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“Só a partir da escuta é que podemos pensar numa possibilidade de transformação”

12/09/17 às 11:44 Atualizado em 10/10/19 as 00:58
“Só a partir da escuta é que podemos pensar numa possibilidade de transformação”

O cineasta Marcelo Pedroso tem claro para si que o gesto que tomou ao realizar o documentário Por Trás da Linha de Escudos está profundamente associado ao momento político pelo qual passa o País. “A gente não consegue mais debater política. Ninguém se escuta mais, a gente só fala”. Militante engajado em grupos de esquerda, ele decidiu propor uma experiência nova e radical para seu cinema ao filmar um documentário no Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco, sem ter, contudo, a intenção de fazer mais um filme-denúncia, mas sim de obter algum entendimento sobre aquelas pessoas – suas adversárias políticas – pela via da escuta.

O filme estreou no último sábado (9) no VIII CachoeiraDoc – Festival de Documentários de Cachoeira e será exibido no próximo dia 21 na competição do 50º Festival de Brasília. Na cidade baiana, as falas no debate pós-sessão foram majoritariamente positivas (com exceção de uma clara expressão de repúdio ao filme), mas a discussão se estendeu noite adentro pelas ruas da cidade e parte dos espectadores rejeitou a postura de não confronto ao Batalhão de Choque e a busca por empatia com aquelas pessoas que fazem parte diariamente de um aparato policial repressor.

Pouco depois da sessão no VIII CachoeiraDoc, o Cine Festivais conversou com Marcelo Pedroso a respeito de sua relação com festivais e das múltiplas questões estéticas, éticas e políticas que envolvem a realização de Por Trás da Linha de Escudos.

 

Cine Festivais: Há nesse circuito de cinema uma lógica de hierarquia do que seriam os “grandes festivais”. Aí você tem esse gesto de passar o filme primeiro aqui no CachoeiraDoc, para só depois ir para o cinquentenário Festival de Brasília. Como se deu essa decisão? Houve algum tipo de choque com o pessoal de Brasília?

Marcelo Pedroso: Nenhum. Eu, como realizador, adoro o CachoeiraDoc desde sempre, conheci o festival logo em sua primeira edição. Então quando a gente recebeu a notícia de que tinha sido selecionado, a reação foi: “fuderoso, vamos estrear em Cachoeira.” Depois chegou a notícia da seleção para Brasília. Massa também. A gente estreia em Cachoeira e depois passa em Brasília, e se Brasília viesse contestar alguma coisa a gente não iria tirar o filme do CachoeiraDoc. Felizmente Brasília não veio colocar nenhuma questão, não houve um diálogo nesse sentido. As pessoas sabiam que iria passar aqui, e mesmo assim bancaram o filme passar lá. Então eu acho que os festivais também estão de alguma forma redesenhando suas políticas, né?

Agora, é isso: eles têm a política deles e a gente tem a nossa. Enquanto realizador ou realizadora, produtor ou produtora, a gente vai ter sempre a prerrogativa de escolher onde quer entrar, e eu enquanto realizador vou querer estar aqui sempre que o CachoeiraDoc selecionar um filme que eu dirigi. Porque é aqui que eu acho que os debates importantes estão acontecendo, sabe? E não é só um debate em si, é toda a construção que o festival faz. O gesto do festival, os filmes que ele prioriza, o tipo de arranjo que ele coloca para a comunidade, o tipo de formação de público que ele faz. Então o CachoeiraDoc é para mim uma experiência completa, política, de vanguarda, e sempre que eu puder estrear filmes aqui vai ser com grande prazer.

 

E qual é a sua relação com os festivais internacionais, que também quase sempre exigem ineditismo para os espaços “principais”?

Comigo foi assim: os filmes que eu dirigi nunca tiveram um trânsito bom no exterior, então eu entendi que não é essa a política que eu devia construir, não é a essa política que eu devia me alinhar, sabe. Nas vezes em que eu tentei fazer isso, não deu certo, por isso fui entendendo que a importância do filme não é alimentar um circuito para legitimar o filme, para ele ‘acontecer’.

Em geral os filmes em que eu me engajo estão implicados por uma urgência de mundo tão grande que eles têm que acontecer aqui (em Cachoeira). O festival está refletindo sobre o Brasil, tocando em questões políticas do Brasil de hoje, reagindo a eventos e situações sociais que são desterritorializadoras. A gente está vivendo um cataclisma no País, então para mim a política é construir esses espaços como o CachoeiraDoc.

