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Do favela movie ao “filme de favela”: diretor premiado fala sobre Chico

29/11/17 às 17:23 Atualizado em 10/10/19 as 00:50
Do favela movie ao “filme de favela”: diretor premiado fala sobre Chico

Seja em debates ou em apresentações anteriores às exibições de seus filmes, os irmãos gêmeos Eduardo e Marcos Carvalho costumam enfatizar o fato de realizarem aquilo que definem como “filmes de favela”. Moradores do Morro do Salgueiro, eles cursaram Cinema na PUC-Rio e desde então desenvolveram uma parceria na direção de curtas-metragens como Boa Noite, Charles, Alegoria da Terra e Chico. Este último ganhou o principal reconhecimento no 50º Festival de Brasília, de onde saiu com os troféus de Melhor Direção e Melhor Som, além do Prêmio Canal Brasil.

Ambientado em 2029, 13 anos após um golpe de estado no Brasil, Chico bebe na fonte da ficção científica para tratar sobre um tema absolutamente atual: a criminalização da juventude negra e periférica. Na trama, o personagem-título é uma criança que carrega uma tornozeleira e é rastreada por pressupor-se que, cedo ou tarde, irá entrar para o crime. Após a aprovação de uma lei que autoriza a prisão preventiva de menores como ele, sua mãe Nazaré decide ressignificar a separação iminente.

A vontade da dupla de diretores de realizar novos tipos de narrativa a respeito da população que mora em favelas se cristalizou mais fortemente a partir de 2013, quando eles começaram a participar e a filmar uma série de manifestações de rua. Até então, os irmãos Carvalho viam com olhar positivo obras como Cidade de Deus ou Tropa de Elite, expoentes dos chamados favela movies – trabalhos muito associados à produção brasileira da primeira década dos anos 2000.

Na entrevista a seguir, concedida ao Cine Festivais durante a 4ª Mostra de Cinema de Gostoso, o diretor Marcos Carvalho falou sobre a sua trajetória e a respeito da concepção de vida e cinema que veio a desembocar na realização de Chico.

 

Cine Festivais: No último Festival de Brasília fiz uma entrevista com o Gabriel Martins e a Jéssica Queiroz, e uma das minhas questões era sobre o momento em que essa possibilidade de ser cineasta entrou na vida deles. No debate aqui em Gostoso você falou que com oito, nove anos de idade, já tinha essa ideia fixa, junto com seu irmão [Eduardo Carvalho]. Queria que você comentasse esse tema: por que acha que essa vontade já estava clara durante a infância de vocês?

Marcos Carvalho: Pois é, já tentei refletir sobre isso. Uma possibilidade que pensei é que, por sermos gêmeos, sempre brincamos das mesmas coisas, o que talvez não acontecesse se tivéssemos uma diferença de idade de quatro anos, por exemplo. Acho que uma coisa normal que a criança faz quando brinca é construir narrativas, inventar histórias, e no nosso caso a gente costumava ir um pouquinho além.

Por exemplo, quando brincávamos de boneco, nossa brincadeira era uma série, então ela acabava e no dia seguinte voltava. Quando tínhamos sete anos a gente fazia uma série de dinossauros no sofá da sala. Tinha outra série com bonequinhos do McDonald’s que vinham no McLanche Feliz, que acontecia debaixo da escrivaninha do meu irmão mais velho. Tinha uma coisa de cenário um pouquinho mais elaborado, e pelo fato de termos a mesma idade, sempre fomos avançando nisso.

Até quando a gente jogava videogames inventávamos histórias por trás do videogame. Jogávamos vários diferentes, de futebol, de corrida, de The Sims, e tentávamos criar um universo maior. Essas brincadeiras de crianças pra gente sempre foram maiores. Acho que essa expansão das possibilidades narrativas dentro das brincadeiras fez com que a gente gostasse da coisa. Então o que começamos fazendo foi brincar de fazer histórias, de fazer roteiro. Brincar de fazer cinema.

Em determinado momento, bem mais tarde, no ensino médio, quando começamos a nos deparar com aquela pergunta fundamental que está no filme do Gabito [Nada, curta-metragem de Gabriel Martins] – que é “o que você irá fazer da vida” -, veio naturalmente uma percepção de que aquilo era o que a gente mais gostava de fazer e que era algo em que nós já mostrávamos algumas habilidades.

