Primeiro, há esse imaginário muito cristalizado sobre HIV/AIDS. Hoje em dia há um questionamento desse imaginário, e acho que a primeira reação das pessoas ao Sr. Raposo – quando o personagem fala logo na segunda frase do filme que é soropositivo – é acessar esse imaginário. Também acho que a estrutura do filme talvez permita algumas confusões que levem a essas outras interpretações. Quando estava fazendo o filme eu tinha um certo receio sobre isso, tanto foi assim que a inserção da propaganda que faz referência a esse marketing sobre a questão da prevenção foi a última coisa que eu botei no filme, porque eu tinha muito medo de as pessoas acharem que o filme não está questionando aquilo.  Sempre foi uma questão pensar se o filme estava construindo o discurso de forma clara, para as pessoas entenderem que o filme está indo contra esse imaginário. A frase que você citou (“basta você ligar a televisão para ver as imagens da minha morte”) foi algo que também entrou quase no final, justamente com esse intuito.

Confesso que fiquei relativamente surpreso com interpretações do filme completamente opostas à proposta dele, mas ao mesmo tempo eu entendo que existe um imaginário muito forte e às vezes é complicado fazer esse movimento de se libertar desse imaginário e entender que o filme está trabalhando com determinados códigos e está questionando isso. Talvez isso tenha acontecido porque o filme não coloca essa oposição muito diretamente, muito didaticamente. A gente não queria ser muito didático sobre o que estávamos falando. Ainda estou refletindo sobre isso.

 

Talvez esse ruído tenha a ver também com o fato de a cena ser no mar. Ontem mesmo, aqui em Tiradentes, a gente viu um filme (Dias Vazios) que se utiliza dessa imagem. E isso está muito forte na história do cinema, passando por Os Incompreendidos e centenas de outros filmes que utilizam essa paisagem. Talvez para a maioria das pessoas o mar signifique um fim, um mergulho, um desaparecimento, uma morte. Como você encarou no Sr. Raposo a questão do mar?

O Acácio tem uma relação forte com o mar, e ele realmente teve esse sonho que é citado no filme, justamente um dia antes de pegar o exame que mostrou que ele era soropositivo. Então, nesse primeiro momento, ele estar no mar passa essa ideia de ter que caminhar sozinho, de ser obrigado a caminhar diferente dali pra frente. E quando o filme volta pro mar no final o momento é outro, ele está ali para dar um mergulho, a vida dele vai continuar.

No debate os meninos colocaram essa questão, tiveram a interpretação de que o mar na cena final remeteria a uma ideia de suicídio. Eu fiquei pensando depois do que eles falaram, e realmente tem uma construção imagética do mar no cinema que representa muito essa questão do fim. Então acho que isso também pode fazer com que as pessoas tenham essa outra interpretação.

 

Acredito que a cena queer no cinema brasileiro cresceu efetivamente nos anos 90, período em que surgiu um festival como o Mix Brasil e a causa passou a ser mais visibilizada na sociedade brasileira como um todo. Ao mesmo tempo em que se mostrou um terreno para que novos realizadores surgissem e seguissem produzindo, o Mix Brasil naturalmente se tornou um espaço de cristalização de uma linguagem cinematográfica comum para alguns filmes queer. Gostaria que você situasse o seu cinema dentro desse contexto e apontasse como essa sua nova geração vem propondo questões diferentes.

Eu costumo falar que o Mix Brasil é o responsável pela caretice do cinema gay no Brasil (risos). Eu acho que ele teve um papel muito importante nessa questão de formação e de incentivo à produção do cinema gay. Olhando para a história do cinema brasileiro, a gente viveu sob uma censura até a década de 80; falar de gays, lésbicas, travestis era tabu. É só pegar o exemplo do filme da Adélia Sampaio (Amor Maldito) que foi censurado e que mostrava a relação de duas mulheres. Aí veio a abertura política, e quando a gente estava começando a fazer coisas diferentes, a ganhar mais destaque, vem o governo Collor e acaba com tudo. O Mix Brasil surgiu em 1993, nesse contexto de ressurgimento do cinema brasileiro. Acho que ele foi uma peça fundamental para cristalizar um certo cinema gay – vamos ficar no G [da sigla LGBT], que é onde eu estou inserido e sobre o qual me sinto à vontade para falar.

