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“Mas eu tô entendendo tudo que ele tá falando…”: um papo com Daniel Turini

02/05/18 às 18:58 Atualizado em 15/10/19 as 22:20
“Mas eu tô entendendo tudo que ele tá falando…”: um papo com Daniel Turini

Quem acompanha os filmes mais recentes do cinema independente brasileiro já deve ter se deparado em algumas ocasiões com o nome de Daniel Turini nos créditos finais. Junto com Fernando Henna, ele criou em 2010 a Confraria de Sons & Charutos, estúdio de som e mixagem para Cinema e TV. Como editor de som (ou em outras funções ligadas à parte sonora), ele contribuiu para trabalhos de cineastas como Adirley Queirós, Juliana Rojas, Marco Dutra, Caetano Gotardo, Felipe Bragança, Gabriela Amaral Almeida, Felipe Hirsch, Marina Person, entre outros nomes.

Formado em Cinema pela Universidade de São Paulo (USP), onde estudou na mesma turma que Caetano, Juliana e Marco, Turini conta que o foco na área de som veio a partir de um entendimento das demandas do mercado audiovisual. “Depois de um tempo [formado] vi que precisava focar em uma área só, senão não ia conseguir ter uma vida mais estabelecida, consistente, ganhar melhor”, diz.

O mesmo mercado que incentiva a especialização ainda valoriza muito pouco quem trabalha com som no cinema brasileiro, mais notadamente o editor de som. Foi pensando nas interligações entre as condições de trabalho e os resultados criativos que se deu a criação do Encontro Nacional dos Profissionais de Som do Cinema, que teve a sua quinta edição no último mês de novembro, em Conservatória (RJ), como parte da programação do 10º Festival CineMúsica.

“Sozinho a gente não vai conseguir criar essa mudança porque tem um lado de insegurança financeira, de você não saber o quanto o outro está cobrando, ou não saber se o outro pensa assim, se alguém vai lá fazer por qualquer preço. Você até tenta, tem os produtores com os quais tem diálogo, mas pra criar isso como um entendimento de mercado ou de cultura precisa desse movimento coletivo, ‘vamos todos falar um pouco mais na mesma sintonia, que estamos com dificuldade de dedicação e tempo pros filmes, vamos falar que todo mundo precisa desse reconhecimento, que é importante como classe’, e acho que esse espaço (do Encontro) é o que temos hoje”, comenta Turini.

Na longa entrevista a seguir, concedida ao Cine Festivais durante o V Encontro Nacional dos Profissionais de Som do Cinema, Daniel Turini falou sobre seu trabalho na Confraria de Sons & Charutos e detalhou as dificuldades que a área de som enfrenta dentro da cadeia audiovisual brasileira.

 

Cine Festivais: Queria começar perguntando sobre como você chegou a essa área do som.

Daniel Turini: Cursei Audiovisual na ECA-USP e fiz vários trabalhos de som lá. Quando saí, entrei trabalhando com a Miriam (Biderman), mas ainda queria fazer um pouco de tudo, tinha aquela vontade de sair da faculdade experimentando várias áreas. Fui pra roteiro, fui gravar peça de teatro, fui dirigir curtas, mas depois de um tempo vi que precisava focar em uma área só, senão não ia conseguir ter uma vida mais estabelecida, consistente, ganhar melhor. Aí decidi abrir um estúdio de verdade, me dedicar mais ao som.

A especialização é uma demanda do mercado – ser reconhecido como a pessoa que faz pós de som, a pessoa que faz determinado trabalho -, então topei montar um estúdio de som. Nos últimos sete anos me dediquei a isso na Confraria de Sons & Charutos, que criei junto com o Fernando Henna. Nos conhecemos trabalhando na Miriam, em 2003. Temos uma afinidade de gosto e estética, de pesquisa no som, do tipo de trabalho que desenvolvemos juntos. Assinamos todos os trabalhos juntos, por mais que às vezes um trabalhe mais em determinado filme, dependendo do diálogo com o diretor ou do cronograma de cada um. Nós temos uma certa linguagem comum, e tem essa coisa de um poder ser a audição do outro, então é legal, a gente sempre assina junto.

 

Nesse momento em que você abriu o estúdio, você sentiu que havia uma demanda de mercado, em geral, ou de um nicho do mercado?

Eu já tinha um nome por fazer muitos curtas, e nossa geração estava começando a fazer longas. Nosso primeiro trabalho foi o Trabalhar Cansa, do Marco Dutra e da Juliana Rojas. Logo depois, lá por 2012, começaram a chegar séries de televisão, então foi mais fácil de se estruturar e fomos crescendo com as produtoras parceiras, como a Glass, a Boutique, a RT, que sempre confiaram na gente. E ao mesmo tempo essas produtoras cresceram muito nesses últimos anos.

 

Voltando à faculdade, queria saber melhor: quando você entrou na faculdade, você já tinha a ideia de ir pra área de som? Que tipo de ideia você tinha?

Não. Na verdade, pra mim o som foi e está sendo uma mistura de afinidade com oportunidade e com aptidão… Não é uma determinação prévia, é um pouco um caminho natural. Na ECA tem essa coisa mais genérica, de entrar num curso de Audiovisual e poder experimentar várias funções, poder fazer câmera, escrever roteiro, mas profissionalmente isso é um pouco difícil. Você teria que ser muito talentoso, seria uma exceção num mercado que quer que você seja identificado com uma área. Por enquanto, tô indo bem pelo som e tá legal, mas não há essa paixão de “ah, é só o som que me interessa”; me interesso pelas outras áreas também.

 

No grupo de alunos da ECA, você sentia que o percentual de pessoas que se interessavam pelo som era quanto mais ou menos?

