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“Filmar com o INCAA é como renovar o passaporte todos os dias durante 3 anos”

12/09/18 às 19:00 Atualizado em 01/07/20 as 18:49
“Filmar com o INCAA é como renovar o passaporte todos os dias durante 3 anos”

Laura Citarella preparava o seu segundo filme como diretora, A Mulher dos Cachorros, quando foi selecionada para participar da Biennale College, projeto do Festival de Veneza dedicado à formação de jovens artistas. “Fomos para lá com um projeto que em vez de ser o típico filme de personagem com uma curva dramática, a exemplo de O Poderoso Chefão, era um filme que não tem esse conflito. Quando falávamos sobre particularidade do projeto, que isso era a sua identidade, eles nos falavam que tínhamos que universalizar o filme. Então era um diálogo em idiomas muito diferentes”, comenta sobre a experiência.

A fala é uma amostra da visão de mundo da El Pampero Cine, produtora composta por Laura, Mariano Llinás, Agustín Mendilaharzu e Alejo Moguilansky. Homenageada da 12ª Mostra CineBH, a El Pampero se define como a reunião de um grupo de pessoas dispostas a experimentar e renovar os procedimentos e práticas cinematográficas na Argentina. A proposta já rendeu filmes como Balneários (2002) e Histórias Extraordinárias (2008), de Mariano Llinás, Ostende (2011) e A Mulher dos Cachorros (2015), de Laura Citarella, e A Vendedora de Fósforos (2017), de Alejo Moguillansky.

Último filme da produtora, La Flor, dirigido por Mariano Llinás, foi o vencedor Festival Internacional de Cinema de Buenos Aires e participou da competição oficial do último Festival de Locarno. Com 14 horas de duração, o filme possui três partes e teve estreia brasileira dentro da programação da CineBH.

Durante a passagem de Laura Citarella pelo festival mineiro, o Cine Festivais teve uma longa conversa com a cineasta e produtora. Foram abordados temas como o diálogo entre diferentes artes, os modos de produzir filmes, a relação com laboratórios de desenvolvimentos de projetos e com festivais de cinema e a importância dada ao roteiro no cinema contemporâneo.

 

Cine Festivais: Uma coisa que você diz no catálogo da 12ª CineBH é que em outras artes a criação tem uma liberdade muitas vezes maior do que no cinema, pensando no aparato industrial ligado a este último. Eu queria que você comentasse um pouco sobre isso e a respeito de como essa percepção influenciou na criação da El Pampero Cine e no modo de criação que vocês vêm propondo desde então.

Laura Citarella: Na Argentina há um movimento muito grande de teatro independente na cidade de Buenos Aires. Isso gerou espaços muito pequenos onde se produzem obras fora do mainstream com atores muito bons. São atores que se formam no teatro off. Há algo na maneira de se produzir essas obras e nesse panorama atual do teatro em Buenos Aires que é muito contaminante para nós. Os mesmos atores fazem o próprio vestuário, a cenografia, escrevem suas próprias obras, dirigem suas próprias obras.

Há algo disso que no cinema está um pouco vedado, ou pelo menos esteve historicamente, porque o cinema, em um dado momento da história – que não se entende muito bem qual foi – se envolveu uma estrutura de produção de mercadoria.

Na apresentação do meu filme A Mulher dos Cachorros aqui na CineBH eu vou ler um manifesto de Jonas Mekas em que ele pergunta isso: em que momento o cinema se tornou um espaço de produzir dinheiro, e não um espaço de produzir obras? Que não necessariamente geram dinheiro – depois, se ganham dinheiro, muito bom. O cinema está muito viciado nessa forma de produção.

Para nós (da El Pampero Cine) a influência do teatro se deu de uma maneira muito orgânica. Sobretudo Mariano Llinás, que de alguma maneira é que deu o pontapé inicial para a El Pampero Cine. Isso o inquietou, gerou certas perguntas sobre como fazer filmes. Penso que Mariano pensou inicialmente nisso não como um modo de transpor a estrutura do teatro independente para o cinema. A diferença é que para realizar filmes se necessita em geral de mais gente e mais dinheiro. A questão era como alguém pode adaptar a experiência do teatro independente sem perder de vista essas particularidades do cinema.

