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Mostra liga passado e presente com foco no cinema africano pós-colonial

10/11/16 às 15:00 Atualizado em 13/10/19 as 23:04
Mostra liga passado e presente com foco no cinema africano pós-colonial

Com a exibição de 39 filmes produzidos entre os anos 60 e os dias de hoje, a maior parte deles jamais mostrada no Brasil, a mostra África(s). Cinema e Revolução faz uma homenagem ao cinema criado no contexto de independência e revolução dos países africanos lusófonos. O evento acontece em novembro, mês da consciência negra, entre os dias 10 e 23.

A abertura guardou espaço para um filme pouco conhecido do renomado dramaturgo José Celso Martinez Corrêa. Realizado em parceria com Celso Luccas, 25 fala sobre o processo de independência de Moçambique. O trabalho foi exibido na época de seu lançamento, em 1977, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no Festival de Gramado e no Festival de Cannes, mas pouco circulou depois disso.

Nomes como Jean Rouch, Ruy Guerra, Murilo Salles também têm filmes na programação, mas o grande atrativo é a possibilidade de conhecer o trabalho de cineastas como Sarah Maldoror, que nasceu na ilha caribenha de Guadalupe, estudou em Moscou e foi fundadora do cinema de Angola. Ela estará representada na mostra por dois de seus filmes, Monangambee e Sambizanga.

Filmes mais recentes, como os portugueses Tabu, de Miguel Gomes, e Avó/Muidumbe, de Raquel Schefer, além de episódios da série brasileira Empoderadas, de Renata Martins, foram escolhidos, respectivamente, para atualizar a memória sobre o passado colonial e os questionamentos sobre o lugar das mulheres negras na sociedade.

Doutora em cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3 e pela Universidade de São Paulo (USP), a curadora da mostra Lúcia Monteiro conversou por e-mail com o Cine Festivais a respeito das questões que guiaram a organização do evento.

 

Cine Festivais: A mostra traz filmes realizados entre os anos 60 e a década atual. Gostaria que você discorresse sobre a proposta central do evento (homenagem ao cinema criado no contexto de independência e revolução dos países africanos) e a respeito de como ela influenciou na escolha dos trabalhos mais recentes. Por que a escolha de países lusófonos?

Lúcia Monteiro: Em 2015 foram comemorados os 40 anos da independência de Moçambique e Angola. O Brasil acompanha pouco a história dos países africanos, obcecado que é pelo que acontece nos Estados Unidos e na Europa. Isso é verdade no caso do cinema também. Apesar de brasileiros terem se engajado na construção do cinema moçambicano, essa cinematografia pouco circulou por aqui.

A experiência moçambicana foi decisiva na trajetória de nomes como Murilo Salles, Zé Celso Martinez Corrêa, Celso Luccas, Licínio Azevedo, além de Ruy Guerra, nascido em Moçambique mas instalado no Brasil na época da independência.

Cineastas de outras origens também se encontraram em Moçambique na fundação do cinema no país: Godard, Jean Rouch, Santiago Alvarez e Sarah Maldoror estão entre os realizadores que procuraram trabalhar com imagens e histórias daquele período. A mostra procura trazer um pouco dessa “amizade internacional e socialista”, através da presença de cineastas não-africanos que filmam ali naquele período.

Por outro lado, a mostra também privilegia o cinema criado por cineastas locais. É o caso de Sana Na N’Hada e Flora Gomes (atenção, apesar do nome, trata-se de um homem. Flora é seu apelido, o nome de verdade é Florentino). Os dois foram enviados a Cuba pelo líder independentista Amílcar Cabral. Em Cuba, estudaram cinema e, na volta à Guiné Bissau, fizeram os primeiros filmes da história do país. Do Flora, trazemos tanto filmes mais antigos quanto seu último longa, A República dos Meninos (2012), todos trazendo de alguma forma estilhaços da memória da colonização e das lutas anticoloniais.

A riqueza da cinematografia desses países e suas especificidades fazem com que sejam um caso muito singular na história do cinema, e que merece ser estudado e visto pelo público com a devida atenção.

Alguns artistas e cineastas contemporâneos vêm percebendo a riqueza desse material e retrabalhando a memória do colonialismo e das lutas anticoloniais em seus filmes. A mostra também quis dar espaço para essa produção mais recente.

 

CF: Como se deu a pesquisa para realização da curadoria da mostra? Como a maioria dos filmes não teve exibições no Brasil, imagino que você tinha recorrido a fontes em outros países… 

LM: Apesar de não terem sido exibidos comercialmente no Brasil, a maioria desses filmes foi vista em festivais internacionais e há menções sobre eles nos raros trabalhos publicados sobre o assunto, como os de Ros Gray e Fernando Arenas. Durante minha pesquisa de doutorado, vi uma instalação da artista Angela Ferreira, chamada “Para Moçambique”. Angela Ferreira é de família portuguesa e tinha nascido em Moçambique quando o país ainda era colônia de Portugal. Nessa instalação, ela exibe um trecho de um filme que o Jean Rouch fez em Moçambique (Makwayela), um trecho de um show que o Bob Dylan fez em homenagem à independência moçambicana e cartazes do projeto que o Godard queria desenvolver ali.

Eu escrevi bastante sobre essa instalação e foi a partir dela que comecei a pesquisar o nascimento do cinema moçambicano e da chamada “África lusófona” – a expressão é ruim, porque o português é apenas uma das línguas faladas nesses países, e o cinema traduz um pouco dessa diversidade.