O interesse pelo som enquanto linguagem acho que existia em geral, agora como profissão… Primeiro: era uma turma muito pequena, então percentualmente não chega a ser relevante. Eram 15 pessoas, e três delas nem completaram o curso. A Juliana Rojas também trabalhou um tempo com a Miriam, ela era da minha turma. Mas como interesse pelo som a ECA tem uma formação muito boa, professores muito bons. O (João) Godoy e o Edu Santos Mendes tinham uma dedicação muito grande, uma paixão pelo som, e despertavam isso nos alunos. Então os filmes do Marco e da Ju têm uma coisa de som muito forte, ou mesmo os trabalhos do Caetano (Gotardo). O resto da turma toda foi para outras áreas que não cinema ou quase correlatas: teatro, fotografia, artes plásticas. Mas assim, profissionalmente, no mercado de cinema ipsis litteris, somos nós quatro (Marco, Juliana, Caetano e Daniel), acho.

 

Seu interesse pelo som no cinema sempre veio muito calcado pelo caminho da narrativa?

Totalmente. Minha formação técnica é até um pouco falha, eu diria… Tenho uma formação muito mais narrativa, de ver muito filme, de estudar cinema, fazer oficinas de narrativa. Me sinto apto a fazer um roteiro e desempenhar outras áreas, mas sempre com esse foco da narrativa. Sobre música, por exemplo, não tenho conhecimento profundo, não saberia mixar uma música, mas sei mixar um filme – é outra lógica, e uma lógica muito em função da narrativa. Entender isso é muito difícil. É uma coisa que demora pra você pegar, saber o que aquilo muda na história, ou como pode mudar, ajudar, se contrapor ou só brilhar um pouco mais… Saber, enfim, o que você pode fazer de narrativa sonora dentro da realidade que chega para você em cada projeto.

 

Como isso muda a sua relação com as pessoas que estão te contratando? A troca vai mais para um lado narrativo, para discussões que vão além de uma ideia de trabalho quase manual, técnico?

É, nosso trabalho tem um lado muito artesanal. Por mais fordista que tentemos ser, por mais que tentemos organizar, é artesanal. E acho que depende muito de cada diretor, né. Ele determina muito o espaço que você terá no filme, determina o diálogo que você terá… Em muitos casos, o diretor acaba até assumindo uma parte da função do produtor – eu faço muito filme médio, filme pequeno, mas que ao mesmo tempo são filmes de estreantes, jovens, que têm uma busca por linguagem. Então depende muito dessa marca de direção/ produção/linguagem/narrativa, que muitas vezes está na figura do diretor. Varia muito de acordo com cada diretor.

 

Depende mais do modo como eles encaram o seu trabalho do que da forma como você encara o trabalho deles?

Do espaço que eles me dão pra trabalhar, do tempo… Tem diretor que vê que preciso de mais tempo e vai batalhar com o produtor; tem diretor que quer que você cumpra o prazo… Depende muito. A gente entra no meio do processo, quase sempre. Tem filmes que a gente lê roteiro e participa antes, mas o mercado está estabelecido com a gente geralmente chegando quase no fim do processo, no finalzinho da montagem, às vezes com a montagem já fechada, e já com um pensamento sonoro desenvolvido naquela imagem. O som não está trabalhado, mas está latente na imagem, no enquadramento, no som e no ritmo das falas, no jeito de falar, nas limitações do som direto. Então o pensamento de som está ali no roteiro, está em tudo… se a direção de arte usou um objeto de metal ou de plástico, não vou conseguir ir lá e colocar o som que eu quero, vou colocar o som que aquilo me sugere, e de um jeito criativo e tal.

Mas o ideal, que a gente ainda não tem como modus operandi, seria a gente participar da análise técnica, saber os objetos que serão usados, para pensar o som. O que acontece um pouco é que o diretor no Brasil, principalmente nesses filmes pequenos e médios, acaba centralizando isso. Ele não precisa ter exatamente uma definição sonora, mas ele precisa ter intuição e… Como fala… Mais que intuição, ele precisa abrir espaço pro som. Saber que existe um extracampo, que pode existir na atuação, no enquadramento, na sugestão do que está enquadrado ou não, na arte, no tempo que as coisas têm. Precisa saber porque se coloca uma fala atrás da outra… E às vezes o filme é só realista, também tem isso. Mas mesmo em filmes realistas, se o diretor tiver sensibilidade pro som… Às vezes ele nem vai saber te falar o que pensou, mas deixou um espaço ali. Aí, ao longo do tempo, com os diretores que você trabalha há muito tempo, esse diálogo, que poderia ocorrer filme a filme, vai acontecendo pelo menos numa perspectiva mais longa. O diretor começa a saber coisas que você faz, intui coisas que você resolverá de ritmo, de timbre, de textura, e aí vai acontecendo essa troca.

 

Você disse que o primeiro longa que vocês fizeram na Confraria foi o Trabalhar Cansa. De algum modo, esse extracampo que você falou sempre está muito presente nos filmes do Marco e da Juliana. Você acredita que esses diretores mais jovens, que estão fazendo filmes autorais pequenos e médios, estão chegando ao primeiro longa com uma preocupação maior sobre o pensamento sonoro dos filmes?

Totalmente. Acho que é uma geração que cresceu com uma preocupação narrativa – porque a narrativa sonora mudou muito, né? Lembro que quando fizemos o Trabalhar Cansa ele não tinha nenhuma música extradiegética. E isso ainda era uma coisa rara, você contava uns cinco ou seis filmes que usavam essa estética, e hoje em dia isso é bem mais comum. É quase um padrão você não ter nenhuma música, ou pouca. Isso porque, tecnologicamente, você consegue trabalhar um som mais complexo, você consegue abrir cem pistas tranquilamente no computador de casa. Antigamente era um caos você abrir mais que cinco ou seis pistas.

