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“A maioria dos diretores não tem nenhuma noção do poder dramatúrgico do som”

13/11/17 às 17:23 Atualizado em 10/10/19 as 00:52
“A maioria dos diretores não tem nenhuma noção do poder dramatúrgico do som”

Desde 2013, o distrito de Conservatória (RJ), localizado no município de Valença (RJ), é o local escolhido para reunir quem atua no campo do som cinematográfico. Realizado em conjunto com o 10º FestivalCineMúsica, o 5º Encontro Nacional dos Profissionais de Som do Cinema aconteceu nos dias 3 e 4 de novembro e, como de costume, premiou trabalhos de profissionais da área (Melhor Captação de Som, Melhor Edição de Som, Melhor Mixagem, etc.). A novidade deste ano foi que, em conjunto com a temática de valorização do papel feminino na cultura brasileira – que pautou o CineMúsica -, apenas mulheres foram premiadas. O troféu principal, de Personalidade Sonora, foi concedida a Maria Muricy, que na ocasião concedeu uma palestra sobre a sua carreira para as cerca de 20 pessoas presentes.

Maria Muricy é editora de som desde os anos 90, época em que ocorreu a chamada Retomada do cinema brasileiro. Da moviola ao digital, ela vivenciou transformações de diferentes tipos em nossa cinematografia, tendo trabalhado tanto em produções com pretensões de mercado (Didi Quer Ser Criança, Xuxa Abracadabra) quanto em trabalhos que buscam a via da autoralidade (Uma Longa Viagem, Adágio Sostenuto).

Nesta entrevista, concedida ao Cine Festivais logo após sua palestra no 5º Encontro Nacional dos Profissionais de Som do Cinema, Maria repassou a sua carreira e comentou as particularidades que envolvem o trabalho como editora de som.

 

Cine Festivais: Queria começar pedindo para você falar o que foi que te atraiu para o universo do som, já que a sua carreira no cinema começou como assistente de produção.

Maria Muricy: Digamos que eu caí no som meio por acaso, circunstancialmente. Mas o que me atraiu nesse trabalho – que eu faço há mais de 20 anos – é a coisa de o som ser uma coisa aural. Ele é totalmente a emoção do espectador. Você conta a história de novo quando você trabalha o som. Você conta numa camada não óbvia, não concreta. Ele trabalha sub-repticiamente, por baixo da história que você está contando. E você pode dizer com o som a mesma coisa que o filme está contando, tipo “olha só, espectador, é por aqui que você vem”, ou então dizer que tudo que você está vendo não tem nenhum sentido, que há ali algo profundamente errado e que o espectador deve olhar para o outro lado. Então o som é literalmente uma nova linguagem. É uma linguagem para contar essa história.

Eu acho que quem trabalha em cinema tem que saber que a gente não está só entregando um job, que a gente não está fazendo apenas mais um filme. Porque a gente trabalha com muita pressão. A gente trabalha com pouco dinheiro muitas vezes, com tempo exíguo, emenda um filme no outro. Eu já tive discussões em que o diretor dizia “eu quero assim, assado”, e em que eu falei: “olha só, deixa eu te explicar: você faz um filme a cada cinco anos, eu faço cinco filmes a cada ano.” Então a perspectiva da gente é diferente como profissional. É necessário parar e entender o que a gente está fazendo, e isso parte dessa primeira coisa. O que a gente está fazendo é contar história. É só isso que a gente faz. Toda essa parafernalha do cinema, a capacidade técnica, todos esses aparelhos, essas máquinas, esse dinheiro, é feito só para contar história. Se você conta uma história bem-feita, você ganha o coração do espectador que está te assistindo. É só isso. A única finalidade que a gente tem é essa. E mais nenhuma.

 

Nessa sua trajetória de mais de 20 anos na área, como foi que isso que você acabou de dizer – a especificidade dramatúrgica do som para além de um trabalho burocrático – foi se cristalizando em sua percepção pessoal com o passar do tempo?