 

Então era uma coisa da narrativa não necessariamente colada a uma ideia de cinema.

Exatamente. Narrativa em geral. Por exemplo, com oito anos a gente criou uma bandinha onde a gente cantava. Na terceira série teve uma vez que a gente interrompeu a aula pra fazer a apresentação de um jornal. A gente começou a dar notícia inventada, inventava na hora. Aí tinha um jornal impresso que entregávamos e era da banda. Então tudo de história e narrativa, de forma mais ampla, a gente sempre gostou muito de fazer e de brincar com isso.

 

O diretor Marcos Carvalho

 

Queria recordar esse momento em que vocês entram para a universidade (PUC-Rio), vindos da favela (Morro do Salgueiro) – como você gosta de enfatizar – e chegando a um ambiente de classe média, predominantemente branco. Nesse contexto, querer tratar ou ter consciência de estar tratando da questão racial através do cinema era uma coisa que estava presente desde o momento em que vocês entraram na faculdade, ou foi um processo?

Foi um processo. Quando chegamos à faculdade a gente se defrontou com outra realidade, e isso além do lado social. Todo mundo de lá tinha muita referência cinematográfica, uma bagagem muito pesada. E às vezes até algumas referências que no meio crítico mais profundo já estão um pouquinho mais defasadas. Então o pessoal falava muito de Woody Allen, “pô, como você não viu Woody Allen?”, ou então Scorsese, esses nomes assim… Hitchcock. E aí a gente não tinha visto nada disso.

Nesse primeiro momento, pensamos que eles estavam muito à frente da gente, estávamos muito atrasados – como se existisse certo ou errado. O que a gente fez foi consultar na internet, pesquisar esses diretores que as pessoas falavam, e fizemos uma lista com mais de cem filmes e começamos a alugar constantemente, numa locadora perto de casa, todos esses filmes. A gente gastava um dinheiro com isso. Toda sexta-feira, era religioso, víamos dois filmes de noite. No domingo de manhã, com nossa vó, víamos mais dois, e então voltávamos pra casa e víamos mais dois de noite. Eram seis filmes por final de semana, pra tentar se atualizar. Enfim, a gente foi fazendo isso, mas no final desse processo, com um ano e meio, dois anos, num ritmo muito frenético de atualização cinematográfica, a gente percebeu que muita coisa a gente não gostava e sentia obrigação de gostar, essa coisa que rola às vezes no cinema, e fomos sentindo um vazio de referência, como se fôssemos obrigados a gostar daquilo ou então não gostaríamos de muita coisa. Não que os filmes não fossem bons, mas não abraçávamos eles e nem pensávamos naquilo como nosso cinema – e não sabíamos a razão disso.

Aí veio junho de 2013, que foi pra nossa juventude um boom de identidade política, e começamos a nos entender politicamente tanto em questão de raça quanto de lugar social com mais profundidade. Aí nós entendemos o nosso sentimento de vazio, de falta de referência: a gente queria fazer um cinema periférico, que fosse de periferia e falasse dessas questões. A gente vai olhar pro cinema, por exemplo… Até então eu gostava de Tropa de Elite e de Cidade de Deus, aí passei a olhar para aquilo e falar: “cara, isso tá profundamente errado, não é esse tipo de narrativa que a gente quer construir e nem esse tipo de estética em cima dessa realidade.” Foi nesse momento pós-2013 que a gente começou a ter isso mais dentro da gente e a fazer um cinema que já colocaríamos como cinema favelado.

 

Você falou do Tropa de Elite e do Cidade de Deus. Acho curioso que no meio crítico foi cunhado um termo em inglês para esse tipo de filme, que é o favela movie, e o que você diz que faz com seu irmão (e enfatiza que faz) é exatamente o mesmo termo, mas em português (“filme de favela”). Você cresceu vendo esse tipo de representação da favela no audiovisual, que é algo inerente a todo esse arsenal cinematográfico que a TV está mostrando pra gente… Então queria saber como você pensa o seu cinema como contraponto a esse favela movie. Que diferenças efetivas você deseja que seu cinema tenha em relação a esses outros tipos de representação?