No caso das bandas de rock é o mesmo [que o teatro]. As bandas de rock se fundam com quatro integrantes, todos jovens, na garagem de uma casa, e esse já é um acontecimento artístico. Ninguém questiona sua legitimidade. Não importa se depois vão se apresentar em um recital. No cinema se passa algo diferente: se questiona a sua legalidade quando ele não é feito com estruturas convencionais.

Creio que nosso caminho inicial foi o de, a partir dessas influências de outras artes, questionar a própria maneira de se fazer filmes, e a partir disso encontrar a maneira – porque um grupo de cineastas não pode funcionar da mesma maneira que uma banda de rock ou que um grupo de teatro.

E esse caminho de fazer filmes, pelo menos no que já produzimos na El Pampero, foi o de encontrar as pequenas formas, os pequenos acordos e os estatutos para realiza-los. Como disse na minha masterclass aqui no festival, nunca gastamos mais dinheiro para alugar uma câmera do que para pagar uma pessoa. Isso é parte de um estatuto que se estabelece também com as pessoas com quem trabalhamos. Tudo isso foi sendo encontrado ao longo dos anos, e é claro que a cada filme esse estatuto é um pouco mais modificado ou não.

Acho que vem daí a influência de outras artes ao nosso cinema.

Queria que você falasse um pouco sobre a questão do financiamento estatal. Uma das premissas da El Pampero é que vocês não estejam associados às formas de financiamento do INCAA (agência de cinema argentina), por exemplo. O que isso abre de possibilidades pra vocês?

O que acontece é que o financiamento do INCAA – e tudo bem que ele exista, que exista a indústria, que existam os sindicatos e que as pessoas possam viver de fazer filmes – estabelece uma única maneira de fazê-los. Se recebemos dinheiro pelo INCAA temos que trabalhar com uma série de regras, como a obrigação de filmar em uma determinada quantidade de semanas e em uma determinada quantidade de tempo. Um filme como A Mulher dos Cachorros, que necessitava, por exemplo, das estações do ano para ocorrer – porque está estruturada para se passar nas quatro estações do ano – não poderia ser filmada em quatro semanas seguidas. Então, uma estrutura tão rígida como a do INCAA pode gerar problemas, porque implica em regras que nem todos os filmes podem cumprir.

Esse é o grande problema de uma instituição como o INCAA e de outras instituições no mundo, pois estabelecem uma única maneira de fazer para todos os filmes. Se um filme necessita para a sua realização de um novo método, ele não pode participar ou tem que mentir à instituição dizendo que filmou em quatro semanas seguidas, e na realidade não o fez.

Além disso, o INCAA é um estabelecimento governamental muito burocratizado. Quem trabalha lá dentro são pessoas a quem o cinema não interessa. São pessoas que assinam papéis, fazem trâmites, e para fazer um filme você necessita de outro tipo de vínculo com o filme. Nunca de burocratização, nunca de trâmites.

Eu sempre digo que fazer um filme com o INCAA é como ir renovar o seu passaporte todos os dias durante três anos. Não posso entender como um filme pode estar vivo sendo atravessado por tanta burocracia. Então isso também me parece um problema: a instituição pública.

Aqui no Brasil, principalmente nos últimos dez anos, surgiu todo um aparato que vai além da nossa agência de cinema (Ancine). Falo a respeito dos laboratórios de roteiro, dos laboratórios de desenvolvimento de projetos, de encontros de coprodução como aqui no CineMundi. Essa burocracia sobre a qual você falava se tornou mais robusta com esses espaços?

Sim. O que também faz parte de uma certa burocratização é a demora na produção de filmes. Quando se fala em clínica de roteiros, passa-se a ideia de que os roteiros estão mal de antemão, e necessitam passar por uma reabilitação. A ideia é essa: os filmes estão mal, então precisam ser modificados por uma série de laboratórios e de processos. E isso não só aumenta o tempo de realização de um filme, como também o matam um pouco, lhe tiram um certo fervor que uma obra possui quando começa a sair ao mundo.

