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“Não queria fazer um novo Filadélfia”, diz Marina Person sobre Califórnia

02/12/15 às 12:47 Atualizado em 20/11/19 as 15:07
“Não queria fazer um novo Filadélfia”, diz Marina Person sobre Califórnia

A capacidade devastadora da Aids no anos 80 e 90, quando o diagnóstico da doença era tido como uma sentença de morte, já foi tema de diversos filmes, como Filadélfia, de Jonathan Demme, e o mais recente Clube de Compras Dallas, de Jean-Marc Vallée. Em Califórnia, primeiro longa-metragem de ficção de Marina Person, que entra nesta quinta (3) no circuito comercial, esta temática também é levantada, mas aparece em segundo plano.

O filme se passa em 1984, época em que a protagonista Estela, vivida por Clara Gallo, faz planos para encontrar o seu tio Carlos (Caio Blat) no estado americano que dá nome ao longa-metragem. O itinerário muda quando o parente volta magro ao Brasil, já infectado pelo vírus HIV. Esta, no entanto, é apenas uma subtrama do trabalho, que trata muito mais sobre o amadurecimento amoroso e emocional da personagem.

“Nunca quis que o filme fosse sobre a Aids ou sobre o tio agonizando no hospital. Não queria fazer um novo Filadélfia, por exemplo. Mesmo se eu pudesse refazer algumas cenas da Estela com o tio, eu não faria nenhuma com ele agonizando, porque esse não é o tema central do trabalho”, diz a diretora.

Em conversa com o Cine Festivais, Marina Person falou sobre as suas motivações para realizar Califórnia, apontou as suas influências e projetou o prosseguimento da sua carreira como diretora.

 

Cine Festivais: A estrutura do roteiro de Califórnia é circular e cobre um período bem definido da vida da protagonista, como pode ser visto, por exemplo, na escolha por repetir um plano semelhante no início e no final do filme. Esta ideia já estava no roteiro desde o início? Quais foram as principais motivações suas para contar essa história?

Marina Person: A ideia de começar o filme com a primeira menstruação e ir até a primeira transa sempre existiu. Nas primeiras versões do roteiro a personagem menstruava antes, mais menina ainda, mas vimos que era difícil conseguir manter uma sensação de realidade assim. A Clara (Gallo, que protagoniza Califórnia) havia acabado de fazer 18 anos quando a gente filmou, mas ela tinha um corpo de menina e se passa muito bem por uma quase pré-adolescente.

Eu tinha a intenção de falar sobre essas transições de criança para adolescente e de adolescente para adulto sob o ponto de vista feminino, e também de contar um pouco sobre a minha geração, porque para mim foi muito marcante o fato de a Aids ter sido uma doença tão violenta, desconhecida e cercada de preconceito, e a gente iniciar nossa vida sexual ao mesmo tempo em que ela foi descoberta; isso teve um impacto muito grande na minha geração. A gente nunca viveu o sexo sem esse fantasma, nunca pôde ter total liberdade de escolha sem pensar nisso.

Outra coisa que eu tinha em mente era tratar da cena cultural, sobretudo musical, daquele período. Quando apareceram bandas como Titãs e Legião Urbana, eu achava que as letras tinham tudo a ver comigo, havia uma identificação muito grande com aquela rebeldia e com aquelas angústias. Também havia uma influência grande do pós-punk, de bandas inglesas como Joy Division e New Order, que também estão na trilha do filme. Tudo isso fez a cabeça da minha geração.

 

CF: Em entrevista recente que realizei com o diretor português João Nicolau, ele me disse que em John From, filme que também trata do amadurecimento de uma adolescente, “os atores que interpretam os pais tiveram a missão ingrata de estar lá para mostrar que o filme não é sobre eles”. Apesar da abordagem mais realista, acho que essa ideia se encaixa em Califórnia, pois em nenhum momento o filme quer ir a fundo em questões sobre os pais da protagonista e nem mesmo investe no melodrama que a doença do tio poderia propiciar. Sabemos o tempo todo que o filme é sobre a Estela…   

MP: Exatamente, nunca quis que o filme fosse sobre a Aids ou sobre o tio agonizando no hospital. Não queria fazer um novo Filadélfia (filme de 1993 dirigido por Jonathan Demme), por exemplo. Mesmo se eu pudesse refazer algumas cenas da Estela com o tio, eu não faria nenhuma com ele agonizando, porque esse não é o tema central do trabalho.