Para mim é muito mais interessante e natural me alinhar a esses espaços que eu reconheço como sendo de construção coletiva e tornar-me parte deles do que buscar o prestígio midiático que um festival europeu tem. Claro que eu queria que os filmes que eu dirijo pudessem ter mais bilheteria, e tal, mas não acho que seja jogando esse jogo que eu vou conseguir isso. O jogo é jogado de outra forma, em outro lugar, e a bilheteria que interessa não é a bilheteria paga, é a bilheteria de pessoas que possam ver o filme em cineclubes, escolas, nos cinemas comerciais também, onde puder acontecer.

 

Você falou que chegou a tentar testar com outros filmes seus esse tipo de lógica dos festivais internacionais. Com quais trabalhos?

Não é tentar testar. Quando você começa a trabalhar com cinema, tem uma suposta ordem natural das coisas que todo mundo acha que deve reproduzir. Então, por exemplo, com KFZ-1384, a gente finalizou um longa-metragem, Gabriel (Mascaro) e eu, e passamos seis meses doidinhos porque o filme não entrava em nenhum festival da gringolândia. Seguramos o filme, mandamos para Cannes, IDFA, não sei o quê mais, e não entrava em canto nenhum. E a gente achando que o filme não existia porque não estava competindo. Isso é uma loucura, pô. Você faz um filme com dinheiro público para ficar segurando, subtraindo, entrando numa lógica que lhe é imposta? Nesses momentos eu fui percebendo que a política não era essa. Pelo menos para mim, né? Outras pessoas têm mais êxito. E aí você vai entendendo qual é o tipo de construção que mais interessa e vai fortalecendo aquilo.

 

Queria pegar o gesto desse filme que você acabou de lançar para entrar em outro assunto. Diz-se muito que os espaços dos festivais formam uma bolha. Nesse sentido, fazer filmes e circulá-los nesses espaços não seria como se manifestar em frente a uma linha de escudos imóvel, atacando alguém a quem o seu discurso não alcança?

Muitas vezes dá um pouco essa sensação, de quando você está com o filme e vai exibi-lo num espaço em que as pessoas já têm uma compreensão da realidade semelhante à sua. É como se você estivesse pregando para convertidos, não tem tanto deslocamento assim, e aí às vezes você pode ter essa sensação de que está encapsulado dentro de uma esfera sem muita capilaridade para o mundo. É muito asfixiante quando você sente isso.

No momento político que a gente está vivendo, que é de derrocada da possibilidade de democracia, da possibilidade de exercício de uma politica minimamente aceitável, esses lugares se tornam espaços de refúgio e de resistência. Estar aqui em Cachoeira, por exemplo, com uma galera que está extremamente implicada pela militância… Por mais que você possa sentir e achar que está numa bolha, isso é muito necessário nesse momento, porque as pessoas precisam estar juntas, acreditar e ter forças para continuar lutando.

Agora, é evidente que a gente tem sempre essa intenção de levar o filme para pessoas que não estão familiarizadas com certos tipos de pensamentos, de experiências, numa tentativa de gerar um contato que possa trazer algum tipo de troca, de reflexão.

O gesto de realizar qualquer filme já é difícil o suficiente. Você já sofre muito para realizar um filme, tem muitas dificuldades, conflitos de ordem criativa, dificuldades logísticas, financeiras, de tempo, vários obstáculos. Então, diante disso, você tem a ilusão de que já fez o seu papel quando o filme está pronto, mas isso não é suficiente. Você também tem que criar condições de existência para ele circular.

Seguir esse caminho já existente, se contentando apenas com os festivais ou as salas comerciais, pode significar estar sempre numa bolha, então você precisa furar isso o tempo todo, encontrar e inaugurar espaços. No caso desse filme (Por Trás da Linha de Escudos), a gente está pensando em distribuir em cineclubes ponto de cultura, universidades, escolas, mas também na Associação de Cabos e Soldados, Associação de Oficiais da Polícia… Fazer a exibição, mandar um ou dois militantes para debater e ver o que acontece. A gente precisa sempre expandir isso e fazer com que espaços que não são frequentados por esse tipo de produção possam passar a ser.