Isso se passou um pouco na Argentina. Lá a situação atual é crítica por outros motivos, o INCAA está em uma situação complexa pelo governo atual, pela situação da política cultural, porque o país está saqueado… Enfim: vocês devem estar iguais. O INCAA no momento está com o pé no freio, não está fazendo coisas, o orçamento vai mal. Porém devo dizer que não é só a instituição que comunga com a burocratização e com o retardo de projetos. Também são os cineastas que aceitam fazer filmes deste lugar. Um lugar em que se leva um preto para um lab, em que se conversa mais com os programadores de festivais do que com os próprios filmes. Como se o cinema fosse um espaço de marketing, um espaço em que um montão de mediadores começa a opinar sobre o filme e interceder, e isso termina gerando um pouco um panorama geral muito homogêneo. Isso não tem somente a ver com as instituições, mas também com os cineastas e com como se está trabalhando a realização de filme a nível mundial.

De todo jeito, na Argentina há alternativas para pegar dinheiro público sem a necessidade de ir ao INCAA. Essas alternativas são para cumprir a lei de patrocínio cultural, na qual as empresas destinam parte dos impostos que iriam para o Estado para projetos culturais, e isso tem possibilitado que existam pelo menos os filmes da El Pampero. As empresas não dizem como eu tenho que fazer o filme, nem em quanto tempo, nem com que regras.

No entanto, na Argentina de hoje há uma conjuntura em que isso também está ameaçado. O problema atual do cinema na Argentina também tem a ver com isso, pois quase privatizaram a atividade do cinema, buscaram uma maneira de as empresas privadas se comprometerem e de o Estado se ver livre de dar dinheiro aos filmes. E isso tampouco me parece que está bom, porque a cultura necessita de um subsídio.

Sundance tem um laboratório de roteiros, Cannes tem a residência, e isso vem influenciando uma série de outras iniciativas de diversos festivais. Há quem diga que há todo um sistema burocrático que tem como a ponta da cadeia esses festivais, uma espécie de retroalimentação. Você pensa que isso realmente ocorre? E se ocorre, passa um pouco por aí essa coisa que você estava dizendo na masterclass sobre uma estética domesticada?

Sim, exato. Repito: creio que há muita responsabilidade dos cineastas também. Porque os cineastas querem fazer carreiras internacionais, querem estar na moda, querem ir aos festivais. Então, conversam o tempo todo com isso no lugar de conversar com os filmes. Eu creio que isso tem mais a ver com o marketing do que com o cinema. É essa ideia do pitch, de pitchear, de vender o seu projeto; todas essas são ideias que vêm do marketing. Não se fala de cinema, ou se fala muito pouco. Fala-se, a todo momento, de encontrar no filme um gancho, algo que agarre o espectador. E isso, digamos, é uma indústria encoberta, porque o que se está querendo é ser conciliador com o espectador, no lugar de pedir ao espectador que se surpreenda, que estabeleça uma nova relação com as imagens, que tenha a sua própria relação com o filme, e não necessariamente um filme desenhado de antemão por alguém que quer gerar esse vínculo.

O panorama atual está sendo muito nocivo porque aparecem filmes domesticados e também porque aparecem filmes mortos. Filmes que se sente que não têm ideias próprias. Pode até ter ideias próprias, mas que estão tão domesticadas que acabam sendo as mesmas ideias que estão na moda, que os festivais esperam, etc.