Pra raciocinar melhor, costumo dividir entre a estética e a narrativa em geral. Tenho uma resposta bem clara quanto à narrativa, quanto à estética nem tanto. Quanto à narrativa, acho que há uma palavra-chave pra mim ao falar de cinema que é responsabilidade, que às vezes fica muito uma questão do que pode ou não fazer. Acho que pode fazer tudo, mas convém muito que você seja responsável no que faz. O que eu e meu irmão tentamos trazer pro cinema favelado, e que a gente não enxerga tanto, por mais que tenha sido o intuito, no Tropa e no Cidade de Deus, é: que benefício aquilo vai trazer quando for visto pelas pessoas? Muitas histórias merecem ser contadas, mas algumas histórias fazem com que o favelado pareça alguém geneticamente mau, como o Cidade de Deus, onde ele acaba sugerindo isso. Aí depois você pega um outro filme, por exemplo, que vai lá e diz que a forma como se acaba com o mal não é pela raiz, que é o Tropa. É como se um filme segurasse e o outro batesse. E pô, dois filmes importantíssimos. Então, assim: qual é a responsabilidade que se tem quando se traz um tema desse? O que a gente precisa hoje, por exemplo, é mostrar justamente o contrário, que não existe esse ciclo de marginalização tão profundo quanto se pensa. Então a gente tenta trazer isso pro nosso olhar, pras nossas narrativas.

Por exemplo, no Chico tem essa dúvida se o menino roubou ou não. Era algo que queríamos trabalhar, o potencial marginal das pessoas, mas a gente não dá essa resposta porque no nosso entendimento não interessa se ele roubou ou se foi o tio que deu; ele não merece ser preso. Eventualmente, talvez alguém pudesse arranjar uma saída de dizer “ah, ele cometeu um crime, e por isso merece tal coisa”, mas o que interessa é que isso não seja o delimitante do caminho do bem ou do caminho do mal- que é como acaba o Cidade de Deus. Não é sobre isso. É um caminho, são pessoas. Enfim, esse tipo de contribuição que tentamos passar dentro das narrativas, às vezes no subtexto, porque é aí que bate mais forte nas pessoas.

 

O diretor Ary Rosa, no debate sobre Café om Canela, disse que fez exibições do filme em Cachoeira e falou que achava que se aquele filme não funcionasse com aquele público, não funcionaria em lugar nenhum. Como você encara esse tipo de questão, no sentido de não necessariamente querer simplesmente agradar o público da favela onde vocês moram, por exemplo, mas de ter uma preocupação com isso.

Ótima pergunta. Na hora que o Ary falou isso, eu fiquei assim: “Não sei se concordo totalmente”… Acho que as pessoas poderiam ter odiado o Chico lá [no Morro do Salgueiro] e que ele poderia fazer muito sentido em outros lugares, não acho que esse será o delimitante final. Acho que o definidor final do filme, do quanto ele funciona ou não, não tem a ver com ele ser exibido onde foi filmado. Acho que essa ideia não vai valer nem se o trabalho for filmado na praia de Copacabana, não é isso que vai dizer. Agora, sem dúvidas acho que é importante que o filme volte pra onde ele foi feito e que as pessoas vejam, se vejam lá e possam dizer se as relações apresentadas estão bem ou mal trabalhadas. Que possam falar inclusive: “Esses não somos nós, essa não é nossa cidade, essa não é nossa favela.”

Quando passa na TV, a gente vê que não é a nossa favela, isso é uma confabulação. Que nem a novela das oito (A Força do Querer) que teve muitos elogios sobre a construção dentro da favela, mas que mostrava operação da polícia com cães. Não existe operação com cão na favela. Quem vê isso na favela, ri. Pode até ter audiência por causa de outros núcleos, mas esse tipo de coisa não ganha o público. Acho que o importante de você mostrar o filme no seu local é conseguir as seguintes respostas das pessoas: foi crível (se é que queria que fosse crível)? Foi verossímil (se é que queria que fosse verossímil)? Acho que é sobre isso, mas não necessariamente falar se funciona ou não. O filme pode ter ritmos diferentes que possam agradar pessoas que têm um tipo de bagagem cinematográfica ou não, enfim. Acho que é mais complexo.

