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“Onde já se viu fazer um documentário em animação?”

26/09/17 às 17:08 Atualizado em 10/10/19 as 00:56
“Onde já se viu fazer um documentário em animação?”

Sócios do Estúdio Teremim, em São Paulo, o casal Nádia Mangolini e Marcus Vinicius Vasconcellos vem desbravando o filão da animação autoral e obtendo reconhecimento com os seus últimos curtas-metragens. Quando os Dias Eram Eternos, dirigido por Marcus, foi eleito o melhor filme da mostra competitiva de curtas do Festival de Brasília no ano passado. No evento brasiliense deste ano o representante do estúdio foi Torre, documentário em animação realizado por Nádia a respeito das memórias dos quatro filhos do militante político Virgílio Gomes da Silva, morto pela Ditadura Militar.

Em sua estreia, no 28º Festival Internacional de Curtas de São Paulo, Torre ficou entre os dez filmes brasileiros favoritos do público e ganhou o Prêmio Canal Brasil de Curtas. Já no 50º Festival de Brasília o trabalho levou o troféu de Melhor Direção de Arte.

Durante o evento na capital federal, o Cine Festivais conversou com Nádia Mangolini e Marcus Vinicius Vasconcellos a respeito do curta-metragem Torre e da trajetória do Estúdo Teremim.

 

Cine Festivais: Na época em que você cursou faculdade de História, como era o pensamento em relação a essas duas profissões possíveis (cineasta e historiadora)?

Nádia Mangolini: Eu comecei no cinema como assistente de produção, bem antes da faculdade. Quando terminei o colegial já comecei a trabalhar na área com live action. Fui assistente de produção em A Casa de Alice e em À Margem do Concreto, do Evaldo Mocarzel, trabalhei no festival de curtas da Kinoforum quando tinha uns 18, 19 anos, nas oficinas Kinoforum. Depois de algum tempo trabalhando com isso resolvi fazer faculdade de História (na Universidade de São Paulo) porque gostava muito da área, mas não tinha o intuito de ser professora ou algo assim.

Eu já tinha um outro emprego fixo nesse mesmo período, então meio que me afastei do cinema para ficar nesse emprego e fazer a faculdade. Depois, com o tempo, voltei para a área através da animação, com o estúdio que a gente tem (Teremim), basicamente fazendo as produções dos nossos próprios curtas, em geral dirigidos pelo Marcus (Vinicius Vasconcellos). Depois de algumas produções de curtas de animação, tive a ideia desse curta (Torre) e quis dirigir, e aí foi minha primeira direção em animação.

É claro que a faculdade de História colabora com uma visão mais ampla de mundo, de coisas que estudei, assuntos que me interessam, e tento colocar isso nos meus trabalhos. Mas a faculdade veio mais por esse lado de me interessar pelo assunto, pelo curso.

 

Queria que vocês contassem mais como se deu esse encontro para a criação do estúdio, em que ano isso ocorreu e qual é o foco de produção do estúdio?

Marcus Vinicius Vasconcellos: O Estúdio Teremim nasceu em 2012 junto com o meu primeiro curta, que foi o Realejo. O objetivo era sustentar essa necessidade de produzir animação dentro de um caminho mais autoral. Ao longo dos anos a gente fez algumas coisas sob encomenda, mas nunca chegamos a fazer publicidade de fato. Já fizemos conteúdo educacional, vinheta para festival, algumas coisas institucionais, mas pouca coisa; basicamente o estúdio se dedica à produção de curtas-metragens autorais. A viabilidade financeira disso é bem complexa, porque o filmes demoram muito para serem feitos e os recursos são escassos, vindo dos editais…

Então estamos no momento tentando entender qual caminho seguiremos, porque temos alguns projetos mais comerciais voltados para TV, mas por outro lado estamos vivendo um momento em que esse caminho autoral tem feito muito sentido. Os dois últimos curtas (Quando os Dias Eram Eternos e Torre) tiveram uma recepção bem legal e tô com um projeto de longa desenvolvido bem nesse caminho mais autoral – mas temos projetos de séries também, estamos tentando encontrar esse balanço entre o comercial e o autoral, sem ter que recorrer à publicidade, que já é outro universo, e acho que não é o que a gente sabe fazer mesmo.