O som é um objeto de estudo e de trabalho muito maluco. Basicamente a gente estuda muito sobre som, mas não necessariamente aprende sobre som estudando. Digamos que o estudo formal de som serve pra você aprender a técnica e serve pra você ampliar a gama de ideias. Mas cada filme, cada história que você conta, pede uma solução diferente, e você tem de ter dentro de você um depósito de soluções narrativas, de opções de ideias que possam atender àquela história específica.

Então eu acho que se aprende a fazer som, fazendo. A cada filme que você faz você testa pra ver se aquela ideia que você teve funcionou. Quando ela funciona você acrescenta algo ao seu repertório, quando ela não funciona você descobre que tem que começar a trabalhar em outra direção. Cada vez é diferente, e é por isso que é tão bom fazer cinema, porque ele não é uma profissão careta em que você está sempre lidando com a mesma realidade. Pelo contrário, ela muda o tempo todo. Então o desafio talvez seja maior nesse tipo de profissão cultural, artística.

 

Em uma entrevista que o diretor de som português Vasco Pimentel deu ao Cine Festivais ele contou sobre a relação visceral que tem com o som para além do trabalho com o cinema. Queria que você contasse como isso se dá no seu caso. Como essa relação com o som permeia o seu cotidiano?

O meu caso não é igual ao do Vasco. Eu sempre gostei muito de música, mas não foi isso que me atraiu para o som. Eu tinha mais relação com a imagem do que com o som. Só que quando comecei a trabalhar com o som eu descobri que ele me oferecia uma gama maior de opções e de trabalho artístico conceitual do que qualquer outro trabalho que eu tenha feito em cinema. Entendi que o som era realmente instigante, porque era algo que eu não podia controlar. Ele dependia de tudo. Um som pode ser qualquer coisa. Um som pode ser… esse ruído da cadeira arrastando que eu acabei de fazer pode servir para ser um porta abrindo em algum filme. Depende da imagem que está junto. Eu posso tornar esse som mais audível, menos audível. O som tem muitos significados.

O que me interessou no trabalho com som foi a enorme gama expressiva e dramática que está contida nesse instrumento – porque na verdade ele é um instrumento – e tudo que você pode fazer com ele, porque ele é mais maleável do que a imagem. Ele é mais maleável do que simplesmente capitar som com um aparelho. Eu estou trabalhando com um conceito, não estou trabalhando com a realidade concreta, e aí é isso que é instigante no som. É isso que torna o trabalho de som tão diferente de todo o resto que é feito em cinema, porque ele não é palpável de verdade. Ele é sentido por você… Eu faço de tudo para que você sinta, eu rezo para que você sinta, mas não dá pra saber como você vai reagir. O que eu posso fazer é te dar todos os elementos para te conduzir em uma determinada direção e esperar que eu tenha feito bem. Então é um desafio gigantesco e extremamente bonito. Tem um texto do Walter Murch [montador e profissional de som no cinema] em que ele diz que o som é trabalhado em camadas que se somam. Quando tem uma pessoa andando você ouve. Quando tem duas pessoas andando você continua ouvindo. De três em diante você não ouve mais três pessoas andando, você ouve um barulho, uma multidão.

O trabalho do som exige que, em vez de eu só acrescentar passos, eu acrescente camadas de significado, que soem diferentes, e que elas possam todas ser compreendidas por quem está ouvindo. É uma grande superposição de coisas diferentes que vai dar lá no final o resultado que eu quero, e esse resultado às vezes acontece quase sozinho. É uma coisa meio mágica. Uma poção mágica. Eu me sinto meio bruxa às vezes, e é isso que é legal no som. Foi por isso que eu fiquei trabalhando nisso. E por isso que eu estou há 20 anos brigando não só pela qualidade do meu trabalho, mas para que essa profissão seja respeitada, para que a gente tenha voz, para que a gente tenha visibilidade, porque esse trabalho é especialmente genial.