 

Pensando ainda esse campo dos festivais, você acha que o gesto dos cineastas que retiraram filmes do Cine-PE neste ano vai na contracorrente disso que você propôs com esse filme?

Eu respeito o gesto da companheirada que decidiu aquilo. Respeito porque é muito difícil às vezes lidar com algumas figuras que estão inscritas na vida política e com o modus operandi delas. Não tem uma regra para isso. Acho que se eu estivesse no festival eu não teria me alinhado a esse gesto, teria até conversado com a galera para que aquilo não rolasse. Seria a minha posição. Se teria tido outro desfecho, ninguém sabe, mas eu pessoalmente não teria me alinhado a isso não. Acho que é importante estar no festival, participar dos debates. Mas respeito o gesto deles.

 

Agora entrando no filme: desde 2013, muita coisa tem acontecido no Brasil, e de modo muito rápido. O cinema tem um delay natural entre os acontecimentos da realidade, a produção do filme e o corte final. O Brasil S/A, por exemplo, é de 2014, mas talvez não estivesse muito ciente do que havia ocorrido em 2013. E o Por Trás da Linha de Escudos não necessariamente estaria ciente dos acontecimentos políticos recentes. Como você reflete sobre essa questão nesses trabalhos?

Essa urgência é sempre um ponteiro de relógio que está batendo na cabeça da gente, estamos sempre atrasados. O Brasil tem surpreendido todo mundo com a velocidade e a gravidade das coisas que têm acontecido, a realidade se supera todos os dias. Então, se você faz documentários, filmes que lidam com as coisas que estão acontecendo… Por exemplo, tem uma galera fazendo filmes sobre o impeachment, e não conseguem terminar. A cada semana aparecem novos eventos que eles precisam tentar incorporar à narrativa dos filmes, e é impossível, cara. A galera deve estar louca com isso.

No caso do Brasil S/A eu acho que ele ainda conseguiu ser lançado num tempo interessante, que foi antes do impeachment, do golpe, num momento em que a economia ainda estava com algum vigor, antes do agravamento da recessão.

Neste filme (Por Trás da Linha de Escudos) a gente filmou durante o impeachment. No dia em que o Batalhão de Choque estava fazendo um campeonato de peteca, estava acontecendo o impeachment. Então a gente não sabia o que iria acontecer durante as filmagens. Eu achava que o Brasil iria viver uma guerra civil. Achava que o Choque iria sair todo dia para reprimir gente, e que a gente iria acompanhar aquela porra e o filme ganharia uma temperatura absurda, porque os conflitos iriam se intensificar cada dia mais. Eu não esperava que o impeachment fosse passar como passou. Achava que realmente haveria um quebra-pau generalizado.

No dia da votação, quando colocaram aquele muro ali na Esplanada dos Ministérios para separar os manifestantes pró e contra, eu pensei: “meu irmão, vão derrubar esse muro, o pau vai comer aqui, vai ser principio de guerra civil e a gente vai estar filmando essa porra.” Então surpreendentemente a gente filmou três semanas lá sem nenhum acontecimento que perturbasse essa ‘ordem social’, isso foi surpreendente pra mim. Tem essa coisa de o Brasil estar sempre surpreendendo de todos os lados. E o pau depois comeu de outras formas.

Tá todo mundo doido, véio. E é muito difícil fixar uma narrativa nesse momento. É muito difícil você ter a pretensão de conseguir resolver questões para que aquela narrativa seja aquela e acabou. Eu editei esse filme até o ultimo minuto da mixagem. Na mixagem eu mudei o corte do filme. Isso não existe, tá ligado. É logisticamente um suicídio você fazer isso, tem um prejuízo, uma perda de tempo, um risco de dar merda enorme, e eu fiz isso, por conta desse momento do País.

Então a gente está sempre tentando dar conta dessa realidade, e ela está escapando. Uma das imagens do filme é a do círculo azul da bandeira brasileira pegando fogo com carrapatos em cima. Para mim essa imagem é o momento que a gente está vivendo. Tá pegando fogo, e o fogo não é controlável. Ninguém domina a chama, ela se espalha e vai incendiar qualquer lugar que tiver propensão à combustão. Está acontecendo um incêndio dentro das estruturas de poder, todo dia cai uma parada, e a gente tem que engrossar esse coro, porque temos que sepultar essa Nova República.