O som começou a ganhar uma complexidade, um jeito de trabalhar que não precisava daquela música só pra acompanhar ou encobrir defeitos do som direto. A música era usada quase como uma pasteurização do filme, e hoje em dia, no cinema autoral mais instigante, não tem porque você pasteurizar uma parada. Você cria um ambiente mais interessante que trabalha as vozes melhor para que passe do jeito que você quer, são muitas ferramentas disponíveis. E ao mesmo tempo, no Brasil, tem essa cultura que foi sendo criada com produção contínua e universidades mais fortes – no meu caso, o Edu e o Godoy na ECA eram bem determinantes pra todo mundo que saiu de lá pensar o som e respeitar o trabalho de som.

Claro que sempre tem aquele diretor, que hoje em dia é raro, mas que peguei muito, pra quem você falava “olha, não tá bom esse som”, e ele respondia: “não, mas eu tô entendendo tudo que ele tá falando”… E você explicava: “não, mas o som não é só inteligibilidade.” Ou mesmo diretor que já peguei que fala “ah, não entendo nada de som”. Como você chega e fala que não sabe nada de som? Você não aprendeu a ver? Então pode aprender a ouvir. Ninguém nasce sabendo tudo de foto, de arte, nem de som. Ninguém precisa ser um especialista em foto pra apreciar um quadro, um enquadramento… Nem um especialista em arte pra entender o que é uma paleta de cor, pesquisar paleta de cor, entender pra si narrativamente uma paleta de cor. É a mesma coisa com o som: ninguém precisa saber tecnicamente de som pra aprender um pouco de som, o que é um foley, as diferenças de foley, qual é a música, o diálogo, como é a linguagem do seu filme. O principal de tudo, no caso brasileiro, é a continuidade.

A gente mixa os filmes do Adirley (Queirós), que o Guile (Martins) faz edição de som, e são filmes que são fortemente calcados na narrativa sonora. Aqueles estados de espera, aquela ficção científica que não se completa, e no som ela vai pra outras formas. Enfim, ele tem uma linguagem audiovisual na qual o som está fortemente inserido, e ele não tem uma formação acadêmica de som. Então acho que é isso, é algo retroalimentado de uma geração que se acostumou a ver filmes num período em que o som cresceu muito, e aí eles entendem essa possibilidade e trazem isso desde o roteiro, desde a semente do filme. Ali já há som junto com imagem, o que deveria ser natural, mas não era tanto há alguns anos.

 

Percentualmente, no seu trabalho, isso já é uma maioria?

Varia muito de ano pra ano. Nos últimos dois anos a gente pegou uma leva muito boa de filmes, tanto que em 2017, por exemplo, trabalhamos com três filmes que foram para Berlim, dois para Locarno, outros para Roterdã, para Brasília, enfim, muitos filmes em muitos festivais. Mas a gente depende um pouco do que procuram da gente. Claro que a gente ajuda o filme a estar nesses festivais, mas a verdade é que o filme precisa de muitos elementos pra chegar num festival desses, pra ter repercussão, então são projetos muito interessantes que têm chegado pra gente. Mas varia muito. Mais recentemente já fizemos mais projetos comerciais, mais TV, mas aí depende um pouco das pessoas que passam a conhecer nosso trabalho.

Tem algo muito legal acontecendo que é uma pluralidade muito maior de pessoas trabalhando com som, principalmente em TV, em séries. Isso abriu possibilidade de as pessoas viverem de som, que era algo muito difícil, muito restrita ao eixo Rio-São Paulo. Enfim, cada ano é uma coisa, vai mudando, não dá pra saber. Espero que os diretores continuem gostando de trabalhar conosco.

 

No caso do Adirley, você trabalhou em quais filmes?

A Cidade é uma Só?, Branco Sai, Preto Fica e Era Uma Vez Brasília. Foram esses três que mixamos.

 

Você teria outros exemplos de diretores que você vêm acompanhando a trajetória, e algum exemplo mais concreto de prática de trabalho mesmo, de como isso ajudou?

Nós trabalhamos muito com o Marco e a Ju nesse começo. Esse último (As Boas Maneiras) não fizemos, mas de resto trabalhamos juntos nos curtas e nos longas. Tem o Felipe Bragança, a gente fez muita coisa depois que ele conheceu de perto nosso trabalho, fizemos o foley pro A Alegria, e depois vários longas. Tem a Gabriela Amaral Almeida, que agora está para lançar dois longas e de quem eu fiz todos os curtas, então temos uma afinidade muito grande, dessa coisa que digo da convivência gerando um espaço de respeito e de espaço físico mesmo, que o som precisa para acontecer. O som acontece no tempo, então se você não tem pausa, aí não tem espaço físico para ele.

Tem diretores com quem trabalhei pela primeira vez, como a Júlia Murat no ano passado, Paulinho Caruso e Teo Poppovic com o TOC, que é mais comercial, mas também é uma geração muito nova, uma proposta de linguagem muito diferente. Tem o Felipe Hirsch, que fizemos no começo desse ano o primeiro longa solo dele (Severina), que também é um cara que tem um ouvido foda, tem um padrão de exigência altíssimo e sabe ouvir, então é uma troca muito legal.

Com o Victor-Hugo Borges fizemos a série do Historietas, chegamos a trabalhar no curta dele quando eu e o Henna estávamos na Miriam, e aí ele fez a série e agora tá lançando o longa do Historietas Assombradas, que também fizemos, e foi um trabalho monumental. Quer dizer, animação, né, o cara faz umas loucuras de filme de ação, carro que se transforma e que entra no meio de um vulcão, perseguição com carro, lobo, ovelha… Aí a gente tem que dar contade tudo isso (risos). É um cara com quem trabalhamos há muito tempo, tem uma relação muito legal, de respeito e parceria.