Tem outra coisa que é muito legal no trabalho de cinema que a gente tem de falar. É que essa é uma profissão e um trabalho específico que tem três mãos diferentes operando. Eu começo com o técnico de som direto que capta o filme no set. Esse material vem para a minha mão como editora de som, eu trabalho, acrescento coisas, limpo, dublo, e isso vai para o mixador, que vai fazer um outro produto. É a única área técnica do cinema em que o mesmo material passa por três mãos diferentes.

Então, assim, é profundamente importante que a gente discuta padrão, conceito, que a gente se conheça. Sim, eu estou envolvida numa luta política com o cinema, porque toda essa luta política induz a que o som passe a ser ouvido por quem está do lado de fora. Porque as pessoas normalmente acham que o que eles ouvem na tela é o que foi gravado no set. Mal sabem eles que normalmente 90% do que eles ouvem não foi capitado no set, foi gravado fora da imagem e foi colocado depois. E é isso que é legal. Esse é o meu desafio o tempo todo.

 

E em termos tecnológicos, o que mudou exatamente dos anos 90 para cá?

Tudo. Eu comecei a trabalhar em moviola, operei Steenbeck, ou a minha favorita que é uma moviola Intercine italiana, na qual eu trabalhei muito tempo. Eu trabalhava com filme 35 mm, transcrevia som em Magnasync, então eu sou uma analógica que virei digital. No processo de som ninguém aguentava mais carregar tanta lata – porque é muita lata para fazer som – e a gente passou a fazer isso num pendrive. Hoje em dia eu tenho entregue meu trabalho num pendrive, o que é inacreditável. Eu literalmente passei por toda essa mudança de ser analógico e ser digital, e acho que o digital é maravilhoso. Ao contrário da imagem, em que havia uma qualidade de sujeira, de grão, da película, no som o digital é fundamental. Ele permite que você trabalhe rapidamente e mantenha a sincronia de uma enormidade de sons diferentes, em pistas diferentes, mantendo a clareza do som. Então eu acho que é uma bênção que hoje a gente trabalhe em digital.

 

E com relação aos tipos de filme em que você trabalhou? Você disse há pouco, em sua palestra, que foi importante trabalhar em filmes muito voltados para o mercado, pois eles trazem uma exigência profissional mais fixa, em termos de datas, estrutura de trabalho, etc. Você também trabalhou em filmes com pretensões mais autorais, como Uma Longa Viagem, de Lúcia Murat, A Máquina, de João Falcão, e Adágio Sostenuto, de Pompeu Aguiar. Como você pontua as diferenças no seu trabalho considerando os estilos de cada filme?

Eu vejo um grande preconceito com o fato de trabalhar em filmes de mercado, como filmes da Xuxa, como filmes do Renato Aragão. Eu vivi isso, encontrei pessoas que diziam: “mas você está trabalhando para o Renato Aragão?” Eu tenho o maior orgulho de trabalhar com o Renato Aragão. Eu acho ele um dos grandes. Fiz muito filme com a Xuxa. Eu acho que nós somos operários de cinema, temos que estar preparados para todo tipo de filme. Cada filme é um filme, a proposta é diferente.

Eu acho que eu trabalhei igualmente tanto com filmes de mercado, quanto com filmes de autor na minha carreira. Teve uma fase em que eu trabalhei pesadamente em filmes de mercado, e eu acho que é necessário você estar preparado para a indústria. É algo incipiente? É. Ela tem dificuldade? Tem. Mas é uma indústria: a Indústria Cinematográfica Brasileira. E essa indústria implica que existam filmes de mercado dentro dela, e você tem de estar preparado, como técnico, para dar conta dessa estrutura, cumprir esses prazos com rapidez, com eficiência e com clareza. Eu tenho muito honra por ter feito isso. Eu acho que me acrescentou, me enriqueceu, sem dúvida alguma. Foi um grande aprendizado.

 

Em uma entrevista recente o Selton Mello disse que, entre todos os diretores com quem já trabalhou, ele só se sentiu dirigido por no máximo cinco deles ao longo da carreira. Acho que no caso do som isso talvez tenha alguma relação, no sentido da quantidade de diretores e diretoras que pensam o som como algo realmente importante para a narrativa, para o conceito do filme. Como você sente isso no seu trabalho?