Eu tive uma experiência de participar da Biennale College, de Veneza, por 10 dias. Estive lá com Mariano Llinás, como produtor, e Veronica Llinás, codiretora de A Mulher dos Cachorros. E o que aconteceu lá foi que nossos tutores, os “experts”, eram pessoas com um currículo muito pouco destacado. Fomos para lá com o projeto de um filme de personagem, que contrariamente ao que se espera, no lugar de ser o típico filme de personagem com uma curva dramática, como por exemplo O Poderoso Chefão, é um filme que não tem esse conflito. É um filme que não tem um conflito. É um filme que a todo tempo renova seu conflito. É um filme com uma personagem que tem que sobreviver, e nesse sobreviver, minuto a minuto, é que o filme se constitui como um todo. Isso, para o “experts” da Biennale College, era um trabalho que não tinha um gancho, ao qual faltava algo. Ou seja: quando falávamos da particularidade do filme, que isso era a sua identidade, eles nos falavam que tínhamos que universalizar o filme. E nós voltávamos a falar em particularizá-lo. Então é um diálogo em idiomas muito diferentes.

Naquele momento seria ótimo se ganhássemos – o prêmio era de 150 mil euros -, não ganhamos, mas penso que se tivéssemos ganhado seria uma tortura. Porque o procedimento que têm esses laboratórios, esses encontros, parece que é o de assinalar problemas onde eles não existem. Tem mais a ver com isso do que com a ajuda para encontrar a verdadeira vida de um filme. Entende?

Mas a Biennale foi a sua única experiência em um espaço desse tipo, ou houve outras?

Quando era muito mais jovem fui selecionada para o Talent Campus do Festival de Berlim (atual Berlinale Talents). Era um momento em que eu estava me unindo à El Pampero – Mariano Llinás foi meu professor na faculdade. Depois ficamos amigos e passamos a trabalhar juntos. Então apareceu essa oportunidade de ir ao Talent Campus, e foi muito, muito frustrante ver o estágio em que estava o cinema naquele momento, que é o mesmo em que está agora. Isso foi em 2007 ou 2008. Recordo que convidaram para um almoço todos os “talents” – e já é espantosa essa ideia de “talents”…. Foram convidadas 400 pessoas, era um grande galpão, e me recordo que o diretor do festival falou: “vocês são os eleitos para estar aqui”.

Um procedimento empresarial, de você se sentir como um empregado especial, enquanto no fundo é uma estratégia das empresas para mantê-lo por perto… Essa foi a minha sensação quando o diretor da Berlinale disse “vocês são os eleitos”. O que ele estava nos dizendo era quase religioso. E nesse mesmo momento recordo que apareceram pela primeira vez em minha vida palavras como pitch, knowing people, you have to meet other people… Essa ideia social, de conhecer gente, de expandir os laços, tudo com a finalidade de conseguir dinheiro para os seus projetos.

A ideia era que quanto mais rápido você aprendesse a fazer pitching, mais rápido iria cooptar um investidor para conseguir dinheiro para o seu projeto. Eram coisas que eu realmente sentia que não estava capacitada para fazer. Sei que posso fazer filmes, mas não sei se posso vendê-los. Não estudei para isso – estudei cinema. Então me recordo que todas as atividades tinham a ver com isso: how to pitch in ten minutes, how to behave yourself in a situation like… Tudo era “como se comportar em frente a um vendedor”, parecia aqueles livros de como chegar ao sucesso.

Em um contexto de um festival de cinema onde não se falava de filmes. Eu não me recordo de terem falado uma só coisa sobre um filme. Me recordo que fui ver alguns filmes no festival e aí… Foi muito forte essa experiência, porque me deu a sensação de que também esses espaços – não era um lab, mas era o Talent Campus de Berlim -, doutrinam muito. e justamente ensinam aos cineastas que essa é a maneira de pensar em como produzir filmes. E 80% das pessoas fazem assim os filmes. Funciona. São métodos corporativos.

Essa foi uma outra experiência. A partir disso eu decidi que jamais me inscreveria para nada parecido, meus sócios tampouco. E os filmes que fazemos nunca foram, por exemplo, ao Festival de Cannes. Nunca conversamos com um objetivo tão claro como acabar um filme para ir a um festival. Em geral acabamos um filme e vemos o que fazemos com esse filme, o que resultou e o que é o melhor para a vida desse filme. Aí está a diferença. É o particular contra o universal.