Outra questão importante é que nos anos 80, apesar de a Aids estar muito presente no cotidiano das pessoas, elas não falavam sobre a doença, sobretudo se ela estivesse perto de você. As pessoas morriam de Aids e ninguém sabia que a causa tinha sido essa.

Era uma doença cercada de preconceitos. Se você conversar com pessoas que perderam amigos nos anos 80, vai ouvir histórias absurdas, de gente que não queria chegar perto de quem estava infectado. Nesse sentido a Estela é um ponto fora da curva, pois fica muito ao lado do tio, mas o fato de os talheres serem separados na casa é um sinal de que os pais a alertavam para não usá-los, tinham essa paranoia que é fruto da ignorância.

Essa desinformação caiu por terra com o tempo, mas o que a gente vê em relação à Aids hoje é que ela é uma doença que ainda está presente, mas que as pessoas não estão nem aí, que não se fala mais sobre o assunto. O número de infectados entre adolescentes cresceu muito nos últimos anos, é uma coisa assustadora.

Hoje em dia há uma grande sobrevida para os infectados por causa dos remédios, mas a Aids não é apenas sobre você, é sobre os outros também. Se você tem, deve se cuidar para sobreviver e para não passar para outras pessoas. Me assusta muito pensar que a epidemia pode voltar com força.

 

A diretora Marina Person

 

CF: Na parte cinematográfica, os anos 80 talvez tenham deixado um imaginário mais marcante em filmes americanos do que nos brasileiros. Quais foram as suas principais referências no processo criativo de Califórnia? Por que você acha que o cinema brasileiro produziu tão poucos trabalhos sobre esse período?

MP: Eu sou cria do cinema americano, vi muitos filmes sobre adolescência nos anos 80. John Hughes e (Francis Ford) Coppola para mim são as referencias mais fortes. Adoro Clube dos Cinco, por exemplo, e acho que é um trabalho que não ficou nem um pouco datado. E do Coppola eu era fã dos filmes com o Matt Dillon, como Vidas Sem Rumo e O Selvagem da Motocicleta.

Por outro lado, eu fiz faculdade de cinema e também vi muitos filmes brasileiros. A gente é fruto de muitas referências, não só de filmes. Quando se dirige um filme, uma exposição de arte ou uma performance artística acabam influenciando também, a gente é meio que um caldeirão de coisas.

Sobre os filmes brasileiros a respeito dos anos 80, acho que é natural que se precise de um tempo de assentamento das coisas, para entender o que foi aquela época. Acho que é um período que ainda vai ser muito explorado no cinema brasileiro.

 

CF: Califórnia foi exibido em festivais (Festival do Rio, Mostra de São Paulo, Festival Mix Brasil) e agora entra no circuito comercial distribuído pela Vitrine Filmes, que é conhecida por trabalhar com filmes independentes brasileiros. Você acha que o seu filme é de nicho?

MP: Não, não é um trabalho que agrade especialmente à crítica especializada ou a algo do tipo. Quando exibimos o primeiro corte do Califórnia no Ventana Sur, em Buenos Aires, saiu um texto na revista Variety que chamava o filme de middle-brow. Eu fui pesquisar o que significa, e descobri que é algo que faz uma espécie de intersecção entre o cinema de arte (high-brow) e coisas mais populares, mainstream (low-brow), que pode agradar a um certo circuito de arte que não seja muito “cabeçudo” e também ter uma comunicação com o público.

Eu espero que ele seja isso mesmo. Acho que é um filme fácil, no bom sentido, sabe. Tem um feel good, tem um drama, mas não é “deprê”. Vamos ver o que acontece.

 

CF: Pensando no futuro, você acha que quais temáticas trabalhadas no Califórnia vão estar presentes em seus próximos filmes?

MP: Acho que há elementos ali que me interessam ainda explorar; o período da adolescência e aquele que vem logo depois são coisas que me fascinam. Tem uma frase do David Bowie que gosto muito que diz “Too Old to Lose It, Too Young to Choose It”. É isso: tem uma hora que você é muito velho para perder as coisas, e outra em que se é muito novo para fazer as escolhas; você se sente meio inadequado em qualquer situação.

Então acho que voltarei a alguma coisa dos temas que estão no Califórnia nos meus próximos filmes. Tenho projetos de longa que ainda estão muito no começo, ainda não consigo falar deles. Estou trabalhando com dois roteiristas; um deles é o Francisco Guarnieri, que trabalhou comigo nesse filme.

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