Eu acho que a maioria dos diretores não tem nenhuma noção do poder dramatúrgico do som, não tem nenhuma proposta para o som do filme deles, a não ser as óbvias, do tipo “tem uma igreja, põe um sino”. Eles não veem o som como uma linguagem, ou melhor, não é que não vejam, é por falta de conhecimento específico da área que eles não percebem a gama de soluções dramáticas que está disponível [no som]. E como eles querem controlar todo o processo fílmico, muitas vezes não deixam e não permitem que a parte sonora vá em frente e empurre o som. Nesse sentido, é que eu falei na palestra: a gente precisa dizer o que quer [para os diretores], porque nós temos um conhecimento muito específico. E esse conhecimento é adquirido em anos e anos de trabalho concreto de lidar com cada dificuldade de cada filme. A gente tem de trazer ao diretor as soluções possíveis para o filme dele. A gente tem de dizer a ele que existem soluções que ele não pensou. Ele pode até não aceitar, mas é nossa obrigação tentar propor a maior gama possível de material sonoro, de opções dramatúrgicas para cada história que é contada, porque a maioria dos diretores não tem essa noção. Não tem mesmo.

 

Você tem um exemplo que seria uma exceção na sua trajetória?

João Falcão, em A Máquina, e Pompeu Aguiar, em Adágio Sostenuto. São dois exemplos óbvios que me vêm rápido à cabeça, porque acabei de citá-los. Claro que existem outros, mas esses são diretores com muita clareza do que querem com o som. O João Falcão me pediu um choro de bebê que se repetia em loop. Ele fazia uma música com o choro do bebê … porque cada som na verdade é uma música. A fala humana é uma música, e a gente só pode trabalhar som quando a gente começa a entender que cada um dos elementos sonoros de um filme faz parte de uma música, de uma canção que você está compondo, e que essa canção faz a linha geral de um filme.

Assim, é muito difícil não só com os diretores… É muito difícil conseguir que o músico converse com você antes de fazer a música dele, porque às vezes você faz um bando de ruídos muito graves para um determinado ponto e o músico faz uma música também extremamente grave para a mesma parte, e aí você não pode usar os seus efeitos porque eles não somam bem. Som é uma coisa que é sempre somada à outra. O som não é por si só. Então às vezes você tem que reeditar o som porque o músico te manda um material que não é coerente com o que você fez, e você tem de fazer algo que se destaque dentro do que ele te apresenta.

Acho que a gente precisa conversar entre nós como profissionais, nos conhecermos mais, para formar uma classe unida, coesa e coerente no que se está propondo. E que a gente precisa conhecer mais os outros técnicos das outras áreas criativas de cinema para que essa área de som tenha mais peso. Tenha realmente mais voz.

 

Com alguns personagens de som com quem eu já conversei sempre há essa ideia de que o ideal seria que um profissional de som acompanhasse todo o processo do filme, desde a pré- produção até a última mixagem. Isso já aconteceu com você?

Já aconteceu comigo, mas normalmente nunca acontece. No primeiro Encontro Nacional de Profissionais de Som do Cinema eu vim para a mesa discutir a figura do Sound Designer, e e vim para dizer que pensar que se faz Sound Designing no Brasil é uma falácia, porque pouquíssimas pessoas têm a chance de estar no filme desde o início. Basicamente isso não acontece. E acontece cada vez menos. No entanto, é fundamental que alguém tente amarrar essas pontas. Até porque, como é uma longa cadeia do som, quanto mais uma pessoa puder acompanhar todos esses processos, melhor é. E principalmente fazer com que o diretor entenda que é necessário não só pensar o filme para o som no roteiro, como é necessário filmar para o som e montar para o som.