Talvez tenha mais pessoas que esqueço, mas é legal participar de uma geração e de um movimento, no sentido de algo forte, pulsando, surgindo e se desenvolvendo.

 

E com relação ao tempo que você tem pro trabalho. Como você trabalha muito com esses filmes autorais, pequenos e médios, imagino que muitos deles tenham uma questão ligada à necessidade de entrar em determinado festival. “Ah, foi selecionado, então tem que finalizar.”

Varia muito. Nesse último do Adirley (Era Uma Vez Brasília) ele chegou e disse que o filme tinha sido selecionado e ainda nem tinha fechado o corte. Tínhamos duas semanas pra editar e mixar tudo, o Guile (Martins) ia editar em uma semana, a gente ia mixar na outra. Tinha, sei lá, duas semanas e pouquinho, uma loucura. Nesse último filme da Gabriela (Amaral Almeida), A Sombra do Pai, ela veio com o filme, demorou bastante pra achar o corte, aí quando chegou ao som também era difícil encaixar, entender o filme e como fazer. Aí é aquilo: o que se planejou pra fazer em um mês e meio e acabou levando três meses.

Claro que seria ótimo se tivéssemos o reconhecimento financeiro correspondente, pagando por semanas – vendo que se o filme demora três meses pra fazer, pagaria o dobro do que aquele que demora o padrão de um mês e meio (pra edição, né, fora mixagem). Mas enfim, a gente vai abrindo espaço por enquanto. Acho que está todo mundo no mesmo barco de abrir espaço. Pelo menos dessa geração.

 

Essa questão de vocês terem o próprio estúdio e a própria dinâmica da finalização de som, da edição e da mixagem, imagino que seja algo um pouco isolado, vocês não participam do set…

De certa forma gostamos que seja isolado, é muito difícil set e a relação pessoal das coisas. Enfim, gostamos de nos isolar ali um pouquinho, de se relacionar só com produtor e diretor, acho que tem um pouco de uma escolha. Mas desculpa, cortei sua pergunta.

 

Queria que você falasse um pouco da relação com o material bruto que chega.

É, esse seria o complemento, acho que o mais legal… É um saco quando o filme é ruim, mas o mais legal é quando chega com o filme pronto… Não, pronto não… Pronto pra interagir com ele e ter o resultado ali. Por um lado, o som é muito abstrato, mas como etapa de produção é a menos abstrata criativamente, porque você está lidando com uma atuação que já está registrada, com um ritmo de montagem que já está posto, enfim, com o filme inteiro…

Quando o filme não é tão legal ou não tem espaço pro som, você fica se digladiando com isso, mas quando é muito legal ou tem muito espaço pro som, é um prazer, é uma relação muito mais direta com o material, com o produto final, com a obra do que nas outras etapas de cinema. A Maria Muricy [editora de som] até falou que tinha desencanado da etapa de produção porque não via as coisas acontecer, não via as coisas prontas, não via o resultado. O som é o oposto: a gente cansa de ver e de trabalhar em cima do material final, e dialogar e esgarçar ele, contrariar, enfim… É gostoso esse jogo com o material real, é muito diferente das outras áreas em que você está sempre imaginando como seria lá na frente. É muito prático, e é gostoso isso.

 

Com relação a espaços como esse daqui, do Encontro Nacional dos Profissionais de Som do Cinema. Pensando essa ideia do isolamento, aqui é um local justamente de integração e onde está sendo discutido muito essa questão, não só de refletir sobre o som dos filmes, mas primeiramente sobre a cadeia do som e depois a do cinema. Queria que você comentasse.

Pra mim, há um ponto central na cadeia do som que é o de reconhecimento financeiro. Esse é o grande gargalo que vivemos. A parte técnica até que é reconhecida. A necessidade de ter um bom técnico de som, por exemplo. O produtor sabe que pode perder uma diária ou comprometer um trabalho gigante pelo som direto ter um problema grave. Ele não vai arriscar no som direto, a mesma coisa na mixagem; isso tudo gerará custos pra ele. Então a parte técnica do som tem um respeito maior que a parte criativa – que deveria estar um pouco acima de tudo, enquanto a técnica é o padrão. É difícil a parte criativa ter esse espaço.

Pra mim, claramente o que acontece é que ficamos sem tempo de interagir mais com as outras áreas, de entrar antes no projeto, de ler o roteiro, porque não estão pagando pra vermos roteiro, pra gente ir à filmagem, pra ver corte. Isso seria muito legal, e não é que precisa pagar isso, mas se tivéssemos uma margem de não ter que pegar tantos filmes ou pegar TV junto pra sustentar o estúdio em relação a longas, a gente teria mais espaço, mais diálogo…

Mesmo em relação ao diálogo entre o pessoal do som. Um dos motivos sérios de não ter tanta gente aqui nesse encontro, por mais que não tenha o patrocínio esse ano, a falta de dinheiro do próprio festival, é que tem muita gente que está trabalhando. O Armandinho, que é referência em mixagem no Brasil, acho que ele nunca veio nesses encontros. Eu mesmo não vim a vários porque estava trabalhando. O Armandinho trabalha muito, então é difícil. Tem vários profissionais que nunca vieram aqui ou vieram poucas vezes, ou então que vieram muitas vezes e agora não estão aqui porque estão trabalhando. Nós trabalhamos muito, esse é o gargalo. E trabalhamos muito por um lado porque gostamos, mas por outro porque precisamos ter o dinheiro pra quando não tivermos trabalho.