Estive recentemente no BrLab, em São Paulo, e algo que ouvi em muitas das meses é essa ideia do universal. “Nós não nos importamos com o tema, mas precisa ser algo universal”. E talvez a tendência atual da cultura seja o antiuniversalismo, o rompimento de determinadas crenças em uma nacionalidade, em uma universalidade.

Também é algo estranho, porque se insiste com o universal e às vezes os festivais europeus olham muito a América Latina esperando que os filmes latino-americanos falem da miséria que vivemos, do mal que vivemos na América Latina. Os europeus gostam de certo tipo de filme com uma identidade exótica, e então o que também acontece na América Latina é que se fazem filmes sobre a pobreza com muita irresponsabilidade. Transforma-se a pobreza em um espetáculo para poder vendê-la aos europeus.

Os filmes brasileiros que acontecem nas favelas são moralmente muito complexos e conservadores. Esses filmes que espetacularizam a miséria são muito esperados pelos festivais europeus. A favela, no lugar de particularidade que possui, é tratada como algo universal. E isso ilude muito problema de se enfrentar de verdade a pobreza, a miséria. É muito perverso o jogo.

A Mulher dos Cachorros é um filme que trabalha muito com os materiais da pobreza, com a textura, com as cores… Mas é um filme que a todo tempo resiste a retratar a pobreza. É uma fábula. É um filme em que Verônica Llinás, uma atriz famosa e conhecida, vive em um contexto de liberdade muito particular. Esse personagem é quase uma metáfora da maneira de trabalhar que temos na El Pampero Cine, mas todo o tempo lhe escapa trabalhar a pobreza. E por isso muita gente não gosta do filme, porque não se mete com a pobreza. Não se mete com a pobreza porque fazer isso é um pouco hipócrita para uma pessoa de classe média alta. É uma decisão que foi tomada.

Então há algo como essa particularidade de essa personagem que vive dessa maneira, e que decide viver dessa maneira, que gera muita repulsa porque não se pode classificá-la em nenhum lugar anterior. É tão estranho… E isso gera muita angústia em alguns espectadores que vieram falar comigo em alguns festivais de cinema, e também em alguns críticos e programadores.

O que acontece é que ao não poder classificar o particular com formas já conhecidas, o que fazem é criticá-la, descartá-la, porque não podem travar uma nova conversação com uma nova imagem.

Em janeiro de 2016 eu fiz uma entrevista com o crítico Roger Koza, na qual ele disse: “vocês deveriam estar contentes de não estar com filmes em Cannes”, falando para o cinema brasileiro. Queria saber sobre a sua experiência com La Flor (filme produzido por Laura e dirigido por Mariano Llinás) em Locarno, que não é Cannes, mas é um dos cinco festivais europeus com mais renome internacional. O quanto esse mundo dos grandes festivais pode incluir os cineastas em uma tendência à normatização.

Era necessário ir a Locarno. Era necessário estrear La Flor nesse contexto, porque se não havia o risco de ser um filme com pouco alcance internacional, e pelo menos a mim, como produtora, isso me parecia injusto. Me parecia interessante visibilizar esse filme o máximo possível, sem a necessidade de concorrer no Festival de Cannes, pois, como disse Roger, às vezes não é tão boa notícia estar na programação de Cannes, por ser um festival muito conservador e… bom, um montão de coisas.

E foi uma experiência única para nós. Creio que é raro que um filme de 14 horas com a quantidade de desafios que tem La Flor, com a quantidade de experimentação que tem esse filme, compita com filmes que não foram pensados com esse grau… Não estou sendo desrespeitosa com outros filmes. Digo que não sei se é justo nem para nós nem para os outros filmes – não sei se a palavra é justo – …. não sei se não é raro fazer com que este filme converse com muitos outros filmes que se fazem em outros lugares.