Essa forma como foi feita a democracia no Brasil até aqui acabou. Tem que fundar uma nova etapa na história, com novos sujeitos políticos que são esses sujeitos emergentes na esquerda: mulheres, população dissidente sexual, negra, indígena, essa galera que é historicamente perseguida e silenciada e tem que ter protagonismo nos novos arranjos políticos que a gente está construindo daqui para frente. E aí o Brasil vai voltar a pertencer aos brasileiros e brasileiras.

 

Mas já pertenceu alguma vez?

Não. A própria ideia de brasileiros e brasileiras é uma invenção. Foi só uma fala demagógica. (risos)

 

Há uma rima visual clara com o Brasil S/A no que se refere ao uso da bandeira brasileira. No filme anterior aparece a bandeira sem o círculo da Ordem e Progresso, e em Por Trás da Linha de Escudos é apenas essa parte que surge retratada em alguns momentos. Como surgiu essa ideia?

Na época em que estávamos fazendo pesquisa para o filme, também estávamos lançando o Brasil S/A nos cinemas. Aí uma amiga me disse que Temer tinha feito uma lei que obrigava que os filmes brasileiros tivessem bandeiras do Brasil nos materiais de divulgação. Então, pensei: “oxi, é perfeito.” Vamos pegar a bandeira do Brasil S/A e tocar fogo nela. A gente contempla a lei, usa a bandeira, mas tocando fogo. É um gesto da gente. E na hora veio à minha cabeça a ideia de fazer isso num lugar público. Isso causaria um tumulto e de repente o Batalhão de Choque viria para dispersar a multidão. Como ele tem que proteger a bandeira, vai querer apagar o fogo, só que a gente vai resistir. Então a gente vai usar o círculo da bandeira para se defender, e se eles atacarem o círculo, eles também perdem, porque é um símbolo da pátria. Então eu comecei a ficar muito empolgado com isso, e pensei nessa época em fazer o filme assim: botar fogo na bandeira, ter um conflito e começar o filme com o conflito.

Depois eu fui percebendo que esses escudos também poderiam servir como uma espécie de espelho para o Batalhão de Choque. Eles olham pra galera da militância e só veem o maconheiro, o baderneiro, não sei o quê, mas se ele olharem para um negócio em que se reconhecem, eles vão dizer: “oxente, isso aí também é meu.” Então, alegoricamente, no plano visual, eu comecei a perceber que os escudos podiam ativar essa ideia. E quando eu mostrei o filme finalizado para os caras do Choque, realmente teve muito isso, perguntavam porque estávamos usando o “Ordem e Progresso” como escudo. Eles estranham, não gostam dessa imagem, como se aquilo fosse exclusividade deles. Então é uma forma de dizer para eles “oh, galera, olha aqui pra gente”, para eles entenderem que também tem outra coisa aqui, sabe.

 

Isso que você falou cabe perfeitamente na ideia dos manifestantes pró-impeachment de defenderem que “a nossa bandeira jamais será vermelha” e que eles seriam os legítimos brasileiros, podendo, por isso, usar as cores verde e amarela com exclusividade.

Sim. Como se a bandeira vermelha usurpasse uma ideia de Brasil. Mas qual é o Brasil que eles defendem, cara? É esse Brasil das injustiças? De 500 anos de escravidão? É isso mesmo? O Brasil que a gente defende é outro, né? Então eu tinha que falar pro comandante que a gente tem amor à pátria, porque para a galera é como se nós fôssemos inimigos da pátria, sabe? Agentes comunistas infiltrados de Moscou, de Cuba, bolivarianos, sei lá o quê. Véio, qual é, tá ligado? Parece que a gente está em outra década. Tem um descompasso às vezes na percepção de realidade. Dizer que o governo petista é comunista… Pelo amor de Deus, o governo petista teve varias orientações à direita, liberais, e tal. Então está havendo uma bagunça generalizada, e a gente tem que transformar isso num bom momento para reconstruir um projeto de nação, mais justo, mais socialmente referendado.

 

Como foi esse diálogo com a Tropa de Choque no sentido de deixar vocês entrarem lá com essa autonomia que vocês tiveram, e qual foi a transparência no diálogo com eles?