 

Mas atualmente vocês trabalham só com animação?

Marcus: Eu sim.

 

Nádia: Eu não. Na verdade, em relação a isso da viabilidade… Eu nunca ganhei como produtora dos projetos. (risos) Mas participo de todos eles. Tenho outro trabalho, acabo fazendo isso muito nas horas vagas e tento conciliar com o outro trabalho. No caso dele [Marcus], é 100% de dedicação.

 

Qual é o outro trabalho?

Nádia: Eu tenho um trabalho num órgão público, 40 horas, de segunda a sexta, horário fixo, um trabalho mais burocrático.

 

Entrando mais no Torre, como se deu essa chegada à figura do Virgílio Gomes da Silva (militante assassinado pela Ditadura Militar)?

Nádia: No projeto original, quando escrevi ele em 2012, a gente submeteu a um edital e ficou de primeiro suplente. Não levamos o edital, mas percebemos que existia um interesse ali. A ideia era entrevistar filhos de desaparecidos, crianças que durante a Ditadura tivessem tido algum contato com cárcere. A ideia surgiu também por conta da faculdade e por alguns relatos, mas mais de uma reportagem específica que tinha lido sobre crianças que tinham passado dias ou um período no cárcere com os pais durante a Ditadura. Não tinha exatamente quais eram essas pessoas, se seria só sobre isso, era um tanto vago.

Depois ganhamos um edital da Spcine para desenvolvimento de curtas, algo que acho que nunca teve na área e foi importantíssimo para a gente porque foi por meio desse edital que começamos as pesquisas de fato. Aí virou um projeto de filhos de desaparecidos, mas sem ser centrado numa família. Eram vários filhos com experiências diferentes, várias pessoas que durante a infância tiveram essas experiências. Muito da pesquisa aconteceu nos arquivos da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo…

 

Marcus: E demos sorte que, nessa época, junto com o trabalho da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, eles estavam fazendo um trabalho específico sobre infância e ditadura.

 

Nádia: Era um seminário chamado Infância Roubada, que foi feito durante a Comissão da Verdade de SP. Esse seminário gerou um livro chamado Infância Roubada, que é superinteressante, com vários relatos e fotos, material muito rico, que a gente também utilizou nas pesquisas. E foi através dessas pesquisas que a gente chegou às famílias, fizemos as entrevistas, e quando fizemos com a família do Virgílio foi meio… Quando a gente saiu da casa eu disse “nossa, acho que é esse o filme”. A gente ali percebeu que talvez tivesse que fechar numa família só. E aí começamos o trabalho de pegar essas mais de 10 horas de entrevistas pra transformar num curta – que também foi um trabalho superlongo de tentar amarrar essas histórias respeitando cada uma das entrevistas, já que são quatro pessoas, mas transformar isso numa unidade, num filme, num curta.

 

Marcus: Lembro que na época você comentava que o bacana de ser uma família é que a gente podia trabalhar essa questão da memória de fato, porque apesar de eles terem compartilhado as experiências, a forma como eles lembram é ligeiramente diferente de um personagem para outro, e isso interessava muito na época.

 

Como que vocês pensaram essa questão da entrevista? Já tinham tido essa experiência? Vocês levaram câmeras ou só gravaram o áudio?

Nádia: No início do projeto eu não queria câmera, achei que inibiria as pessoas, achava melhor fazer só com áudio, mas durante o desenvolvimento vimos que seria essencial ter essas imagens tanto para auxiliar o desenvolvimento visual do projeto como também por uma questão de segurança – eu brincava que se tudo desse errado a gente teria um documentário em live action. (risos)

Equipes muito grandes dão uma assustada em quem não está acostumado na hora de entrevista, queríamos manter uma intimidade para essas entrevistas, mesmo que tivesse boom, essas coisas… Foi um técnico de som, o Renê Brasil, e uma fotógrafa – trabalharam duas, nas entrevistas era a Cecília Engels e depois numa outra foi a Taísa… Eu e o Marcus estávamos nas entrevistas porque tínhamos uma ideia de enquanto os entrevistados falassem, ele já poder ir anotando questões visuais que pudéssemos utilizar na animação. Com um produtor, eram cinco pessoas no set.