A exigência de mostrar La Flor é enorme. A exigência de ver La Flor é enorme, tanto para os jurados, quanto para os críticos, quanto para o público, e temos que dizer que do ponto de vista do público e da crítica é um filme que foi muito bem. Do ponto de vista dos jurados, a julgar pelos prêmios, não foi bem. O motivo não posso dizer. O que posso dizer é que temos a sensação de que era óbvio que o filme não poderia ganhar nada, um pouco porque esse filme não cumpre com os requisitos atuais do cinema de autor. Se está pensando em cinema neste momento não só com relação a esses labs dos quais falamos, mas também os programadores de festivais e os jurados, em função de que um autor tenha coisas para dizer sobre o mundo, e essas coisas têm que ser pensamentos, quase como se os autores fossem filósofos. Uma coisa que nos deprime muito é como caducou o trabalho sobre a forma no cinema. Como se perdeu o interesse na forma. Como se está pensando o filme cada vez mais do ponto de vista de seu conteúdo. Do que tem que revelar sobre o que pensa uma alma, um diretor, um homem. Um homem, um filme, como dizia (Frank) Capra.

É meio polêmico o que vou dizer, mas é um pouco fascista também pensar assim, como uma espécie de revelação de uma pessoa, de um líder que revela algo ao mundo. E um pouco do que dizia hoje na masterclass, o que tem de passar com os filmes é que se revelem a si mesmos e que conversem eles mesmos com suas formas, e com o espectador, e com o crítico. Que o realizador de filmes possa estabelecer uma discussão constante com essas imagens e repensar questões relacionadas com o cinema.

Chamou muito a atenção em Locarno que um filme superpolítico – porque pelo modo como foi feito, La Flor já é uma obra política – não foi recebido como algo que pudesse ser pensado para além de alguns highlights (como o fato de durar 14 horas). Inclusive em algumas críticas positivas, não se dão conta da radicalidade da experiência. Se vê mais como um espetáculo, o que também está bem.

Acho que a situação está anestesiada. Esta é minha sensação. É um panorama tranquilizador. Estão anestesiados os críticos, os programadores. E algo que faz parte disso é a tranquilidade de ver um filme e, diante do fato de não saber o que dizer, digo que não gostei. É mais fácil.

Então nos chamou a atenção encontrar isso em Locarno. Porque quando aparece algo que rompe, algo novo, algo que tenta repensar inclusive o próprio cinema… La Flor é um filme que conversa diretamente com o cinema, não conversa com a contemporaneidade, não conversa com os imigrantes, não conversa com a conjuntura dos países latino-americanos, não conversa com o feminismo. Alguém pode pensar todas essas coisas a partir do filme, mas o filme é um circuito mais complexo, que faz uma grande conversação com a história do cinema, e isso não é interessante neste momento. É interessante fazer filmes que remetem à conjuntura, que remetem aos problemas sociais – como se essa fosse a única maneira de fazer filmes. Isso acontece com todos os filmes da El Pampero. Parecem frívolos para os problemas atuais vividos pela Argentina. Como se a postura política da El Pampero já não fosse um montão para pensar.

Em 2016, quando Canção para um Doloroso Mistério, filme dirigido pelo filipino Lav Diaz que tem 8 horas e cinco minutos de duração foi exibido no Festival de Berlim, um veículo brasileiro fez uma matéria que reparava na reação dos espectadores ao filme, descrevendo as reações de quem conseguia permanecer na sala. A ideia dele era “fiscalizar o júri”, saber quem dormia na sessão. Então a partir disso, eu fico pensando como que essa coisa do tempo, da minutagem do filme, muitas vezes pode ser fetichizada e usada como mercadoria por um festival. Pela experiência com La Flor, você sentiu que isso pode acontecer?

Sim, pode acontecer, claramente. O caso de La Flor é que o público gosta muito. Isso se tem que dizer. Então podem fetichizar, podem dizer o que seja, mas a verdade é que as pessoas gostaram do filme e da experiência de ir três dias seguidos ao cinema e ver 14 horas de filme. Não digo que todo mundo. É um convite que vai além do cinematográfico, que tem a ver com comunidade, que tem a ver com a cerimônia, com a sala, com o público, com uma coisa coletiva.