Tinha muita desconfiança, e com razão. Eu estaria desconfiado se estivesse no lugar deles, assim como também tinha muita desconfiança nossa em relação a eles. Então de cara era preciso ter um exercício diplomático, de conversar, dizer: “olha, nós somos essas pessoas, viemos da militância, mas não estamos aqui para fazer um filme que quer destruir vocês, no sentido de prejudicar as suas carreiras, ou sei lá o quê. O filme que a gente quer fazer é entender um pouco o ponto de vista de vocês, entender um pouco a situação de vocês, mas a partir do lugar de quem a gente é.” Por exemplo, o major disse assim: “eu nunca esperei que vocês fossem fazer um institucional do Choque. Sabia que iria ter crítica, sabia que iria ter ‘componentes ideológicos’.” É óbvio, tudo é ideologia, né, major? O Choque é ideológico em si também.

Então eles sabiam que a gente estava ali, mas eles confiaram que a gente não iria querer fazer algo para prejudicar fulano ou beltrano, ou fazer uma denúncia, ou sacanear. Eu queria deixar isso muito claro, que é um gesto político, mas que não visa prejudicar ninguém ali. Acho que se estabeleceu uma relação de respeito e confiança para que isso fosse possível, e essa relação permitiu que ao longo do processo a gente exercesse uma dinâmica que buscava um pouco de empatia dos dois lados.

 

Nesse sentido, que referências você buscou para encontrar o modo de filmar o outro, já que esse outro era, no caso do filme, essencialmente antagônico?

Eu pesquiso muito essa relação no meu trabalho acadêmico. Chamo isso de documentário em regime de adversidade, que é filmar essas situações em que exista uma divergência fundadora entre as pessoas, e surgem questões sobre como lidar eticamente com isso. Eu conheço o trabalho de vários e várias cineastas que operam nessa chave. Os filmes de Avi Mograbi e Rithy Panh me interessaram muito para essa jornada.

Tem também uma dimensão do pensamento político. Li um pouco de teoria da área, desde Carl Schmitt, um ideólogo do nazismo que defendia que a política era a relação de amigo e inimigo, até Giorgio Agamben, que faz uma crítica da ideia de Schmitt a partir do estado de exceção para dizer que o estado de exceção sempre esteve em tudo, e Chantal Mouffe, que vai dizer que o objetivo da democracia é transformar inimigos em adversários.

E qual é a diferença entre inimigo e adversário? Inimigo é aquele que ameaça sua existência, que quer lhe destruir, então você também precisa destruir para não ser destruído. Isso é guerra civil, revolução, destruição. Mouffe diz que a democracia precisa transformar o inimigo em adversário e o antagonismo em agonismo. O adversário, contrariamente ao inimigo, é aquela pessoa com quem você discorda, mas com quem consegue manter algum convívio porque existe um comum entre vocês. Vocês conseguem reconhecer entre vocês dois ou vocês duas um espaço que é algo que pertence aos dois, que é comum. Você se reconhece no outro e o outro se reconhece em você.

Foi um pouco guiado por essa ideia de Chantal Mouffe que eu ao longo do filme busquei estabelecer essas cenas no documentário em que a gente podia ter esse contato, promovendo uma experiência entre a gente e o Choque. O comum entre a gente era a cena, o espaço que a gente dividia, mediado pela câmera. E essa cena é instável, ela está sempre ameaçada, porque se o conflito entre a gente começa a se acentuar, no dia seguinte ele não vai mais querer ser filmado, a porta do Choque não estaria aberta para eu entrar. Então é uma cena que você tem que estar cultivando através dessa relação diplomática para que a experiência possa ir se estabelecendo.

E por que a experiência é interessante? Porque ela permite essa troca de afetos. O grande desafio é como a gente, enquanto democracia, pode criar espaços para que esses gestos possam ocorrer. Ninguém sabe como lidar com alguns sujeitos políticos que estão aí pregando o extermínio de populações inteiras. Como lidar com uma figura dessas em um regime democrático? Como você lida com o discurso de ódio? Como é que o cinema pode lidar com isso? São questões que estão aí para a gente enfrentar.