Têm coisas físicas que não são muito claras de entender e é necessário repetir, repetir. O som é uma coisa física. Ele tem um ataque, ele tem um platô onde ele fica um tempo e ele começa cair lentamente até se extinguir. Eu não posso fazer uma explosão e cortar para diálogo, porque é óbvio que eu tenho que escutar o que está sendo dito. Se eu tenho um ruído forte e não dou o tempo desse ruído cair até acabar, estou desrespeitando a própria questão física do som. E estou desconsiderando que esse som tem um papel a cumprir e que ele não está cumprindo porque eu, diretor, não estou deixando, ou porque eu, montador, estou ignorando esse papel.

Então a única pessoa que é capaz de dizer isso somos nós. Nós do som temos obrigação de mostrar isso, de ensinar como isso é feito e abrir essa chance. Essa porta não vai se abrir para nós, menos ainda agora, porque os filmes estão sendo feitos com menos dinheiro, com menos tempo e menos cuidado. Então cabe a nós brigar muito para que essa porta se abra. Para que isso aconteça. O que você está falando é o melhor dos mundos, mas a realidade do dia a dia não é essa. Eu adoraria, mas não é o que eu vejo no meu dia a dia, nem no dia a dia de quem eu conheço.

 

A Joice (Scavone) pontuou na fala dela que os estudos acadêmicos sobre o som e sobre o papel narrativo dele vêm se acentuando desde 2009. Você sente que esse esforço acadêmico, ou mesmo esse esforço protagonizado pelo Encontro Nacional de Profissionais de Som do Cinema, já tem algum tipo de reverberação, seja no cinema independente, seja no cinema de mercado?

Reverbera o tempo todo. Acho que nunca vai parar de ser necessário falar disso. Quando se escreve sobre som você dá embasamento teórico para as discussões na prática. Você cria as possibilidades teóricas, o porquê de se tentar fazer essa ou aquela solução para esse filme. E essa é uma maneira de juntar experiências, porque eu não quero trabalhar só com o meu vocabulário, só com o meu léxico. Eu quero juntar aquilo que eu estudei, que eu vivi na prática, com a experiência da Miriam (Biderman), com a experiência do (Alessandro) Laroca, com a experiência de outros editores que têm algo a dizer do que eles viveram.

Nós somos os filmes que a gente fez. Profissionalmente, eu sou como editora aquilo que eu editei. Então, trocar essa experiência é fundamental neste instante, seja a nível de tese, seja fazendo um encontro como esse, que é fundamental. Acho que nada é tão importante nesse momento quanto a gente se conhecer e se falar pessoalmente, cara a cara, pois isso está fazendo uma enorme falta.

 

Eu conheci alguns profissionais de som que não gostam desse enquadramento fechado da função apenas como técnica. O público médio que acompanha o Oscar, por exemplo, está acostumado a ouvir os apresentadores falando dos “prêmios técnicos”. Claro que há o trato com a técnica no trabalho de vocês, mas a repetição desse discurso não acaba servindo para apartar vocês do lugar da criatividade?

Se eu falar de mim vou lhe dizer que eu briguei muito pela técnica, por padrão. Já cheguei a me juntar com outros editores para formalizar um padrão técnico para ser cumprido… Eu brigo por padrão até hoje, brigo pela qualidade técnica profundamente, mas não acho que a técnica me atenda. Ou seja, eu acho que eu não sou uma pessoa especialmente técnica; sou muito mais uma pessoa dramatúrgica. Eu vejo significados no som que eu faço. Eu leio meu trabalho através de significados, de léxico. Eu acho que a gente tem que brigar pela técnica totalmente, como classe… Mas a gente deve ficar só na questão técnica? De modo algum.

Acho que as mulheres especialmente – e estamos em um festival que está falando de mulheres – têm algo a acrescentar dramaturgicamente à leitura e à feitura do som no cinema. Existe uma maneira feminina de ver o mundo que pode ser transformada em trabalho. Eu acho que a gente tem algo a dizer como profissionais, a acrescentar criativamente. E que a gente deve arriscar, que a gente deve tomar o protagonismo, tomar a frente e dizer ao diretor com todas as letras: “eu acho isso e isso, eu quero fazer isso.” Eu acho que esse lugar tem de ser ganho. Ele não vai cair no nosso colo. O papel da mulher hoje em dia é predominantemente um papel auxiliar, a gente tem um papel que é subordinado e que é reduzido de importância. A gente está vendo acontecer muito visivelmente neste ano as mulheres tomando a frente direto, levantando questões seriíssimas, inclusive a nível de agressão, de assédio, que também acontece no Brasil. Isso acontece desde o nível de que não te dão a palavra e você não se dá à palavra. Então, acho que é uma luta séria. Na verdade, é uma luta para ser vivida com prazer.