Digamos que sim, existe claramente a frivolização do filme, não só por parte dos festivais, como também de todos. Mas essa frivolização dura muito pouco. Depois vão ver o filme e se dão conta de que é um filme que é fácil de ver, mas é muito exigente para os espectadores. Então, tudo isso que se gera ao redor do filme, “tem 14 horas, e tal”, é uma porcentagem muito pequena do que se passa com a experiência real de ver o filme.

É físico. Para mim fazia tempo que não se passava o que fisicamente passei vendo esse filme. Porque são muitas horas e porque o filme é muito exigente, propõe muitas coisas de uma só vez. É um filme quase impossível de fazer uma crítica. Os que fizeram uma crítica foram muito ousados, e em muitos casos se equivocaram, inclusive falando bem do filme. Então tudo isso que se pode armar ao redor de La Flor tem os minutos contados, porque com a experiência real creio que se passa também muito isso. São tantas horas, é exigente, que a pessoa tem quase uma obrigação de estabelecer um vínculo com esse filme

Muitas vezes no cinema contemporâneo você vai ver um filme e já sabe quais as coisas que tem de sentir, que tem que ver. Já sabe quais as coisas que tem de gostar e que não tem de gostar. La Flor te põe em um lugar em que é difícil pensá-la com coisas pré-estabelecidas. É tão complexa a estrutura, tão dinâmica, tem tanto, que te obriga a gerar um vínculo original com esse filme.

Eu queria que você comentasse essa questão da importância que dá à exibição de La Flor nas salas de cinema. Você disse, por exemplo, que não gosta que o filme circule por links…

Muita gente acha que tem a ver com a pirataria, mas esse não é o problema. A questão é voltar a exigir do espectador que se aproxime do acontecimento, e que o crítico também se aproxime. O que se passa há muitos anos é que está para começar um festival e os críticos dizem que não terão tempo de ver o seu filme na programação e pedem um link. Para mim é algo muito agressivo para alguém que faz um filme, com tudo o que custa um filme. Alguém está há três anos, ou há dez anos, fazendo um filme, e um crítico lhe pede um link alegando uma questão de cronograma e depois escreve uma resenha em cinco minutos porque tem de cobrir o festival. Nesse caso eu prefiro que não escreva nada, sinceramente.

Creio que tem a ver com o que vem passando com todos os filmes da El Pampero, e La Flor é tão especial que acabamos sendo mais exigentes. Se quer ver o filme, tem que ver em sala, ou com determinadas regras. Nós temos uma série de cópias em blu-ray e DVD, pois se não fica meio difícil para os festivais selecioná-lo, mas são coisas muito específicas, algumas exibições que organizamos. Mas não damos o braço a torcer. Se você afrouxa um pouco, novamente começa uma coisa nesse sentido.

É como ver um filme sem responsabilidade, ver um filme em sua casa, num computador pequeno. Um filme que é para ser visto em três dias, em três partes, acabaria sendo visto em 18 dias, em 3 meses, vendo-o mal, escutando-o mal. E me parece que La Flor é o filme ideal para ter esse problema, não? Com esse filme não. Não se pode fazer um link de 14 horas para que a pessoa olhe o filme e veja se o seleciona ou não. Tem que se mobilizar um pouco para poder ver La Flor. Me parece que está funcionando. E a maior parte das pessoas o vê na tela grande.

Aqui no Brasil a visão do senso comum, que me parece generalizante e equivocada, é de que o cinema argentino são os filmes do Ricardo Darin, e aí vem uma receita que diz que o problema do cinema brasileiro são os roteiros, e que nós deveríamos nos inspirar nos roteiros de filmes argentinos. Acho que é uma perspectiva muito contraste com o cinema que a El Pampero propõe…

Meu papai sempre me diz: “um bom filme é um bom roteiro”. Eu fico pensando: o que ele quer dizer? Os roteiros ganharam a guerra porque as séries ganharam. A gente está acostumado a ver uma obra audiovisual, seja uma série ou um filme, como a força do roteiro. É a força da tensão que gera um roteiro, nem mais nem menos. Não é o poder das imagens.