Nunca tinha feito entrevistas, minha experiência com documentários foi como assistente de produção num filme do Evaldo (Mocarzel), isso foi há mais de 10 anos, mas tinha um roteiro, tinha estudado muito a história de todos eles e sabia o que ia fazer de perguntas, mas tentando me deixar livre para também na hora dar outros encaminhamentos de acordo com o que me respondessem. Isso aconteceu com algumas entrevistas.

 

Nesse período sociopolítico que a gente está vivendo, tem se discutido muito nos festivais essa ideia de “cinema de urgência”, todos esses filmes sobre manifestações, sobre impeachment… O filme de vocês em 2012 já tinha uma carga de urgência nesse sentido de rememorar a Ditadura porque a gente lida muito mal com isso. Mas olhando cinco anos depois, em 2017, o filme sendo exibido agora no Festival de Brasília ganha uma urgência maior… E ao mesmo tempo a animação tem seu tempo próprio e talvez seja difícil a animação responder conscientemente a algo tão urgente por essa coisa do tempo. Queria saber como vocês lidam com isso?

Nádia: É, falar “urgente” e “animação” na mesma frase assim… (risos) É exatamente isso, em 2012 a gente não imaginava que teria esse cenário político agora de 2017. É claro, concordo – e o projeto vem muito disso – de que lidamos muito mal com nossas memórias e que nossas histórias são apagadas. A gente não pune, não conversa sobre, enterra essas histórias. Por conta disso, é sempre um tema urgente, como você colocou, mas animação é um processo muito diferente de um live action em que você pode eventualmente reunir amigos e filmar num fim de semana um filme de guerrilha porque o tema é de agora, é atual… Isso não se faz com animação. Se você juntar todos os seus amigos para fazer uma animação num fim de semana, talvez você chegue a 30 segundos de filme e olhe lá. (risos)

 

Marcus: Acho que a relevância do filme quanto ao contexto político é um acaso; nós realmente estamos surpresos. Vai parecer um pouco divagação, mas eu lembro que quando trabalhei com o Alê (Abreu) n’O Menino e o Mundo cheguei a comentar com ele: “meu, Alê, seu filme é muito depressivo, a gente tá vivendo o oposto disso.” Era o auge do governo do PT, mas o filme foi lançado em 2013, quando de repente tudo desmoronou e o filme fazia todo sentido.

 

Nádia: No caso do Torre, ainda teve os 50 anos do golpe, e aí estava no início do processo do filme e falei “perdemos o timing”. (risos) Mas a gente não imaginaria que o cenário chegaria ao que chegou em 2017, então acho que há uma surpresa… E foi um processo muito longo de produção, não tinha como imaginar que o filme seria lançado nesse momento. Mas infelizmente uma surpresa desagradável, que torna o filme mais pertinente por estarmos nesse momento terrível.

 

Queria saber como foi a relação com os entrevistados no sentido de fazer eles entenderem que Torre seria um documentário de animação, com uma produção bem demorada…

Nádia: A relação que se cria com o entrevistado num documentário, pra gente que é da animação, é muito diferente. Brincamos que durante três anos a gente escutou essas quatro pessoas falarem diariamente com a gente, então é como se eles fossem muito íntimos; por outro lado, eles ficaram três anos sem ouvir falar da gente; a gente foi lá, entrevistou e foi fazer o filme, demorou muito tempo. Então nós somos desconhecidos pra eles, mas a gente tem uma intimidade com eles que eles nem conseguem entender, porque foi diariamente o contato.

Na exibição do filme no Kinoforum (Festival Internacional de Curtas de São Paulo) foram a Isabel, que é a primeira entrevistada, o Virgílio que é o terceiro filho, e eles levaram a Ilda, que é a mãe, uma senhora que está com 80 e poucos anos. Quando terminou a sessão, a Isabel e o Virgílio vieram falar que tinham gostado muito do filme, que tinham se surpreendido. Isso foi um alívio, como se tirasse uma tonelada das costas…

Acho que no início do processo eles não tinham claro o que era isso. Lembro que num café durante as entrevistas um deles falou que “animação para criança era muito importante”, e aí a gente falou que não era bem isso. (risos) Mas naquele momento a gente também não ia conseguir explicar direito a intenção, só vendo talvez, né. Acho que depois que eles viram na tela ficou mais claro qual era nossa intenção, e, a princípio, parece que eles gostaram bastante.