Ganhamos muito mal com relação a cabeças de equipe, se for comparar… Se o editor de som ou desenhista de som ou supervisor de som for o cabeça de equipe, o que a gente consegue ganhar como mão de obra não se equipara nem de perto a um montador, um diretor de arte, muito menos a um fotógrafo. Então é essa coisa muito capitalista mesmo, de falta de tempo pra desenvolver trabalho, pra respirar… Falta um pouco isso no som. A gente acaba se desdobrando, como é muito artesanal… Enfim, tem filmes que são mais fáceis, outros são mais difíceis, então vai numa média, mas no fim é uma equação ingrata. A gente acaba tendo que fazer TV junto e se desgastar… A médio prazo, é horrível.

Pra mim a grande questão hoje é essa, é lutar por mais tempo e espaço, que é receber melhor, é reconhecimento. Hoje no mercado a gente é meio como uma empresa, mas ao mesmo tempo é o criativo, o chefe de equipe. Nossa equipe é uma empresa, a gente tem uma estrutura física, então a gente precisa equacionar a questão da estrutura física (edição, gravação de foley, dublagem, etc), tem que considerar toda essa parte de produção com a parte gerencial de pessoas, de RH, e com a parte criativa, estética, narrativa e tal. Então a gente fica um pouco saturado de tanta coisa. Claro, em dupla é mais fácil, um vai jogando pro outro, apoiando, mas não era pra ser assim. A gente precisa lutar pra ter esse reconhecimento, esse espaço, pelo menos a médio prazo. A gente ainda trabalha com muitos filmes pequenos, com a maioria dos produtores temos uma relação de amizade, uma coisa muito franca, talvez uma característica geracional.

Por exemplo, o filme do Adirley, ele vai me pagar pouco, mas sei que ele está pagando dez por cento do orçamento do filme porque ele sabe que aquilo é importante e ele faz filme com pouquíssimo dinheiro. Ao mesmo tempo, não vou trabalhar dois meses no filme dele porque o dinheiro que ele tem me paga duas semanas, então vou tentar encaixar ele naquelas duas semanas. Aí faz parte da coisa criativa, mas tem um respeito, ele também não vai exigir que eu trabalhe dois meses, ele está fazendo um esforço dentro da realidade do filme para reconhecer meu trabalho, então acho que se houvesse esse esforço nos filmes maiores, agora quando essa geração começar a chegar nos filmes grandes e ter um orçamento maior, talvez possa ser uma possibilidade de eles entenderem nossas demandas de tempo, dinheiro e reconhecimento.

No fim, é isso, é reconhecimento de que precisa de tempo, de espaço pra diálogo, para pensamento, para ver referências, fazer pesquisa… Nunca tenho tempo. A pesquisa que faço de assistir filmes de referência é tudo meio embutido, é muito mais do meu desejo pessoal do que da minha proposta de trabalho, e não deveria ser assim. Assim como a arte tem tempo de pesquisar, as pessoas do som direto, de arte e de foto vão fazer visita técnica, por que não uma pessoa de finalização ser paga uma diária pra fazer a visita técnica ou pra saber como foram as visitas técnicas e já estar nesse diálogo com o cara do som antes? E por aí vai.

 

Você pensa que esse movimento coletivo pode de alguma maneira tensionar algo da cadeia?

É, sozinho a gente não vai conseguir criar essa mudança porque tem um lado de insegurança financeira, de você não saber o quanto o outro está cobrando, ou não saber se o outro pensa assim, se alguém vai lá fazer por qualquer preço. Você até tenta, tem os produtores com os quais tem diálogo, mas pra criar isso como um entendimento de mercado ou de cultura precisa desse movimento coletivo, “vamos todos falar um pouco mais na mesma sintonia, que estamos com dificuldade de dedicação e tempo pros filmes, vamos falar que todo mundo precisa desse reconhecimento, que é importante como classe”, e acho que esse espaço (do Encontro) é o que temos hoje.

E, na verdade, o que aconteceu muito nos outros encontros, até onde sei, é que acaba misturando muito com as demandas de som direto, que são mais específicas. O cara de som direto, o produtor está vendo ele lá todo dia, ele tem que mandar a van buscar o cara de som direto, é muito objetivo. É a diária, é a semana, ele tá vendo o cara trabalhar, ele vê se o cara é sério no set ou não, se tem assistente, se sem assistente ele tem que se desdobrar ou não, enfim, é uma relação bem mais fácil de pressionar os produtores.

Por exemplo, o Bruno falou que eles fizeram um movimento que todos os microfonistas do Rio de Janeiro passaram a cobrar quatro vezes mais quando eles viram que era insustentável a situação deles. A gente, na pós, não tem muito como fazer isso. Você pode ter um filme que você finaliza com uma edição de diálogo bem feita ou o filme do Adirley, por exemplo, que não tem edição de diálogo. O Guile faz toda edição, não tem como ele fazer a edição de diálogo, um super foley, a edição ambiente-efeito… Como é um filme pequeno, ele se concentra no que é mais linguagem, o que é mais importante, e tem essa característica meio bruta e tal, então não tem essa edição de diálogo. Mas ao mesmo tempo, às vezes tem filme que é de mercado e não tá pagando, tá pouco se lixando se há uma edição de diálogo bem feita ou não. Então como um editor de diálogo vai fazer uma greve e dizer que precisa ganhar quatro vezes o que está ganhando?