 

Vi recentemente um filme chamado Operações de Garantia da Lei e da Ordem, que trata das manifestações de 2013 e 2014 utilizando materiais de arquivo, seja da Globo, de outras TVs ou de qualquer pessoa ou coletivo que tenha postado. Havia ali um símbolo do Coletivo Tatu. Ele foi criado por vocês?

É nosso. A gente chama de Coletivo Tatu, mas é um grande coletivo de… eu e o Eduardo. (risos) Foram mais de cem protestos que nós filmamos, e só em três ou quatro precisamos de mais alguém.

 

O Chico traz em algumas cenas a personagem da mãe ouvindo tanto notícias da mídia corporativa quanto da mídia alternativa. Queria saber como a experiência de atuar em manifestações influenciou a visão que vocês têm sobre cinema.

Pô, de forma absolutamente radical. Por exemplo, começamos a segurar câmera de forma mais complexa dentro das manifestações. Pra onde a gente aponta? O que a gente quer recortar? Essa coisa do plano longo, né, como vamos querer explorar isso? Quando a gente começou a fazer o Coletivo Tatu, uma marca nossa é que seria uma abordagem cinematográfica. Então a gente ia tentar pegar o protesto e transformar num curta. O segundo filme que nós fizemos foi muito visto porque fizemos justamente uma história que era “O Robocop Descontrolado Ataca”, que foi no dia em que a polícia estreou aquela roupa de Robocop. Aí a gente conseguiu flagrar, por sorte, um policial que estava chutando as pessoas, tentando provocar, gerar raiva para gerar confronto e dispersar a manifestação. Conseguimos flagrar isso e colocar em forma de cinema. Então nosso primeiro olhar sobre a manifestação já era cinematográfico.

Então acho que a gente traz isso pros nossos filmes. Por exemplo, um nervosismo na câmera que tem no Chico. Sobre essa coisa de não cortar a imagem e mostrar ela em tempo real, a gente sempre pensou nisso, do ponto de vista da forma, como um recurso que era para tentar flagrar um pouco mais a realidade, deixar os personagens reféns no momento em que eles estão mais para baixo – a câmera não vai cortar pra ninguém, ele vai estar o tempo todo aparecendo ali, porque tá todo mundo vulnerável. E no protesto funciona da mesma forma: a gente aprende a não cortar porque, se você cortar, aquela imagem não vai servir na polícia, por exemplo. Então acho que dialoga profundamente. Inclusive a gente pensou em usar no Chico um som de um protesto que a gente cobriu, mas depois resolvemos criar aquele som do zero.

 

Acho que essas filmagens de protesto têm muito esse fator de urgência, um objetivo imediato, que é, por exemplo, mostrar que a polícia foi abusiva, que uma pessoa que foi presa não cometeu determinado crime. Pensado nessa ideia de “para quem estou produzindo essa imagem”, como você pensa a diferença entre a filmagem de manifestação e os filmes?

A da manifestação é uma urgência pontual, uma urgência pro dia seguinte. A gente fazia esse trabalho e não podia dormir, tinha que ir pra casa, editar de madrugada e lançar o material.  No filme a gente fala de questões tão urgentes quanto as outras, mas são questões postas no Brasil por muito tempo, décadas, séculos. Continua sendo urgente, mas é uma urgência que não é sobre a prisão de alguém; é sobre protagonismo negro no audiovisual, sobre entendimento de outras relações dentro da periferia, sobre humanização das pessoas, sobre identificar o potencial humano delas para que as pessoas possam ver aquilo, compreender aquilo e serem pessoas diferentes. Isso fica muito na nossa cabeça, essa ideia de que a representação que existe de algo na sociedade alimenta aquelas pessoas que são representadas, e assim progressivamente.

 

Este ano o Cachoeira Doc fez uma mostra especial com filmes militantes e engajados, discutindo justamente sobre como, historicamente, muitas vezes alguns termos (“militante”, “panfletário”) são usados para desqualificar obras e questionar o valor delas. Lá em Brasília você falou sobre uma preocupação de valorizar a construção técnica, já que costuma ser por aí que costumam aparecer críticas situando alguns trabalhos em um terreno não-cinematográfico. Queria que você falasse um pouco sobre isso. 