 

Entrando no uso das técnicas de animação, há em Torre um número maior de imagens translúcidas se formos compará-lo a Quando os Dias Eram Eternos, que tem uma coisa mais opaca. Nesse sentido, queria saber o motivo do uso dessas técnicas e se isso significa uma tendência por um uso maior de recursos digitais de animação?

Marcus: Quando os Dias Eram Eternos é um filme que trabalha com essa noção do mínimo, então ele não tem de fato uma composição… Pra você faz sentido “composição de animação”?

 

Enquadramento, você fala?

Marcus: Não, é a etapa final quando você pega o elemento animado, aplica no cenário, faz as sobreposições e que vai culminar na composição do quadro de fato, mas no caso da animação é um processo específico, existe um profissional de composição, que é o cara que meio que vai fazer o “final” do filme. E no Dias… era tudo muito cru, muito direto, então dá essa sensação de que não tem digital, mas na verdade o filme inteiro era digital. O que a gente busca o tempo inteiro é sempre trabalhar com a ideia do artesanal, é tudo frame a frame, a gente gosta da textura do analógico.

No processo de discussão do Torre a Nádia trazia muito a ideia das camadas de memória e das camadas de tempo que existem na memória, então a gente tentou puxar muito essa coisa da coexistência temporal na memória de elementos que aconteceram em tempos distintos, principalmente nas crianças mais novas, que têm uma noção menos clara de tempo, uma memória menos racionalizada. Então, embora todos os elementos tenham sido finalizados no lápis e na tinta e no lápis de cor, eles eram fotografados, jogados de novo no digital, e daí fazíamos esse trabalho de composição que era de fato bem mais elaborado que o do Dias…, e nesse sentido parece mais digital.

 

Nos dois filmes há bastante o uso do quadro com menos cenário, um quadro geralmente em branco que às vezes remete a uma folha em branco, com poucos elementos dentro dele. Essa técnica, no caso do Torre, veio primeiro para potencializar o drama e as necessidades internas do filme, ou foi o contrário?

Nádia: No Torre esse aspecto mais branco de elementos tem a ver com a memória, porque isso vai se desfazendo ao longo do filme. Então o filme começa com a Isabel, que era a mais [filha mais] nova, que tem um pouco essa memória mais difusa, que a gente tentou trazer mais… O nosso pensamento foi do mais novo pro mais velho, ir somando elementos, ir somando camadas – então o primeiro bloco é quase todo branco, com poucos elementos e só grafite; o segundo já tem cor, tem mais elementos e tem mais camadas, mais cenário; e no terceiro, que é o Virgílio, o irmão que já tinha seis, oito anos no período, tem mais lembranças “objetivas”, vamos dizer assim. É bem mais carregado, tem vários elementos, várias camadas, cenas com dois cenários, mais personagens, mais elementos passando… No último, muda completamente, porque você tem só o rosto e as camadas de tinta que o revelam

 

Marcus: Falando também de Quando os Dias Eram Etrenos, acho que nos dois filmes há mais uma função conceitual do que dramática o uso dessa técnica. No caso do Torre há essa coisa da lembrança visual, da tentativa de traduzir uma ideia de que a lembrança visual vai ficando mais concreta mesmo. A piscina do Virgílio é totalmente diferente da piscina da Isabel – e ela tem um prédio atrás, todos uns elementos mais concretos.

A parte do Vladimir a gente discutiu muito porque representava uma ruptura e entendemos que o Vladimir é o único que não fala de lembrança, ele faz uma reflexão do presente. Então naquele ponto a gente trabalhava as tintas como um reflexo da subjetividade dele.

Quando a gente discutia essas situações, era mais num sentido conceitual do que dramático, ainda que isso impacte o drama.

 

E vocês tinham alguma referência de documentários em animação para realizar o Torre?