É uma cadeia de profissionais que não são vistos, não são reconhecidos, e que a gente precisa valorizar de alguma forma – tanto o editor de som, ou o supervisor. É um mercado ainda muito jovem, o de som principalmente. Por exemplo, não há nenhum mixador com mais de 42 anos no Brasil. Tem um gap geracional dos anos 90 com a baixa de produção da época, os técnicos de som foram pra publicidade, alguns mixadores também, mas não existia função direito para um editor de som na publicidade. Aí se for então para especificidades do som, como foley, ambiente, diálogo… Quem faz foley hoje não tem mais que 30 anos, tá nessa casa dos 30. Mas espero que seja um profissional que seja respeitado e que possa fazer uma carreira consistente como foley. Agora, o mercado quer esse profissional ou vai pagar pouco até esse profissional desistir? Tem muitos casos de pessoas que desistiram do som por não haver espaço. A pessoa não queria ser designer de som, achava que não era o lance dela, mas não existia lugar para ser artista de foley ou editor de diálogo. Agora temos, tem pessoas se dedicando ao foley. Espero realmente que eles consigam não só sobreviver, mas serem respeitados, mostrar que “tem que chamar a Guta, o Raul, tem que chamar essa pessoa de foley”…

Na França, por exemplo, a gente fechou um filme lá, está tendo muita coprodução, e o produtor pensou se ia fazer o foley na França ou no Brasil, aí ele quis saber o nome do artista do foley daqui, pra puxar o currículo do cara, ver os filmes que ele fez, porque na França foley é algo muito importante. É uma escolha que o produtor queria acompanhar.

 

E por aqui é tudo junto?

Aqui o produtor às vezes nem sabe o que é foley. E quando sabe, não sabe avaliar, então acaba sendo no pacote, a gente que se responsabilize. Então como ele contratou a Miriam Biderman, contratou a gente… Aí nos responsabilizaremos por ter o melhor foley, que se adeque ao filme e tal… A gente valoriza o artista de foley, mas não somos nós que temos a grana. Então, claro, o primeiro caminho é pressionar pra gente ter um pouco mais de grana pra poder pagar melhor, mas também tem que ter a pressão do artista de foley para ser reconhecido. Acho que principalmente essas duas áreas, edição de diálogo e foley, são duas coisas muito específicas que fazem muita diferença num filme e é um trabalho muito minucioso, e será uma pena se não conseguirmos ter uma carreira dessas áreas.

São sempre jovens começando, depois de uns dois, três anos fazem melhor, mas… E acaba sendo um desgaste extra pra gente, até hoje eu tenho que editar foley porque… Você ensina uma pessoa, aí a pessoa quer fazer outra coisa. Até hoje gravo foley às vezes porque o filme não está pagando o suficiente pra eu contratar alguém, ou então a pessoa que posso contratar também não é ultraprofissional, então entre eu e ela não há diferença absurda de conhecimento. Então acho que o próximo passo necessário é reconhecer os profissionais e os profissionais serem reconhecidos pela cadeia.

 

Ainda nessa parte econômica, é quase uma exigência de mercado essa coisa do “empreendedor” que forma sua empresa para poder oferecer os serviços de som, não?

É, nessa área é um pouco uma exigência. É o que a Miriam (Biderman) estava falando, ela tem que ter uma empresa, ossos do ofício, faz parte. Idealmente, num mercado mais amplo, como Estados Unidos ou França, é mais comum você ser um editor de som, daí você forma uma equipe para um determinado filme, com um editor de diálogo que você confia, tem uns dois ou três, um artista de foley… Aí você cria uma equipe como a de foto ou de arte.

No som não, a gente se coloca no mercado como empresa. “Ah, o Daniel Turini e o Fernando Henna, quero trabalhar com eles, gosto muito da linguagem deles”, mas quando vem contratar, contrata como empresa, e também somos produtores. Somos responsáveis sobre toda parte de estruturação. É um modo de operar, mas poderia não ser o modo único. Poderia ser de querer chamar um profissional que eu gosto da visão dele de cinema e de som e tal, e daí esse profissional vai chamar outros profissionais pra trabalharem pra ele. Esse seria um modo de desvincular um pouco, seria mais próximo do que rola com outras equipes do cinema. Faz parte de verem o som muito como uma área técnica.

Então faz parte desse reconhecimento criativo ver que podemos ser empresa – se você está fazendo uma série de TV, você provavelmente precisará abrir uma empresa porque você precisa de uma consistência, data de entrega muito precisa e tal, então você não confiará num cara que chamará uma equipe. Mas um filme não, ele tem essa característica em geral mais aberta, com tempos diferentes, com dedicações diferentes e com entrega única, com fechamento único, então ele poderia ser visto como mais criativo em geral. Então acaba se fundindo a figura do artista com a figura da empresa. Ou do artista, enfim, do artesão quase ou do, não sei, do técnico. E é isso, é por ser visto um pouco como técnico, né.

 

Com relação ao trabalho do foley, queria saber um pouco mais, porque às vezes fica algo muito abstrato, mesmo pra quem acompanha cinema.

É difícil de definir. A minha definição pessoal, que acho que funciona, é tudo que você consegue gravar num estúdio. Se tem uma explosão, você não conseguirá fazer em estúdio, mas você consegue fazer um vidro caindo, um vidro quebrando. Tudo que você conseguir gravar num estúdio, de forma controlada, de forma a dar ênfase especial ao que você está gravando, é foley. Então se você tem que sair do estúdio ou usar coisas que foram gravadas fora do estúdio são os efeitos. Um carro você pode usar tanto um carro de banco de dados americano, de sons americanos, ou você pode ir lá gravar um carro específico pro filme, mas isso é considerado como efeito, nos dois casos.

 

Como isso se dá no seu trabalho pessoal? Sei que tem muito disso do banco de som também, né? Como isso se dá no processo de um filme? Às vezes soa como se a cada som de facada que é necessário fosse preciso gravar um som de facada em estúdio. É isso? Ou então você vai num banco de som e vê o que se assemelha mais?