E tem uma última questão. Acho que cinema é uma organização social profundamente hierárquica. É um pouco como o exército. E isso é uma organização masculina. Os homens se organizam hierarquicamente, ou seja, na vertical, e as mulheres não são assim. As mulheres se organizam na horizontal. As mulheres se relacionam por associações, por coisas feitas junto. E o que eu acho que a gente tem de começar a fazer é exercer uma nova maneira, que talvez implique até numa nova maneira de trabalhar cinema, de como essa organização se dá. Como isso vai ser, não sei ainda, mas eu acho que pode ser bem interessante a gente arriscar um pouco mais e abrir esse espaço, porque ele vai acontecer. Eu acho que ele é inevitável. Ele está acontecendo no mundo inteiro e em todas as áreas, ele vai vir para o cinema também.

 

Dentro da cadeia sonora no cinema, o mixador costuma ser mais valorizado (artística e financeiramente) que o editor de som?

A mixagem é muito valorizada. Só que a minha sensação é de que o mixador não trabalha com nada que não tenha sido dado para ele pra trabalhar. Ele pode ser um excelente mixador, mas se não tiver elementos para criar tudo aquilo, não vai dar para criar um puta filme. Ele vai criar um filme mediano. Quem dá o elemento para ele trabalhar é o editor de som. O editor de som também é capaz de valorizar tudo que tem de bom que veio da captação de som direto no set, que é o esqueleto do filme.

Então, pelo que me consta, apesar de não ser tão visível, o trabalho da edição de som é absolutamente fundamental, e se tem um pivô que pode ser essa ponta a ligar os lados da cadeia de som, essa pessoa é o editor de som. Com certeza. Até porque a gente tem muito mais experiência de mixagem, de ir pro estúdio e de ver acontecer. E eu, por acaso, sou gêmea de um técnico de som direto e sou casada com um técnico de som direto, então eu vou para sets. Quando eu recebo o som pra trabalhar eu lido com problemas e escolhas artísticas, escolhas técnicas que foram feitas na captação de som que eu não consigo entender porque foram feitas. Eu comecei a ir pro set porque eu tinha o marido lá, porque eu tinha um irmão lá, e isso me permitia saber como era o som daquele microfone, porque eu sento do lado e ouço, eu vejo acontecer.

Então, eu começo a entender como se dá a dinâmica do técnico de som captando som no set. O diretor permite que ele trabalhe? Não permite. Ele conseguiu fazer sons separados? Não conseguiu. Ele consegue captar som ambiente daquela locação? Não consegue. Com que microfone esse diretor deixa ele trabalhar? Quantas câmeras estão em jogo? O diretor abriu cinco câmeras ao mesmo tempo? Três? Então eu não tenho como pôr o boom, nem em cima nem embaixo. Ele está trabalhando com o close, ao mesmo tempo que ele está trabalhando com o quadro aberto. Então não tem como o técnico de som resolver. A única solução pra mim vai ser usar o sem fio, que tem um som de lata. E não é o que eu prefiro. Mas às vezes não tem escolha e eu tenho de saber por quê. Eu só sei isso se eu vou para o set.