 

Talvez a cena mais representativa sobre essa ideia de empatia seja a da policial que mostra suas fotos pessoais no Facebook. Quase todo mundo hoje em dia tem a rede social como um espaço de (re)encontro afetivo. Aquilo é quase como um patrimônio imaterial das pessoas…

Eu acho que naquela cena o Facebook projeta um espaço de reconhecimento mesmo. A gente bota no Facebook as nossas memórias, as coisas marcantes que a gente viveu, e ela está botando ali a foto de uma câmara de gás que ela tomou no treinamento do Choque, na qual todo mundo está vomitando. Isso é muito marcante para ela. Acho que nesses momentos você começa a compreender um pouco uma dinâmica de identificação coletiva, sabe? Por que ela é ‘choqueana’? Porque ela viveu aquilo. Aquilo faz parte do território existencial dela, véio. Aquilo é experiência e acúmulo simbólico da vida dela. Isso é humano, saca? Então eu posso ter todo o meu desacordo político com a existência do Choque, com o estado repressor, mas para ela, aquilo é a vida dela, cara. É muito flagrante.

Talvez o filme proponha esses pequenos espaços, lampejos de possibilidades, de reconhecimento, buscando esse gesto agonístico que é esse espaço. Não significa eliminar o conflito, não significa eliminar a política. A gente vai continuar enfrentando o Choque, o Choque vai continuar enfrentando a gente, isso faz parte da luta de todos nós, mas houve ali alguma coisa que se processou. Agora, como isso reverbera, só o tempo vai dizer.

Eu achei incrível a forma o debate de hoje terminou. Foi uma fala de Iane, uma moradora da periferia do Recife, militante, que ficou indignada, ultrajada, ofendidíssima com o filme, se sentindo violentada por ele porque o filme fez o gesto de ter esse espaço de acolhimento com a polícia e ela, enquanto uma moradora da periferia, negra, sente na pele o que é a violência policial, o que é sofrer baculejo, sofrer todos os abusos. Eu acho incrível que o debate tenha terminado com essa fala dela, porque é a verdade de grande parte da população brasileira. Então o gesto de acolhimento não significa que a luta acabou. Não é algo do tipo “ah, beleza, o pessoal do Choque também sente, também pensa, não são só aquelas máquinas de destruição que a gente enfrenta na rua”. Não termina aí. A porrada continua.

 

Por que você não respondeu àquela colocação?

Porque a fala dela é que encerra o debate, cara. Eu vou responder o que pra ela? Eu só agradeci. Não tenho o que dizer.

 

Você falou sobre como nos tempos atuais é difícil fazer filmes com conclusões muito fechadas sobre o que está acontecendo. Pensando nisso, acho que a busca por uma suposta eficácia na transmissão de uma mensagem ao público fragiliza certos trabalhos e pode ser redutora. O que você acha dessa ideia de eficácia no cinema? Faz sentido para você?

A ideia de um cinema militante que iria transmitir uma mensagem emancipatória e ser a voz do povo e da liberdade revelou que, embora essa disputa seja importante, não é bem isso que acontece. Se fosse assim, com o tanto de filme militante que foi feito, a gente já tinha derrubado todos os governos tiranos e feito várias reformas sociais. A coisa não é tão simples, é preciso entender qual é o tipo de eficácia que está sendo esperada.

A ideia de uma mensagem que vai ser transmitida e interpretada segundo o código da intenção de quem fez o filme é meio boba. A ideia de um consenso é pior ainda. Por isso que a fala de Iane tinha que fechar o debate. A conversa estava sendo muito interessante, as pessoas estavam colocando coisas muito legais, eu estava tendo espaço para colocar coisas muito pessoais minhas, mas ela chegou pra dizer: “esse filme aí é uma merda, porque esse filme aí me ofendeu, me agrediu o tempo todo.” É isso, não tem consenso. Isso é muito importante. Não sei em que termos essa eficácia deve ser buscada, porque quanto mais ela fugir de intenções e desejos, eu acho que mais ela vai poder corresponder ao que pode ser de fato o gesto do filme, de provocar deslocamento.

 

Marcelo Pedroso (centro) em debate no VIII CachoeiraDoc (Foto: Lígia Franco)

 

Em texto recente da jornalista e crítica Carol Almeida sobre Por Trás da Linha de Escudos, ela aponta que o filme combate uma ideia de cinema como autoridade. Você também vê o seu documentário dessa forma?

Eu acho que sim, mas que isso não é uma regra.

 

É um viés pessoal seu?                  

Não é um viés pessoal meu, isso é um momento. Eu acho que o filme (Por Trás da Linha de Escudos) disputa narrativa também, ele disputa sentido.