Nádia: Uma referência que assisti um pouco antes de fazer as entrevistas, e que pra mim era forte, era o Jasmine [dirigido por Alain Ughetto], que passou no É Tudo Verdade em 2014. Só que quando a gente começou efetivamente as entrevistas pro Torre, caiu a ficha de que a maioria dos documentários em animação são em primeira pessoa, com o próprio animador trabalhando visualmente algo que aconteceu na vida dele. A gente obviamente sabia que estava fazendo um documentário em terceira pessoa, não era essa a questão, mas quando isso ficou claro, a gente se deu conta dos dilemas de você trabalhar imagens do terceiro. Você está “recriando” memórias e lembranças, mas são outras pessoas e a gente vai trabalhar isso em imagens… Teve um momento de reflexão mesmo sobre essa questão e foi um ponto de questão ética mesmo, de como trabalhar isso em relação ao outro, e foi um cuidado que a gente teve.

Acho que foi nesse momento que a gente tomou a decisão de que todas as imagens desse filme seriam coisas que de alguma forma eles nos contaram ou que foram tiradas de relatos deles. Esse foi o ponto, foi a forma que a gente encontrou de poder trabalhar um documentário em animação em terceira pessoa. Mas a gente tinha feito um estudo de documentários em animação, fez uma pesquisa ampla. Mas o que ficou dessa pesquisa foi esse momento de reflexão de a maioria ser em primeira pessoa, e o desafio de trabalhar isso em terceira pessoa.

 

Mais até do que a animação em si, o documentário em animação talvez seja mais marginalizado no sentido de estar excluído de premiações, do conhecimento público, do senso comum. O Torre mostra a força da animação para a reconstrução de memórias, mas queria saber se também havia uma visão de que fazer um documentário em animação também é um gesto político, no sentido de ir contra esses pré-conceitos atribuídos a ele?

Nádia: Não acho que essa marginalização seja só do documentário em animação, ela é da animação adulta em geral. A gente teve essa reflexão com o Quando os Dias Eram Eternos também. Aí acho que tem mudado esse cenário, mas ainda existem alguns lugares onde falam que animação é para criança, ou é comédia… Já ouvi uma vez, isso numa mesa de curadoria: “o único gênero que eu não gosto é animação.” (risos) Então acho que, apesar de isso ter mudado ao longo dos anos, ainda existe esse preconceito sobre animação ou uma ideia errada de onde a animação pode ou deve ser aplicada.

Eu lembro que quando escrevi o projeto do Torre participei de um laboratório de desenvolvimento de curtas e uma pessoa da área, bem conhecida, viu o projeto e disse que achava horroroso. “Onde já se viu fazer um documentário em animação? Você não vê as pessoas. O importante do documentário é ver as pessoas.” A pessoa também tinha problema com o tema…

 

Marcus: E era um quadrinista, um cara do desenho.

 

Nádia: Sim! “Documentário em animação não faz o menor sentido.” Acho que isso já revela a predisposição a colocar o documentário em animação e a animação adulta num canto marginalizado. Acho que nesse sentido tem um gesto político.

 

Marcus: Acho que é o que a gente se propõe a fazer.

 

Nádia: Que tem se proposto a fazer nos últimos anos, principalmente nos últimos dois curtas, mas também no Pintas.

Marcus: É uma coisa de trabalhar drama em animação, seja documentário ou ficção. A gente fez os dois filmes meio que em paralelo em alguma etapa, e a gente brincava que tinha começado a fazer uma ficção que tinha virado um documentário e começado um documentário que estava quase virando uma ficção. Acho que por serem filmes muito diferentes, nem consigo comparar eles hoje em dia assim, eles bebiam de uma energia meio similar.

Nossa produção está em um lugar de circulação bem específico, que é esse dos festivais, do cinema de inovação, de autor… E aí o que tem interessado pra gente ao longo do tempo é entender quais são os elementos específicos da animação que corroboram pra estruturar uma narrativa dramática – que não é o acting, que é o universo do ator. A história da animação desde que a Disney se configurou como principal escola de animação é que o animador é o ator por trás do personagem, e a gente está interessado em outras questões, tanto que o Dias… e o Torre são filmes que não só trabalham essa questão do drama, mas também buscam uma experimentação gráfica, de estilo e de movimento que tenta encontrar caminhos distintos a esse do acting.