Com o passar dos anos as coisas foram se modificando, novas demandas foram surgindo, novos questionamentos estéticos, novos questionamentos de representação, e o Mix não foi mudando. Aí eu acho que hoje o Mix Brasil é um festival muito careta, e que ele foi responsável pela formação de algumas pessoas que fazem um cinema gay que para mim é meio careta. Careta no sentido de que não me interessa muito, pautado por uma lógica assimilacionista do tipo “todos nós somos iguais, vamos todos nos inserir e sentar na mesma mesa da sociedade brasileira”, e que fazendo isso acaba ignorando várias questões importantes. Eu acho que no Brasil o exemplo mais bem acabado desse cinema assimilacionista é o Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, do Daniel Ribeiro, até pelo sucesso que teve, pela eficiência do filme na forma como desenvolve sua narrativa.

Eu sempre vi muito cinema LGBT, mesmo quando morava em Catalão (GO), e quando entrei na UFF comecei a questionar mais esse cinema pautado por uma ideia assimilacionista de representação. E aí comecei a buscar outros referenciais, vi muito cinema underground, Kenneth Anger, Andy Warhol, descobri o cinema do Fasbbinder e também comecei a ler um estudo sobre o cinema pornográfico gay americano e sobre como o cinema pornô nos anos 60 e 70 foi muito importante para o movimento LGBT dentro dos EUA. Alguns filmes, mesmo assistidos hoje, têm uma linguagem muito sofisticada. Tem um filme chamado Bijou (http://www.imdb.com/title/tt0211254/) que se passa quase todo dentro da subjetividade do personagem e trabalha muito com essa estética mais fetichista, essa questão da representação não realista, e isso passou a me influenciar. E recentemente me aproximei muito da galera do BDSM e comecei a trazer isso para dentro dos meus filmes. O Plutão tem um pouco disso, o Netuno também, mas acho que onde isso está mais concretizado é no Sr. Raposo, que se assume muito claramente como filme que trabalha com uma noção de sexo do BDSM.

Hoje em dia acho que estou mais nesse grupo que tenta pensar um cinema gay que não seja muito pautado por uma ideia assimilacionista de representação.

 

Aqui no cinema nacional, quem se encaixa nessa categoria?

No Brasil tem algumas pessoas que estão fazendo um cinema gay que eu acho interessante. Tem o Leo Tabosa, que fez o Baunilha. O Gustavo Vinagre no início da carreira dele, com Filme para Poeta Cego e Nova Dubai, fazia um cinema que eu achava bastante interessante, mas agora ele está propondo novas estéticas, que fogem bastante dessas questões. O Tatuagem, do Hilton Lacerda, é um filme que consegue se equilibrar entre esses dois universos. Tem também o Karim Aïnouz, principalmente com Madame Satã e até com Praia do Futuro, que é um filme que eu tenho questões mais com o roteiro do que com o modo de representação.

 

Gostaria que você falasse sobre como o seu cinema é influenciado por uma ideia de representação fetichista. O Sr. Raposo utiliza símbolos como a revista Vogue e a Coca-Cola como elementos narrativos, que vão ao encontro de uma proposta estética de estilização…

Sobre a questão da representação fetichista, grande artistas se apropriaram disso. Kenneth Anger, o Fassbinder em Querelle, o Tom da Finlândia. Essa ideia de trabalhar com os códigos do fetiche é também uma ideia de trabalhar com um cinema não naturalista. É meio uma atmosfera de sonho: você entra nesse universo e sabe que ele é meio artificial, sonhado, muito pautado pela noção de satisfação de um desejo. Uma noção eu não diria de fuga, mas de ir para um outro lugar.