Eu vou continuar fazendo filmes que tenham uma mensagem. Eu acabei de dizer que a mensagem não é eficaz, mas as mensagens são extremamente importantes, cara. Você precisa fixar sentido para as coisas. Você não pode ter a ilusão de que se você fizesse um filme defendendo algumas ideias as pessoas iriam aderir a elas. Isso não vai acontecer, mas você precisa disputar os sentidos. E filmes que disputam sentido em geral são autoritários. “Foi golpe ou não foi golpe?” Você vai defender que foi golpe e construir um filme que é autoritário, que vai defender um ponto de vista. Então existem várias formas de encampar a luta política pelo cinema. O cinema engajado não tem uma forma única. É importante questionar a autoridade desse filme que bota o dedo na cara e diz o que é certo, que tem a pretensão de ter uma autoridade, uma verdade sobre o mundo. Eu já dirigi muitos filmes assim.

Acho muito importante questionar essa forma, mas acho também que, se a gente retroceder, a galera de direita vai começar a dizer o que é certo nos filmes deles. E aí você tem que estar disputando sentido o tempo todo. Não pode haver um movimento de retração tão radical, porque a luta está aí em curso. Então é muito difícil equacionar o tempo todo essas questões.

 

Gostaria que você comentasse um pouco sobre a montagem do filme, particularmente a escolha pelo uso de telas pretas em transições. Para mim aquilo passa uma ideia inicial de distanciamento entre os dois polos, que vai sendo diluída aos poucos…

Eu acho que realmente no começo do filme as distâncias estão postas. Existe uma dificuldade minha de entrar, tentar encontrar as pessoas. Quando Peixoto (policial do Choque) aparece e começa a falar do Estelita, era como se realmente fossem dois campos ali. Os blacks (telas pretas) vêm meio que separando esses lados. Ao longo do filme vai ocorrendo essa aproximação, chegando à parte perigosa, que é justamente quando eu começo a me envolver demais, participar demais das atividades do Choque, me envolver afetivamente pelas pessoas. Nesse segundo momento, continua tendo blacks, mas é como se fosse para recuar, para me puxar de volta. É como se os blacks viessem ajudar a administrar essa distância entre estar perto e estar recuando, se afastar, mas ter que se aproximar, esse movimento contraditório, pendular, que o filme realiza.

 

Nesse contexto de extremos políticos e de enclausuramento em bolhas nos mundos virtual e real, me parece que ouvir o outro se tornou uma experiência radical nos dias de hoje. Como isso reverberou na sua experiência realizando este filme, fazendo, como você disse no debate, “o gesto de se vulnerabilizar”?

Então… todos estão surdos, né? É uma forma de proteção, de blindagem pessoal. Perdemos a faculdade de escuta porque estamos muito convictos de que estamos certos. Eu, na minha condição de homem branco de classe média, de nível superior, com todo esse acúmulo de privilégios, tive que aprender a ouvir. Porque na militância você tem que aprender a ouvir a companheirada que está do seu lado e que tem experiências de vida nas quais a sua própria existência privilegiada é opressora. Então você vai ouvir as mulheres, vai ouvir as mulheres negras, os negros, o pessoal da dissidência sexual… você tem que aprender com eles. Não estou querendo dizer que eu consiga ter uma escuta generosa sempre, porque não é uma questão de generosidade, nesse caso é uma questão de aceitar e entender que você está fazendo merda, que você está reproduzindo violência mesmo sem querer. Então eu tive que entender isso primeiramente através da militância.

O filme se estende a essa alteridade contrária. A gente não consegue mais debater política, ninguém se escuta mais, a gente só fala. Quando o outro está falando você só está pensando no que vai dizer depois, no que vai vomitar por cima dele na próxima fala. Então a vulnerabilidade passa por isso. Escute, meu irmão. Respire. Tá ligado? Está com medo de quê? De perder o poder de homem branco? Tem que perder mesmo, sabe. Você não vai morrer por causa disso. Perca, abra mão, escute. Então o exercício de escuta é permanente, e eu acho que só a partir dele é que a gente pode pensar numa possibilidade de transformação.

Na verdade eu acho que as pessoas que não escutam vão se foder. Vão perder espaço, porque quem faz isso não está aprendendo, não está crescendo. Está apegado a uma ordem falida. Não dá para defender essa ordem, ela só perpetua esse estado de violência em que a gente vive. Então, tem que escutar. É isso.

 

* O repórter viajou a convite da organização do VIII CachoeiraDoc

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