Isso é bem interessante porque lembro que quando a gente fez essa história (do Chico) e apresentou pela primeira vez, um professor falou que era “panfletário”. A gente nem tinha realizado o filme ainda, e isso ficou na nossa cabeça: por que era panfletário? Por que fazer uma história em que a gente só quer negros é panfletário, mas ligar a TV e ver uma novela que se passa no Egito num tempo onde só existiam negros, mas na qual todos são brancos ,não é panfletário? É o tipo de coisa com a qual você tem que conviver quando está do lado mais fraco da corda.

Mas existe uma coisa por trás disso que é verdade. Às vezes existe uma preocupação muito latente no realizador de trazer algum debate e ele acaba se esquecendo de construir os dramas daqueles personagens que estão ali. Quando você parte de uma ideia, acho que é mais perigoso ainda você tornar rasa e superficial a relação dos personagens. “Ah, eu quero discutir a redução da maioridade penal”, que nem a gente. A gente teve que esquecer isso por um momento pra pensar qual é o drama, qual é a história dessa mãe, como vamos filmar, qual é o olhar dela, qual é o subtexto, quem é esse menino, o que eles gostam, o que não gostam? Por exemplo, no início, escrevemos o personagem da vó. Ela funcionava dramaticamente igual à mãe e pensamos que isso não podia acontecer, tinha que ter contraponto, são gerações e olhares diferentes. Então a vó tem uma forma mais complacente, mais amorosa de cuidar, de assumir o lugar da vó historicamente. Enfim, esse debate é que tem que se pensar para não ficar só na parte política inicial. E às vezes acontece, claro, filmes com grandes questões que se perdem, esquece o drama. Mas não é porque um drama muito bem feito, muito bem discutido, tem uma política por trás, que você tem que desqualificar, né?

Ontem o Eugênio Puppo (diretor da Mostra de Cinema de Gostoso) me falou que um rapaz saiu da sessão reclamando do tema do filme Chico, dizendo que era absurdo passar uma coisa dessas. A opinião da pessoa que fez isso tem que ser desconsiderada, porque o Chico não é o caso de um filme que se preocupa tanto com o lado político que acaba deixando de lado a parte dramática, o potencial artístico da coisa. Não acontece isso, mas sempre vai ter alguém pra usar esse termo, que é militante ou panfletário, pra diminuir algo que tem interesse legítimo e que faz construção dramática e artística muito bem feita.

 

Ao mesmo tempo em que há um desejo e uma tentativa de se distanciar de filmes como Cidade de Deus, alguns procedimentos podem soar parecidos, como a câmera trepidante. É claro que tudo depende do contexto em que cada recurso está inserido, então queria saber como vocês pensaram a mise-en-scène do filme?

É o mesmo artifício, mas com produtos diferentes. A gente tem que fazer um exercício constante de descolonizar nossa forma de pensar. A primeira forma que a gente enxergou o Chico era com uma câmera num steadycam, surfando, tal qual uma câmera do Cidade de Deus. Pensamos muito sobre aquilo, percebemos que era algo meio enraizado na gente, mas por quê? Enfim, começamos a pensar, discutir isso, fomos ler aquele texto, que nunca tínhamos lido, da Cosmética da Fome (de Ivana Bentes), sobre o Cidade de Deus, e lendo aquilo ali notamos que não tínhamos que pensar só o sentido político quando a gente olha pra nossa narrativa.

E como funcionaria a estética? Será possível nosso cinema ser político sem rompimento estético? Será possível fazer cinema radicalmente político com estética de novela? Não sei, é uma pena que não tenho essa certeza ainda, mas no Chico a gente preferiu responder da seguinte forma: não, não vamos usar steadycam, vamos colocar essa câmera na mão, não vamos querer fazer com que essa história pareça uma… Que tenha uma câmera que embeleze a coisa, né? Porque o steadycam esconde uma realidade que é da câmera tremer, é um artifício de ocultação da coisa mais natural possível, que é a gravidade. Então entendemos que a câmera não podia surfar assim. Mas também tentamos pensar o que isso significaria dentro do filme.