O Tom da Finlândia, por exemplo, sempre trabalhou a questão de se apropriar das repressões e subvertê-las em objetos de desejo. Na época a polícia reprimia muito a homossexualidade na Finlândia, então basicamente os desenhos dele são de pessoas uniformizadas completamente erotizadas. Ele pegava essas figuras de opressão e as subvertia, transformando elas em objetos de desejo. Eu acho que o Sr. Raposo não faz isso tão literalmente, mas é mais ou menos esse caminho que a gente fez, também tentando se apropriar desses símbolos culturais (Coca-Cola, revistas, mídia) para subverter algumas noções.

 

Há no momento atual uma forte demanda por outros tipos de representação e pelo rompimento de padrões estéticos. Um filme como Inocentes (Douglas Soares), por exemplo, recebeu críticas por retratar representantes de um ideal de beleza muito cristalizado pela mídia (embora haja ali a justificativa da obra de Alair Gomes). Como você defenderia Sr. Raposo de críticas parecidas a essas (no que tange aos personagens malhados que aparecem descamisados e tendo prazer sexual)?

Os corpos presentes no Sr. Raposo não se limitam apenas a esse tipo de padrão estético. Acácio, o personagem principal, é representado por três atores diferentes, sendo que um deles tem 64 anos e outro 52, e seus corpos se distanciam dessa noção de “padrãozinho”, por exemplo. Nas fotos do Alair Gomes é perceptível uma influência e uma busca por um padrão estético muito próximo da noção de beleza clássica greco-romana. Os corpos que interessavam ao Alair se aproximavam de uma certa ideia de harmonia muito presente na esculturas gregas. No Sr. Raposo o interesse está em uma noção de corpo artificial, fabricado, um tanto caricato, não “realista”. Várias cenas do filme rompem com uma encenação realista, e acredito que a artificialidade de alguns dos corpos em cena ajuda a construir essa proposta estética que leva o filme para outro lugar que não o real.

Por exemplo, nas cenas que são os sonhos de Acácio ele é interpretado pelo Diodi Lucas, cujo corpo é quase uma contradição em si – entre os braços por demais grandes e tatuados e as pernas longas e finas. É um corpo que eu acredito que carrega em si uma noção muito forte de artificialidade.

Outra questão dos corpos do Sr. Raposo é a presença de “marcas”, como tatuagens, piercings, cicatrizes, etc. Como o filme se propõe a refletir sobre uma construção histórica e imagética que perpassa a experiência de vida do Acácio, eu achava que os corpos precisavam de alguma forma refletir isso.

Mas apesar dessas diferenças e do fato que no Sr. Raposo as referências estéticas são o BDSM, o leather, as fotos do Mapplethorpe e do Matt Spike, os filmes do Anger e do Poole, o filme ainda está inserido em um universo gay, cis e de classe média, que é o lugar onde o Acácio está inserido.

 

Você entende que esse padrão de beleza estabelecido pode interferir na recepção de espectadores de variadas origens ao seu filme? Até que ponto você acha que o desejo que emana no filme é o dos seus personagens, e até que ponto você acha que ele seria um desejo do olhar voltado para eles (da câmera, do cineasta, do espectador)?

Eu acredito que o erotismo é uma construção narrativa. Não é porque você colocou um boy pelado e de pau duro em uma cena que essa imagem sozinha vai ser erótica; ela também pode ser o extremo oposto disso. Não é porque é sexo explícito que ele é erótico. Não é porque os corpos estão inseridos em determinado padrão que isso vá despertar o desejo. O que pra mim provoca o desejo, o erotismo em um filme é a narrativa que você constrói, e essa construção envolve onde você coloca a câmera, o enquadramento, a performance do ator, o corpo, a direção de arte, o som, a história que você está contando, etc. Ou seja, a estética e o significado que se dá para as imagens. Outra questão muito importante nessa equação é todo o universo de referências e experiências que o espectador traz quando assiste a um filme – o que é erótico para um pode não ser para o outro.

 

*O repórter viajou a convite da 21ª Mostra de Tiradentes

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