Na verdade, essas coisas são meio híbridas, elas vão ser misturadas e vão soar como uma coisa só. Mesmo foley, por exemplo, a gente grava em locação, fora de estúdio, mas a lógica… Enfim, detalhes técnicos que… Às vezes prefiro a sonoridade de uma locação, por exemplo, do que dos estúdios de gravação de foley.

 

Mas durante o processo vocês estão gravando foley em estúdio, geralmente?

Depende. A gente se adapta a cada filme. Tem filme que grava em estúdio, que grava em locação, tem filme que grava coisas pra facada ou que usa só coisas que já tem de banco, às vezes já tem banco de foleys de outro filme. Tem um foley que fiz pro Corações Sujos, que tinha muita cena de espada e faca, então fizemos uma diária inteira destrinchando peixe, vegetais, vegetais congelados, quebrando peixe, vegetal, faca, sei lá o quê. Fiz essa diária de gravação pro Beto Ferraz e tenho esses sons. Posso usar isso, é um foley, mas de outro filme. Mas o legal da ideia do foley é essa tridimensionalidade da ação e dos personagens. Você tem o passo dele, tem a roupa fazendo barulho, aquela personagem vem pra frente, ganha importância, seu olhar é atraído por aquela movimentação. A linguagem é essa, e aí se você tem um foley bonito, com corpo, com personalidade… É raro a gente conseguir fazer isso, mas você fazer o farfalhar com o tipo de tecido que aquele personagem tem, não ser um farfalhar genérico do mesmo tecido o filme inteiro ou um ou dois tecidos.

O trabalho detalhista de som pode ser absurdo, nos Estados Unidos se faz com 50, 60 pessoas numa equipe. No Brasil, a gente adapta do jeito que pode e aí entende que “ah, nesse filme, essa roupa precisa, olha a importância narrativa dessa roupa que ele veste”, aí então fará um farfalhar que demonstre a importância dessa roupa pro personagem. Agora, nos filmes em geral, a gente acaba fazendo um farfalhar mais genérico, só pra fazer uma presença dentro do que o filme pede. Tem que se adaptar ao filme… Aí é a realidade brasileira de todas as áreas.

 

Mas vocês vão construindo um banco de sons próprio de vocês ao mesmo tempo, né? E aí varia muito de filme a filme o quanto vocês usam de banco e o quanto usa de foley?

Isso. Aí depende muito do orçamento do filme, se o filme tiver mais dinheiro… O (Alessandro) Laroca, que é o cara que conseguia cobrar melhor, quando ele entrou na moda, depois do Tropa de Elite principalmente, ele cobrava o dobro do que o mercado cobrava, e uma das coisas que ele se orgulhava é que ele não usava nenhum som de banco. Tudo que soava no filme, ele gravava. Isso você vê na tela, isso você ouve porque é muito forte. Isso é você entender a a intenção dramática do tiro e gravar a arma do tiro do jeito que o filme pede. O que a gente faz, a gente pega de um banco nosso ou de outros filmes, geralmente americanos, aí junta com outras coisas e trabalha ali para chegar onde queremos. Mas ter a oportunidade de escolher o microfone, a perspectiva, o reverb, a locação… É uma possibilidade que é fantástica. Então o foley passa por isso. Quando a gente consegue ter uma, duas, três diárias, ou mesmo…

Vou dar um exemplo. Fiz o filme da Gabriela Amaral Almeida, A Sombra do Pai, e tinha uma construção. O filme não tinha dinheiro nenhum, era um dinheiro ridículo, mas fiz todos os filmes dela e somos super parceiros, então “vamos lá, vamos no prejuízo mesmo e quero ter uma diária de filmagem numa construção”, porque se passava numa construção. Aí queria pegar as máquinas, o trabalho e as vozes. Então fui meio pra pegar essas coisas porque não ia conseguir achar vozes e gravar em estúdio, porque as pessoas tinham um jeito de falar específico e ia parecer falso gravar gente de classe média fazendo voz, tem um jeito de expressão. As máquinas de banco não iam chegar nem perto das máquinas enferrujadas que eles usam, do que são as máquinas num espaço real, manuseio real, aquele parafuso meio fora do lugar que vai dar uma personalidade para aquela máquina. No banco de som, eles evitam o parafuso fora de lugar. Os bancos de som sempre tem uma perspectiva de close e às vezes você quer a máquina reverberada, com reverb longo e bonito. E as marteladas… É outra coisa. Uma diária apenas eleva a qualidade de som do filme a outro patamar. Mas é isso, é um desdobramento pessoal pra fazer aquilo em que você acredita, não é ainda uma realidade de mercado e de investimento.

Os produtores ainda não entendem, nem sei se entenderão a médio prazo, que tem uma escolha se eles querem uma grua ou um foley. Às vezes, essa é a escolha, um equipamento caro na filmagem que pagaria um super foley, livraria R$ 10 mil a mais pra você investir num foley porque o foley é superimportante nesse filme. Não existe isso, o que acontece é quase sempre o contrário, “o que tinha de imprevisto sugou o dinheiro da finalização inteira”, aí chega implorando pra finalizar. Então ainda não há esse investimento no som, no foley que precisa ser bom, então tem que gastar mais. Pensando em um filme que tem um carro importante, eu tenho que gravar esse carro com uma tal peculiaridade, ou então num filme que tenha construção, eu preciso de diárias de gravação nessa construção. “Ah, faz umas coberturas na filmagem”, é o que ouvimos. É sempre um pouco uma gambiarra.

 

Com relação a essa coisa dos prêmios de “melhor som” em festivais, a gente estava entrando em meandros do som que muitas vezes não estão claros para o espectador que vê o filme em tela, mesmo para aqueles veem e estudam muito cinema, né?