Tem uma cena com steadycam, por exemplo, do menino na “pipa cruz”. Ali é um steadycam porque a partir dali a gente entendeu que tinha um rompimento com a verossimilhança dentro dele. Então é a primeira cena, por exemplo, em que temos plano e contraplano. Ou seja, delimitamos dentro desse filme que isso seria utilizado pela direção em algo mais construído, algo mais distante do real. A partir do momento em que deram uma marretada na tornozeleira, a gente rompe com a estrutura com a qual estava mexendo antes, então tem steady, plano e contraplano, tem som construído de forma bem mais clássica, aquele boom que estremece… Foi assim que pensamos.

 

Queria também pensar sobre o personagem do Chico. Tive a impressão de que há uma passividade um tanto quanto grande nele, não o vejo como um personagem ativo, com desejos próprios. Tudo é muito centrado na figura da mãe e fico me perguntando como vocês pensaram esse personagem do Chico.

O personagem do Chico é exatamente isso que você falou, ele não tinha pretensão de ser algo além disso depois que a gente entendeu o lugar final do filme. Na verdade, ele serviu como muleta para que a personagem da mãe e a personagem da vó possam desenvolver seus dramas. O Chico sai, do ponto de vista interno dele, do mesmo lugar e acaba no mesmo lugar, tempo de tela ele quase não tem, né, poucas falas, mas ele é o elemento que possibilita que isso aconteça. Na periferia, o filho… Eu tento entender a questão da maternidade ouvindo, né, inclusive no nosso filme a gente ouviu muito a atriz que fez a vó, que é a Lúcia Talabi, sobre a questão da maternidade, e modifica muito o lugar social da mãe. Não é à toa que tantas mulheres da periferia tem filhos tão jovens, é quase como se fosse o lugar social que elas têm que cumprir. Muitas delas acreditam nisso ainda. De fato, o filho é o que faz com que exista algo dentro da mãe pelo qual tem que ser trabalhado, independente do que aconteça, por mais que o filho não apareça em nenhum momento.

 

E essa relação com sci-fi, foi um desejo desde o início?

Sim, desde o início. Veio de uma referência do Filhos da Esperança que mexe com isso, mas também não vai pros caminhos mais tradicionais que todo mundo costuma conhecer. Acho interessante trabalhar isso como conceito de um futuro, mas tentando olhar pro passado. Até por uma questão que a gente pensou no início, que é “como seria a periferia no futuro?”.A periferia tá tradicionalmente parada no tempo. Se a gente for olhar pra alguns lugares, eles estão parados no tempo. Se a gente fizer uma foto e colocar em preto e branco, a gente não sabe dizer em qual tempo a gente está, a não ser que haja uma tecnologia. Então a gente quis brincar com isso, com um futuro que parecesse o passado, e foi desse conceito que partimos.

 

E tem uma influência do Adirley aí?

Tem muito. Inclusive a cena onde a Nazaré está trabalhando, aquele plano ali estático, toda aquela dinâmica cênica, até aquela lâmpada comprida, tem no mesmo laboratório do Branco Sai, Preto Fica. A gente quis praticamente recriar aquele tom, até porque tem uma coisa muito interessante por trás da estética naquilo ali porque ele propõe uma espécie de revolução dentro do próprio filme através de um trabalho manual que é subconsiderado na sociedade, que é aquele cara que mexe com as sucatas dele. Como é possível fazer uma revolução com o pouco que você tem? A maioria das pessoas na periferia não tem tanto conhecimento sobre política, sobre economia, sobre muitas coisas, e aí como a gente produz mudanças? Com o que a gente tem.

 

Numa entrevista que fiz com o Adirley ele falou sobre o primeiro festival que frequentou, que foi com o Rap, o Canto da Ceilândia em Brasília. Ele disse que não conseguia estar naquele ambiente de forma agradável. Entrava, saía, não conseguia se comunicar muito bem com as pessoas, era um corpo estranho naquele ambiente. Vocês, no último Festival de Brasília, tiveram, imagino eu, uma experiência muito forte, por tudo aquilo que foi aquele festival. Me parece que vocês já tinham frequentado outros festivais…

Mas nenhum como aquele…

 

Justamente. Então queria que você falasse dessa experiência, do que significou o Festival de Brasília, desse choque de realidade…