Eu acho que antes de tudo a gente tem de conhecer as pontas criativas desse caminho de som. Eu tenho que ir acompanhar o mixador. O mixador tem de saber por que eu escolhi este som e não aquele. Eu já tive filme em que o produtor chegou na mixagem e disse “eu quero o som lá em cima. Eu não deixo. “Mas eu quero alto.” Mas não vai. “Por quê?” Porque você vai estragar o meu filme. Porque você não vai ter escada pro som, e o que vai acontecer é que você vai ter um som todo alto. Quando chegar no cinema o projecionista vai dizer “ai, que som alto” e vai abaixar pro nível que ele considera razoável, e vai ficar mediano. Por isso eu vou pro cinema conversar com o projecionista, porque aí eu tenho certeza que pelo menos a minha pré-estreia vai estar com o som controlado.

 

Eu queria que você falasse também da questão de gênero, de como foi sua experiência como mulher nessa área e como a sua percepção foi se transformando pelas demandas do mundo de hoje. Fazendo uma reportagem sobre mulheres diretoras de fotografia, eu ouvi muitas profissionais que disseram, por exemplo, que estão se atentando só agora para muitas dessas questões, como o número mulheres que estão trabalhando em um filme.

[Isso acontece] Porque você sobrevive. Você está num meio extremamente masculino e você está brigando para ser profissional, para ser respeitada, para ter um lugar ao sol. Você passa anos nesse processo, tentando ganhar o suficiente para pagar suas contas no final do mês. Tentando pegar o próximo filme. O que a gente vive é isso: cadê o próximo filme? Porque eu estou sempre desempregada.

Você entende depois de um tempo, e isso precisa de tempo para cair a ficha, que existe uma discussão política inerente à profissão que você faz. Tem vários níveis: eu tenho a discussão artística, eu tenho a discussão técnica e existe uma parte dela que trata de política. De lugar no mundo, do valor que eu tenho, de como eu tenho coragem de pedir o meu salário e de exigir que eu receba decentemente, tanto quanto o homem recebe; que eu tenha voz com o tal diretor, que eu diga a ele: “isso é uma solução, nós vamos fazer assim. Eu quero uma reunião com o músico, eu quero… que eu quero…” Entendeu?

Então fica muito difícil você dizer “meu Deus, tem tantas mulheres trabalhando.” Você está tão ensandecido tentando fazer um caminho que chegue em algum lugar e que continue andando pra frente …

Na verdade eu cheguei à conclusão de que depois de uma certa idade você sempre vai se dar muito bem se ficar tempo suficiente fazendo a mesma coisa. O problema é que a gente desiste porque é difícil, muda e aí tem de começar do zero. Mas se você ficar muito tempo ralando, vai chegar uma hora que você vai ser o top de linha. É inevitável. Então, por favor, continuem tentando, continuem insistindo, continuem no cinema. Essa não é uma profissão fácil, nunca foi. É uma profissão extremamente desafiadora. E fiquem até o final. Ela não vai ser fácil, nem um pouco. Não é um caminho fácil em lugar nenhum. Mas vamos juntos. A gente tenta se dar a mão e ir o máximo que pode e manter essa bola no ar o máximo que a gente conseguir. É pra isso que a gente está aqui, e reza para que todo mundo venha junto. Mas ainda depende de cada um, de quem aguenta ficar até o final.

 

E essa estrada é maior para as mulheres do que para os homens…

Não sei… Acho que para os homens é mais fácil. É uma estrada mais óbvia para os homens. Os homens põem os seus filmes em festivais, os homens dão entrevistas mais facilmente, os homens escrevem teses mais facilmente sobre cinema, se julgam imbuídos de falar de cinema como algo que lhe pertence, enquanto a mulher precisa entender que cinema lhe pertence …

Eu não acho que eu possa falar tão em geral, mas eu diria que é preciso tomar posse do que se faz, é preciso ter voz, e eu sei que essa voz ainda não acontece como deveria, nem politicamente, nem organizacionalmente, nem em dramaturgia. Então o momento está aqui, estamos vendo isso acontecer, e meu papel neste momento é provocar as mulheres, como eu estou provocando a mim mesma. Assim, o que você tem a dizer? Quais são as coisas que você tem a oferecer? Eu estou jogando essa bola pra frente e deixando ver onde ela rebate. É por aí que eu vou hoje.

 

*O repórter viajou a convite do 10º Festival CineMúsica

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