Acho que o prêmio serve um pouco para dar essa visibilidade. “Ah, o Adirley ganhou o prêmio de Melhor Som em Brasília.” Aí quando o espectador for ver o filme, se ele sabe dessa informação, ele tende a prestar mais atenção, valorizar mais, enfim, dá um reconhecimento, uma visibilidade. Mesmo pros jurados isso acontece, cansei de ver festival de curta em que o prêmio era meio errado, em que davam prêmio de som pela seleção das músicas.

Ao mesmo tempo é isso, às vezes tem um trabalho de som que é do montador, sei lá, aqui no CineMúsica mesmo teve um filme do Allan Ribeiro que lembro que ganhou Melhor Som e que era um filme que nem passou por nenhum editor de som, a ideia sonora foi da direção, veio da montagem. Então é mais uma questão de visibilidade, não vai mudar seu trabalho. Pra gente não é parâmetro, nem farol, é mais pras outras pessoas verem que existe, ainda sair daquele estágio de ter que explicar e falar “olha, todos os sons a gente faz depois, o som é todo trabalhado, não é tudo captado junto na filmagem”. Ainda não saímos totalmente desse estágio nem na produção, muito menos pro espectador.

 

E a dublagem dos diálogos ainda é regra?

Cara, dublagem mudou muito. Não, dublar como dublava antigamente acho que ninguém dubla mais. Mas hoje em dia tem muita… Assim, dublagem mais técnica, geralmente, é difícil uma escolha estética pela dublagem, mas hoje em dia a gente consegue chegar em resultados muito bons de dublagem que, se quiser que pareça som direto, faz aquilo parecer som direto – é muito trabalhoso, muito difícil, mas a gente tem chegado, tem mais recursos, tem mais know how, atores estão mais acostumados também.

 

Mas muitas vezes essa necessidade é por ruído de som direto?

É, em geral, é difícil ser por escolha estética do tipo… Hoje em dia, o som direto é muito valorizado. Acho que tem que ser. Mas lembro da história do Carlos Reichenbach quando ele fez o Dois Córregos, que era o primeiro filme com som direto, ele ficou encantado, “caralho, nunca mais vou fazer um filme sem som direto”. Porque um som direto bem feito, bem captado, traz uma coisa ali da atuação, do set, do momento que faz parte, não tem… Claro, nem todo filme precisa disso, aí tem que ser uma proposta diferente da que a gente está acostumado hoje em dia. Talvez outros trabalhos sejam diferentes. “Ah, quero uma certa artificialidade”, ou então “quero falar durante a gravação porque preciso dar coordenadas específicas pros atores”, enfim, por outras questões estéticas, mas som direto é muito bonito.

 

Nos filmes que vocês fazem, existe percentualmente quanto de…

Não, geralmente a dublagem é por questões técnicas e normalmente existe até uma certa repulsa dos diretores à dublagem. Nós temos que convencer muitos diretores de que “não, dublagem não é o que você está acostumado, você quer que pareça som direto?” E tem cena que você chega a uma dublagem que é até melhor que o som direto. Se o diretor se dedicar e entender, o ator estiver disposto e você quiser imprimir alguma outra coisa na atuação, é uma possibilidade.

O filme da Gabriela (Amaral Almeida) tem uma cena com o Murilo Benício, logo no começo… Esse filme da Gabriela foi muito interessante de som, O Animal Cordial, não o A Sombra do Pai, o primeiro… Porque era uma condição muito adversa, mas a produção tinha muita consciência, então a Gabriela Cunha, que fez som direto, a produção pagou e ela colocou vidro duplo em todas as janelas, eles estavam filmando um restaurante de madrugada, num lugar deserto. Eles filmaram na Avenida Rebouças, a casa ficava de frente pra Rebouças, eles colocaram vidro duplo em todas as janelas, manta de som, fizeram tratamento acústico incrível, o som direto é ótimo, mas tem algumas partes da locação que não tinham esse tratamento. O banheiro do cenário não tinha, então a gente dublou todo o banheiro. E tem essa cena do Murilo Benício que é inteira dublada. O Murilo estava tipo “nossa, muito difícil, essa cena foi muito difícil de fazer, não vou conseguir chegar”, e a Gabriela muito paciente dirigindo ele. Quando a gente foi ver, quando montou, teve uma hora que eu falei pra Gab: “vamos ouvir como está o som direto pra ver se a gente perdeu?”. Nossa, o som direto estava…

 

Bem pior?

Não sei se pior, mas trouxe uma coisa, sabe, que a gente conseguiu num outro trabalho. Mas trabalhando para parecer som direto, era dentro dessa ideia de parecer real, de colar na imagem.

 

No estúdio de vocês que ocorre a gravação?

Agora sim. Nessa época do Murilo, a gente não tinha o aquário, isso foi há dois anos, a gente gravou no Mega. O gargalo de dublagem é microfonação, o microfone que você usa é importante, mas principalmente é difícil o ator se colocar psicoacusticamente naquele lugar. Ou seja, se ele está num lugar aberto barulhento, mas a cabeça dele sabe que ele está num estúdio ultraisolado, silencioso… Pra ele entender como projetar a voz pra que ela cole naquele espaço gigante… Acho que isso é o mais difícil. Geralmente quando você percebe que é dublado é porque a relação de timbres ali não cola, ele está falando mais baixo do que seria naquele ambiente, a ruidagem daquele ambiente não condiz com a altura que você teve que colocar a voz para ser inteligível. Porque você pode subir o volume, mas a projeção continua sendo de falar baixo, então você vai entender, estará audível, mas não cola. E a atuação é muito difícil, desgastante, mas você tem resultados muito bons (em dublagem).

 

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*O repórter viajou a convite do 10º Festival CineMúsica

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