Eu nunca tinha viajado na vida de avião. Todas as vezes que andei de avião na vida foi pra festival. Foi assim que me locomovi e descobri o Brasil. A gente nunca teve esse hábito. Participamos de vários festivais antes do de Brasília, a gente experimentou muitas coisas meio chiques assim, pra gente era um barato. A gente se divertia quando chegava no quarto e mantinha a serenidade quando estava fora dele. Mas o de Brasília foi algo muito louco. Fomos eu, Eduardo e a Jeckie (Brown, atriz), que mora no Vidigal, e quando a gente chegou ao hotel e abriu a porta da sala de restaurante, a gente se sentiu na classe A do Titanic. Aquelas pessoas tinham um perfil muito, como dizer isso, um perfil de elite. Por mais que muitas pessoas ali não fossem. A maioria foi extremamente gentil, abraçou a gente, mas é algo que não tem como. Olha o lugar onde estava, olha a cor da maioria das pessoas com quem a gente estava, olha a classe social da maioria das pessoas com quem a gente estava. A gente não se sente em casa nesses lugares, por mais que as pessoas nos abracem, falem “cara, pô, foda”, não tem como se sentir em casa. Foi uma experiência especificamente muito diferente de cinema pra gente.

Isso se relaciona também com a forma como a gente se posiciona nas coisas. Por exemplo, a gente combina muita coisa antes de falar no palco, porque a gente não se sente no direito de errar. Uma coisa que se fala é que “o preto não pode errar nenhuma vez”. Tem gente que pode errar uma, duas, três… Se você vai lá e fala uma merda, a porta se fecha e ninguém abre mais pra tu. E não só isso, mas também a responsabilidade que você tem. Quantos outros favelados gostariam de estar ali e falar um monte de coisa? Então existe uma responsabilidade também, tem muito mais coisa em jogo do que pra maioria das pessoas ali. Você tem que pensar em quando vai abrir a boca, tem que pensar em como vai sentar, como vai se comportar, porque infelizmente você não está em casa, a sensação é que você está na casa dos outros. “Pô, será que pode botar o pé na mesa?” É assim que a gente se comportou lá, por mais que tenhamos nos sentido extremamente bem recebidos, não só a gente como o filme, mas é algo que não se tira, é a forma como aprendemos a lidar com as coisas.

 

E esse ambiente mais geral do debate sobre questões raciais, sobre gênero… Acho que é um ambiente que vem sendo construído através desses coletivos que apareceram muito fortemente em junho de 2013, por exemplo. Como você entendeu todo esse contexto de debates? Foi algo que te surpreendeu? De que maneira te motivou?

Não me surpreendeu tanto justamente pela experiência nossa de midiativismo. A gente experimentou de tudo no universo político, de opiniões e tal. Lá e em outros festivais costuma ser um espaço progressista, pessoal de esquerda, mas é aquilo, é uma forma de posicionamento que é extremamente compatível com o modo de vida das pessoas, não cobra que as pessoas se arrisquem. Mas pelo que eu e Eduardo vivemos em midiativismo e pelo que vimos na favela, achamos que é muito incompatível com os problemas políticos atuais que a gente resuma eles a gritar “fora, alguém” dentro de uma sala de cinema. Que a pessoa se manifeste como ela quiser, mas a gente entende que gritos dentro de uma sala de cinema não vão mudar nada, nem se for um milhão gritando dentro de um lugar isso vai mudar. A gente tem prova disso.

Esse tipo de coisa é que faz com que a gente olhe e fale como é necessário que pessoas que sofrem determinadas coisas estejam lá. Porque todo mundo lá sabe quão ruins são diversas políticas que estão sendo feitas e sabem perfeitamente que elas vão afetar mais a população pobre, que não está ali produzindo pensamento, não está produzindo filmes na maioria das vezes. E essas pessoas, quando pensantes, sabem que gritar dentro da sala de cinema não é suficiente. A gente olha aquilo e pensa “pô, não é possível”. A gente que já foi preso no Rio de Janeiro – eu e o Eduardo: a gente já apanhou, já foi perseguido – a gente olha aquilo e pensa o quanto é necessário terem mais pessoas, novas pessoas produzindo pensamento político dentro do cinema. Se não a gente vai continuar o que está acontecendo até agora no Brasil, que são mudanças lentas, graduais, e que favorecem mais a quem no final das contas? Quem está fora ou quem está dentro das salas de cinema?

 

*O repórter viajou a convite da 4ª Mostra de Cinema de Gostoso

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