 

Nádia: Acho que no Torre isso se reflete inclusive na composição da equipe. A gente chamou o Gustavo Vinagre pra fazer o roteiro, chamou quadrinistas de fora do universo da animação para fazerem a arte, chamou a Lia (Kulakauskas) para fazer pela primeia vez um trabalho de montagem em animação, chamou produtores que não eram da animação… É uma forma que a gente tenta de trabalhar esse diálogo, tentando sair um pouco da bolha da animação, fazendo esse diálogo maior com live action.

 

Pra gente fechar: dois filmes do estúdio vieram aqui ao Festival de Brasília em 2016 e 2017, então isso significa um ganho simbólico para a animação brasileira que já vem acontecendo há algum tempo, desde O Menino e o Mundo, desde o filme do (Luiz) Bolognesi. Então queria saber primeiro como vocês enxergam isso, num sentido de saber se é uma tendência ou se é algo muito localizado – em vocês, por exemplo, no tipo de cinema que vocês fazem –, e também se vocês se enxergam como parte integrante de algum grupo de novos animadores brasileiros que está aí trabalhando.

Nádia: Acho que existem alguns animadores hoje em dia com um diálogo muito próximo com o que a gente pensa em relação à animação, como a Nara Normande, de Recife, o Maurício Nunes… E não sei se é uma tendência, pra gente é uma vontade continuar trabalhando dentro desse universo, desse jeito que temos trabalhado. O Marcus agora está desenvolvendo o roteiro de uma longa de animação que dialoga diretamente com esses trabalhos que a gente tem feito, então sim, a nossa tendência é permanecer nesse caminho.

A gente tem outros projetos infantis, o próximo curta do estúdio é um curta infantil, provavelmente não vai entrar em Brasília, a gente sabe que é outro perfil, mas ao mesmo tempo continuamos com outros projetos que têm diálogo com isso que estamos tentando trazer da animação com drama adulto e esse diálogo com o live action. Fora do nosso grupo tem algumas pessoas pensando nisso, mas não vejo como movimento.

 

Marcus: Não consigo enxergar como algo que coloque a animação em outro lugar, sabe? Porque não sei se precisa colocar em outro lugar. Tem diversos animadores igualmente importantes que fazem um trabalho incrível e não dialogam com o que a gente faz nem com o que está sendo produzido ou exibido em Brasília ou em festivais similares. Acho que a animação brasileira vive um momento realmente muito rico e de muita diversidade, tem gente produzindo coisas muito diferentes.

É engraçado porque os animadores geralmente se conhecem, é um grupo pequeno, mas no geral as pessoas tentam fazer projetos diferentes uns dos outros, acho que justamente por não termos uma tradição de produção e termos esse desejo por experimentar dentro dessa linguagem.

Estar no Festival de Brasília é legal por mostrar que há espaço e tem aceitação (para animações), mas ao mesmo tempo tem o perfil. Às vezes é comum muitos animadores colocarem que é necessário colocar cota de animação [nos festivais], e eu discordo, acho que os festivais têm perfis e às vezes as animações encaixam mais ou menos. O que acho que é bacana de estar aqui é de ter a sensação de que é possível produzir um tipo de animação que desperte o interesse num circuito no qual não é tão comum de despertar, mas não acho que vá ajudar ou que colabore para que as pessoas se apaixonem por animação e saiam assistindo. (risos)

 

Nádia: São outros públicos, outros perfis. Acho que o interessante da animação brasileira atual é ampliar esses públicos. É bom ver que existem animações que dialogam com o Festival de Brasília, assim como existem animações que não dialogam, que dialogam mais com outros festivais.

 

Marcus: Acho que estamos num momento de maturidade, de diversidade de festivais e propostas de filmes e é óbvio que sempre tem essa rivalidade, de “ah, o Festival de Brasília é muito importante”, mas é isso… A gente nunca ganhou o Anima Mundi, que é o festival que todo animador sonha em ganhar, e a gente tem consciência que talvez não sejamos o perfil do Anima Mundi.

 

Nádia: Não com esses filmes que a gente fez até agora, o que também não quer dizer que um dia não façamos um filme que se encaixe nesse perfil.

 

Leia também:

>>>Crítica do filme Torre

>>> Crítica do filme Quando os Dias Eram Eternos

 

*Samuel Mariani colaborou nas perguntas

**O repórter viajou a convite da organização do festival

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