 

CF: Entre os filmes de diferentes períodos que serão exibidos na mostra, você poderia apontar alguns dos destaques.

LM: Além de 25, filme épico realizado em Moçambique por Zé Celso e Celso Luccas, que estavam exilados depois de o Teatro Oficina ter sido fechado durante a ditadura no Brasil, eu destacaria os filmes de Flora Gomes. É realmente um privilégio poder ver seus filmes na presença do realizador.

Destaco também os filmes de Sarah Maldoror, uma mulher incrível, que fundou o primeiro grupo de teatro negro de Paris, estudou cinema em Moscou e envolveu-se com o Movimento Pela Libertação de Angola, fazendo os primeiros filmes angolanos – Monangambee e Sambizanga –, que estamos mostrando.

A Sarah foi também pioneira da fundação do cinema da Guiné Bissau, mas Fuzis para Banta, filme que ela fez na Guiné Bissau, se perdeu. É justamente a partir das fotografias de cena e das anotações do roteiro deste trabalho, únicos vestígios que restam do filme, que Mathieu Abonnenc trabalha em sua obra Prefácio para Fuzis para Banta.

 

CF: Gostaria que você falasse sobre as razões que a levaram a incluir na mostra os filmes Tabu e Redemption, ambos de Miguel Gomes. O primeiro é ambientado em um local fictício do continente africano. O que lhe interessou nesse olhar revisionista do colonialismo trazido pelo diretor?

LM: Eu enquadraria esses dois filmes de Miguel Gomes num trabalho de memória mais amplo, que vem sendo feito por artistas e cineastas de diversas nacionalidades, mas especialmente portugueses. As chamadas lutas coloniais, a resistência portuguesa frente aos movimentos de independência nas então colônias portuguesas na África, foram decisivas para o fim da ditadura salazarista. Mesmo assim, ainda se trata de um assunto delicado em Portugal. Muitos dos adultos portugueses de hoje tiveram parte da família nas colônias, e vivem, portanto, com um sentimento ambíguo, que mistura nostalgia, culpa, ideologia política.

Acredito que Miguel Gomes consegue traduzir bem a ambiguidade desses sentimentos em seus filmes. Antes de ele fazer Redemption, a também portuguesa Raquel Schefer já havia feito Avó/Muidumbe. Os dois são filmes que reutilizam arquivos privados do período colonial, produzindo uma memória a partir do presente.

Outros artistas e cineastas portugueses investem igualmente essa memória, ainda que a partir de estratégias distintas e com resultados esteticamente muito variados. Infelizmente, não foi possível trazer todos eles desta vez, mas esperamos ter a oportunidade de fazê-lo em breve.

 

CF: Por que o filme 25 só foi exibido na época de sua produção e depois permaneceu esquecido? Qual é a peculiaridade da visão trazida por Zé Celso, um dos nossos grandes dramaturgos, nessa incursão cinematográfica?

LM: 25 foi exibido na primeira edição da Mostra de Cinema de São Paulo, em 1977, e logo depois passou também no Festival de Gramado. Depois disso, o filme foi ainda exibido em algumas sessões especiais, por exemplo na Escola de Comunicações e Artes, e em projeções pontuais organizadas por Celso Luccas por todo o Brasil.

O que houve é que o filme nunca foi distribuído comercialmente, nunca foi editado em DVD, nunca foi restaurado nem teve cópias novas. Ele foi filmado em 16mm. Uma versão passou no Festival de Cannes e foi exibida na televisão francesa.

As ambições do 25 são imensas. É um filme que deixa o espectador com vontade de levantar da cadeira e começar a cantar junto, vontade de aprender os hinos da Frelimo, a Frente para a Libertação de Moçambique.

Do ponto de vista estético, o filme é riquíssimo, com um trabalho de imagens de arquivo de diferentes naturezas, de cinejornais rodados pelos portugueses durante o período colonial até ficções, também portuguesas, passando por imagens filmadas por Celso Luccas e Zé Celso, em preto e branco e em cores. Há encenações teatrais, há momentos de entrevista, há danças, há documentação de situações. Tudo isso perfaz um filme caudaloso, longo, e extremamente singular.

Acho que é um pouco assim com as melhores obras da história do cinema: de tão únicas, de tão excepcionais, ficam um pouco sem lugar, pois não se encaixam muito em meio às coisas que já existem.

 

CF: Quais foram os motivos para incluir episódios da série Empoderadas dentro da mostra? O que ela diz sobre a escassa produção realizada por e com mulheres negras no Brasil?

LM: Era importante para mim propor um elo entre a luta contra a colonização e contra o racismo na África e a luta dos chamados “africanos das diásporas”, ou seja, dos movimentos negros ao redor do globo, e em especial no Brasil.

O trabalho da série Empoderadas me parece um dos aspectos mais importantes do que vem sendo feito no sentido de construir um audiovisual negro e feminino e de dar visibilidade para as mulheres negras.

Acho bonito pensar que a cronologia da mostra começa e termina com duas mulheres negras. O filme mais antigo da mostra era o Monangambee, de Sarah Maldoror, uma mulher negra que sai de Paris para fazer cinema na África. Os episódios da websérie Empoderadas, dirigidos por Renata Martins, dão atualidade a algumas das questões levantadas por Maldoror no fim dos anos 1960 e, em outros casos, mostram como houve conquistas importantes de lá para cá.

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