O pai de Mariano Llinás foi um grande escritor, e Mariano escreve muito bem. La Flor tem muitos relatos escritos por Mariano, tem uma relação muito forte com a literatura… Creio que a nossa tendência é estar um pouco de encontro aos roteiros, nesse sentido. Porque quando se espera tanto dos roteiros… Eu creio que em geral as pessoas esperam um material mastigado, digerido e entregue ao espectador, para que o espectador não tenha que ter o problema de renovar algo de seu imaginário, de suas imagens. O espectador recebe algo que está facilmente contado… o princípio, o meio, o fim. Um filme que saia disso, que crie a tensão em suas cenas, na força de suas imagens, que pense mais nesse sentido, é mais difícil para o espectador de hoje em dia codificar, é mais complexo. As pessoas não querem ter que trabalhar muito, isso também é certo… Não sei se as pessoas não querem trabalhar muito, mas se acostumaram a essa velocidade, se acostumaram a esse condimento das obras audiovisuais, onde o que importa é o conteúdo, é o tempo, é a mensagem, o que disse um personagem a outro… A tensão está construída a partir dos diálogos dos personagens. E isso gerou como uma maneira de leitura de tudo, e tem a ver com como se lê o mundo em geral, como se lê a publicidade, um montão de coisas. E quando aparece um filme que busca pensar de um lugar menos literal, as pessoas rapidamente se relacionam mal. Para os argentinos o cinema argentino, salvo os filmes de Darín, é lento, não se entende, é pesado, é aborrecido. Porque todo esse universo – o reino do roteiro –, cooptado principalmente pelas séries – fez com que as pessoas se acostumasen a fazer uma leitura muito conteudista dos materiais, no lugar de poder elevar as leituras a outros lugares.

Obviamente há estrutura, há roteiro, há montagem, também tem relação com o roteiro. A Mulher dos Cachorros parece que não tem uma estrutura e claramente a tem, e é necessária. Há um esqueleto que temos de construir. Dito isso, não digo que estou deliberadamente contra o roteiro, mas sim que estou contra o roteiro quando está entendido dessa forma, com essa expectativa.

A minha última pergunta seria retomando um pouco as suas falas sobre as experiências que teve no Berlinale Talents Campus e na Biennale College. Ambos estão inseridos em uma ideia de indústria, algo que também se insere em eventos como o Brasil CineMundi, que é um encontro de coprodução internacional. Nesse sentido, ter a El Pampero homenageada paralelamente a esse encontro de coprodução, em que são convidados esses “experts” que você citou, não teria algo de complexo ou paradoxal?

Me parece que é um paradoxo, mas nada é tão radical neste mundo também. Nós (da El Pampero) temos ideias muito radicais sobre o cinema, sobre como fazê-lo, mas os festivais têm patrocinadores, têm um monte de obrigações. É assim, e eu entendo que é uma realidade. Neste momento eu não submeteria um projeto meu a um lab ou a nada parecido, mas sim, participo um pouco desse tipo de evento, e trato de, a partir desse lugar, despertar algumas cabeças que dão a sensação de que estão muito automatizadas em uma maneira de pensar e em uma maneira de fazer filmes.

Essa contradição existe como sempre, é a vida. Ninguém pode ser 100%… Teria que viver na Antártida para estar fora de tudo. As pessoas convivem com isso, os festivais convivem com isso, e existem essas obrigações. Repito: me parece que a maneira de aos poucos colocar isso em crise, questionar isso, é ter essas contradições. Me parece saudável. É necessário e é melhor que existam essas contradições do que que elas não existam. Que haja um espaço, por exemplo, para a masterclass que eu dei aqui. Depois dela uma garota me procurou para me agradecer, disse que a fiz pensar… Isso me parece que é suficiente para que alguém diga: bom, o festival está se fazendo perguntas. E me parece que isso é muito bom.

*O repórter viajou a convite da 12ª Mostra CineBH

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